Monday, July 2, 2018

Quem tudo quer, tudo perde

Sou Magnólia Quembo Tongogara. Nasci num lugarejo no interior do distrito de Moatize, na província de Tete. Esse lugar foi, em tempos, chamado Vila Caldas Xavier. Depois de 25 de Junho de 1975, passou a chamar-se Cambulatsitsi. Acho que é um nome justo, bonito, e faz-me lembrar o que sou… tem origem e raízes plantadas na terra. Cambulatsitsi, na minha língua materna, significa careca. Na verdade, a paisagem de Cambulatsitsi é dominada por um monte, que tem nas encostas uma vegetação perene e rasteira. Digo rasteira por pensar, porque nunca fui até lá. Mas a ideia que tenho é de que a vegetação é rasteira e tem colorações diferentes: são verdes, são azuis, são amarelas, dependendo do estado de espírito em que nos encontramos. Acontece que, no cimo, este monte é completamente calvo, de pedra lisa, que também tem cintilações de cinzento claro em dias de sol, de cinzento escuro em dias de chuva (e chora!), e poderia mesmo dizer de um vermelho denso, em noites de lua cheia, mas isso é imaginação minha. Sou da Geração da Viragem. Quando, em Outubro de 1992, se assinou o Acordo Geral de Paz, eu acabava de dobrar o cabo dos dezoito anos. Em 1994, nas primeiras eleições gerais, multipartidárias, democráticas e essas balelas todas, eu fui votar. Parecendo incrível, tive a impressão de que, ao fazê-lo, estava a carregar nos ombros o peso do sonho de vinte ou vinte e sete ou trinta milhões de pessoas iguais a mim, mais velhas ou mais novas. Então, nessa altura, fui, com a cumplicidade do meu pai – cumplicidade feita de silêncio –, vencer a resistência da minha mãe, que queria ver em mim uma filha ou enfermeira ou professora, e porque não mesmo doutora. Não fui por aí! Matriculei-me no Instituto Industrial de Matundo, onde fiz uma carreira pouco vulgar: sou engenheira mecânica auto. Fui embalada pelo sonho transportado por expressões tipo “empreendedorismo jovem”, e alimentada, da vizinha África do Sul, pelo sonho de Nelson Mandela, naquilo que nem sei se era sonho dele, que era o B.E.E.: Black Economic Empowerment. Voltei para a minha terra com o meu diploma e cometi a asneira que muitos da minha idade cometeram: contraí um empréstimo bancário, para aquilo que eu julgava ser o meu sonho e de muitos, que era ajudar Cambulatsitsi – o seu povo, o seu bom nome, os seus desejos – a erguer-se. Montei duas moageiras. Não consegui pagar, porque entre o sonho e a realidade existia a dívida que eu tinha que pagar ao banco e o salário que eu tinha que pagar aos meus empregados, cuja maior parte eram primos, sobrinhas, tios e por aí adiante. Estou a dizer isto agora, com este ar de cambulatsitsi. Eu não sou calva, porque é raro uma mulher ser calva, mas tudo o que eu tinha como vegetação na minha mente jovem, crente e credora se desvaneceu, como se desvanece a água da chuva, quando cai sobre a careca do monte que dá nome à vila onde nasci, que nunca deixará de ser vila, embora Matundo fique aí a pouco mais de 30 km e a cidade de Tete continue a ser aquele buraco metido entre um caldeirão de montanhas – uma cidade que, invariavelmente, quando faz frio, é porque tem uma temperatura mínima de 30 graus, e dizem que Tete é a tal província dos cinco cês, ou seja: C de crocodilo, C de carvão, C de cabrito, C de Cahora Bassa (e agora também é acrescentado C de campeão nacional de futebol). Eu sou Magnólia Quembo Tongogara. Sou jovem, sinto-me um pouco desiludida com o projecto de vida que alguns dos nossos dirigentes nos deram. Acreditei muito no projecto de plantação da jatrofa. Então eu digo, na minha língua materna: jatrofa eu já fui, dívidas tenho eu por pagar. Mas acredito, acredito porque ainda tenho forças para lutar e hei-de conseguir. Isto pode parecer uma paranóia. Pode parecer; mas não é. P ara quem, talvez com alguma ingenuidade, acreditava que os moçambicanos tinham finalmente visto a luz e decidido que o seu futuro colectivo situava-se acima das suas querelas ideológicas, os acontecimentos da semana passada no parlamento trataram de mostrar que o caminho para a paz e reconciliação é ainda longo, e que até lá chegarmos muita água terá passado debaixo da ponte. Essa realidade foi trazida à superfície com a decisão da bancada da Frelimo de boicotar a sessão extraordinária da Assembleia da República que deveria proceder à revisão da legislação eleitoral, de modo a deixá-la alinhada com as últimas alterações à Constituição da República. No entendimento da bancada maioritária, o prosseguimento desta agenda legislativa deve estar condicionado a um compromisso firme da Renamo quanto à desmobilização dos seus guerrilheiros e subsequente entrega das armas sob seu controlo. Para a Frelimo, ao aceitar proceder à referida revisão da Constituição, por exigência da Renamo, o governo que suporta deu provas bastantes do seu empenho no processo de paz, gesto esse que deve ser correspondido com actos concretos por parte da Renamo. As negociações que têm sido dirigidas pessoalmente pelo Presidente da República, em contacto directo com a liderança da Renamo, têm duas componentes, nomeadamente o pacote sobre a descentralização, recentemente aprovado pela Assembleia da República e promulgado pelo Chefe do Estado, e a componente militar, cuja finalidade é a desmilitarização da Renamo e a integração das suas forças residuais nas Forças de Defesa e Segurança. Os que não couberem dentro deste processo terão de beneficiar de um pacote de reinserção social. Mas a Renamo tem demonstrado resistência nesta matéria, defendendo que só aceitará desmobilizar os seus guerrilheiros depois da integração dos seus oficiais em lugares do topo na hierarquia das Forças Armadas e da Polícia. A Frelimo, por seu lado, receia que a Renamo esteja a engendrar uma estratégia de obter todas as concessões do lado do governo, mas mantendo-se armada, para continuar a fazer outras exigências políticas. Falando nas comemorações dos 43 anos da independência, o Presidente Nyusi disse quer todos os entendimentos sobre questões militares estavam reduzidos a escrito, e que eram do conhecimento de oficiais quer do governo quer da Renamo, e ainda dos representantes do Grupo de Contacto. “Com o líder da Renamo (Afonso Dhlakama) já tinham sido identificadas as linhas de acção, a calendarização do cronograma de implementação e o preenchimento conveniente da orgânica resultante deste consenso”, disse Nyusi. Terá, por isso, causado alguma surpresa que havendo tais entendimentos, a bancada da Frelimo, partido do qual Nyusi é Presidente, se apropriasse do processo para fazer as suas exigências à Renamo. É facto inquestionável que em processos democráticos não deve haver partidos políticos com armas em punho. E nesse sentido, a Renamo deve aceitar a inevitabilidade de ter de se desmilitarizar quanto cedo possível, se quiser manter a sua credibilidade como força indutora da democracia. Não pode ao mesmo tempo ser uma força democrática e militar. Contudo, deve ser verdade também que, no caso em apreço, questões de procedimento são cruciais para evitar qualquer tipo de ruído, ou até mesmo confusão. Muitos cozinheiros estragam a sopa. De qualquer modo, deve ter sido esta a razão que levou o Presidente Nyusi a optar por este modelo de negociação directa com a liderança da Renamo, um modelo que pode ter as suas insuficiências, mas que até aqui parece ter sido capaz de produzir resultados. Chegados a este ponto, é preciso que se diga, sem rodeios, que a actual situação não favorece nem à Frelimo nem à Renamo. Está claro que com apenas 103 dias antes das eleições autárquicas de 10 de Outubro, o tempo para a realização de um processo credível começa a ser mais que escasso. Não será possível realizar as eleições sem a aprovação da legislação agora pendente na Assembleia da República. Arrastar o processo por mais tempo só resultará em mais um processo imperfeito, a receita perfeita para mais conflito e instabilidade. Há que colocar os interesses partidários, o espírito de tudo ou nada, abaixo do mais supremo interesse nacional, que é o da paz, estabilidade e progresso económico e social de todos os moçambicanos. Como diz um provérbio popular, quem tudo quer, tudo perde. 

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