Como não discutir com populistas
Aprendi com Howard S. Becker, sociólogo americano, que não se discute disparates sem tentar reconstruir o argumento que os sustenta. Disparates são argumentos incompletos. Apresentam apenas uma premissa menor, uma conclusão e omitem a premissa maior. Dizem, por exemplo, que (premissa menor) a filosofia e a sociologia não produzem retorno imediato, logo (conclusão) não devem ser financiadas. Estabelecem o que parece ser um facto e concluem que esse “facto” justifica a conclusão. Mas o que dá estrutura a isso é algo que não é dito. Trata-se da premissa maior, nomeadamente da ideia segundo a qual só faz sentido financiar a ciência quando ela produz retorno imediato. É isto que confere plausibilidade à conclusão segundo a qual não se deve financiar mais a filosofia e a sociologia.
Ora, perante este tipo de disparate o pior que se pode fazer é aceitar os termos em que ele é colocado. Infelizmente, é isto que muitos cientistas sociais fazem. Ele foi pronunciado pelo atual presidente brasileiro e as comunidades de cientistas sociais no Brasil têm vindo a reagir de forma previsível que serve, em minha opinião, para reforçar o disparate. Ao dizerem coisas como “as ciências sociais podem não produzir retorno imediato, mas...” não o contrariam. Reforçam uma crença generalizada que alimenta o tipo de anti-intelectualismo promotor desse tipo de disparates. Na verdade, as premissas maiores que sustentam disparates costumam ser bons documentos daquilo que justamente por parecer inquestionável precisa de ser questionado, principal vocação da ciência.
A redução da ciência ao retorno é problemática do ponto de vista ético e científico. Dum modo geral, reduzir a importância das coisas ao retorno é partir do pressuposto segundo o qual a utilidade e o valor se constituem a partir do benefício material. Qualquer pessoa sensata, por exemplo, compreende imediatamente que a nossa decisão de termos filhos não pode depender apenas do retorno que eles nos dão. O nosso compromisso com a religião, também, não pode depender (a não ser, sintomaticamente, nas igrejas evangélicas) do retorno material da crença. Seria uma grande limitação daquilo que faz de nós humanos. Isso é, mais do que a satisfação de necessidades materiais, o cultivo do tipo de sentimentos que fazem com que a gente se indigne, ou não, quando numa sociedade a satisfação de necessidades materiais é apenas reservada a alguns.
A nossa humanidade reside aí, é isso que nos distingue do reino animal.
Do ponto de vista científico a redução é problemática porque retira à ciência aquilo que a distingue da técnica. Veterinária sem o compromisso com a saúde pública, com o bem-estar dos animais, com o meio ambiente, etc., valores que fazem de nós humanos, não é ciência. É técnica. Na verdade, as ciências naturais são ciência porque existem as ciências sociais. São estas últimas que legitimam as primeiras como empreendimentos úteis, pois são elas que definem a sua utilidade para a sociedade, utilidade essa determinada pelo papel que elas desempenham na promoção do bem-comum, portanto, daquilo que faz de nós humanos. Em última instância, as ciências sociais produzem valor porque o seu objecto é tudo aquilo que torna a veterinária, a engenharia e a medicina importantes.
Você percebe a perplexidade do governo brasileiro em relação ao que significa a ciência quando olha para Sérgio Moro, o ministro da justiça. Não há nenhum mal num juiz aceitar um cargo político. Só que quando esse juiz esteve à frente dum caso contra o adversário político de quem, mais tarde, o convidou para ministro aceitar a oferta ele estará a faltar respeito ao sistema judiciário e todas as suas instituições que, eticamente, pautam pela neutralidade. Mas não admira que ele o tenha feito. De certeza que ele reduz a ciência jurídica à técnica (mera interpretação e aplicação de leis) e manda todo o edifício ético que a sustenta às urtigas.
Em suma, a ideia de que existem ciências com e sem retorno imediato revela um desconhecimento vergonhoso da natureza da ciência. Um exemplo pode ilustrar isto talvez melhor. A catedral da Nossa Senhora ardeu em Paris e em menos de 24 horas foram doados montantes exorbitantes para a sua reconstrucção. Mas será que aquela catedral custa mesmo 6 bilhões? Não e sim. Segundo a lógica do retorno imediato, portanto, aquela que reduz a condição humana à satisfação de necessidades básicas, qualquer edifício que depois fosse designado por “Nossa Senhora” cumpriria o seu papel de repor o que ardeu. Mas é preciso reconstruir a catedral tendo em conta a valorização estética, espiritual, social, cultural e até económica e política que ela ganhou ao longo do tempo.
A constituição desse valor é não só o objecto das ciências sociais como também resulta do cultivo da nossa sensibilidade humana pelas ciências sociais. A catedral vale mais do que um edifício funcional de quatro paredes porque as ciências sociais nos ensinam a valorizar certas coisas. Curiosamente, mesmo o facto, por exemplo, de uma tragédia humana de grandes proporções como a que afectou Moçambique em março não ter produzido o mesmo efeito naqueles que foram ao socorro da catedral francesa, mostra a importância das ciências sociais. Essa discrepância nas reacções não revela apenas hipocrisia. Revela também a distância que ainda nos separa do ideal humano, portanto, a necessidade que ainda temos, e sempre teremos, dum entendimento de ciência alicerçado em valores.
E, no fundo, este é que é o verdadeiro problema com o disparate do Presidente brasileiro. Ele não só documenta um entendimento problemático da ciência como também muito do que está errado na política brasileira ao elevar o senso comum ao estatuto de princípio orientador da política pública. É justamente a ideia de que o bom é aquilo que é útil e o útil é o que tem retorno imediato que faz com que este País rico em potencial humano e natural disperdice tanto talento e tantos recursos.
A resistência que certos sectores da sociedade brasileira opõem a uma definição da política como sendo a preocupação com o bem comum é o que explica a indiferença à sorte do outro. Não é a manutenção do privilégio como alguns colegas gostam de dizer, ainda que com certo cunho de verdade. Mais do que perder vantagens materiais o que realmente preocupa o brasileiro que está bem, por enquanto, é perder a prerrogativa de poder dizer de si próprio que está bem porque “lutou” e se superou. O discurso da meritocracia tem todas as qualidades dum disparate. Esconde a premissa maior (só merece viver aquele que luta), destaca a premissa menor (a classe média e classe alta lutam) para concluir que o País não pode assumir responsabilidade pelos “falhados”.
Isto só é possível onde reina o populismo com aquela sua postura argumentativa de validar conclusões na base do conforto que elas dão a convicções. Você não discute com populistas aceitando os seus termos de debate. É preciso ser mais profundo e isso significa desmascarar a ausência de base factual naquilo que dizem. O problema, porém, é que para o seu argumento ser devidamente apreciado o populista tinha que ter discernimento e estar, por conseguinte, interessado em confrontar as suas convicções, algo que de momento seria irrealístico esperar. Por essa razão mesmo, eu nem compro o argumento de que Bolsonaro teria uma agenda de imbecilização do Brasil. Ele simplesmente não tem agenda. Cnvicções são pouco compatíveis com agendas. Ele age de forma ad hoc. Tanto é assim que mesmo aqueles que hoje se sentem “valorizados” como ciência devem ficar apreensivos, pois isso pode mudar dum momento para o outro.
O desafio, portanto, não é mostrar que as ciências sociais têm valor. O desafio é explicar o que é ciência a quem não sabe. Trata-se duma tarefa importante importante, pois essa ignorância documenta algo mais profundo na sociedade, no caso, a ausência de compromisso com o bem comum, ausência essa consubstanciada no princípio do salve-se quem puder. Não são as ciências sociais que precisam de ser protegidas. É, sim, a ideia do bem-comum.
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