segunda-feira, 9 de julho de 2018

Os patrões, os trabalhadores e os “patos”.

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Cesar Mangolin
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Os patrões, os trabalhadores e os “patos”.
29/05/2018 ~ 1 COMENTÁRIO


Cesar Mangolin

É, sem dúvida, grave a situação do país por ocasião dos efeitos da greve dos caminhoneiros. Em um corpo que padece de males diversos qualquer constipação tende a ser a beira do abismo.

Longe de mim querer comparar a nossa formação social a um corpo e suas funções. Apenas utilizo a analogia ou a metáfora para colocar em evidência três elementos que me parecem explicar o alcance da crise para, depois, de maneira rápida, criticar determinadas “visões” da crise que beiram a histeria.

Primeiro, vivemos num país com um governo ilegítimo, fraco, impopular, produto de um golpe que buscou resolver pela força o que as forças atreladas aos interesses da alta finança e do capital estrangeiro (tendo como testa de ferro o PSDB) não conseguiram resolver eleitoralmente.

Segundo, esse governo não é continuidade de qualquer maneira do governo de Dilma, eleito pelo voto popular em 2014, ainda que o golpista de plantão fosse o vice daquele governo. Caso as “agendas” ou os programas de governo batessem, das duas uma: não seria necessário o golpe ou não seria Temer quem ocuparia a presidência. Decorre do primeiro ponto este segundo: a assim chamada agenda neoliberal foi assumida e aplicada por este governo, com pretensões de repassá-la (não sem resistências) adiante para aliados mais fiéis (o Geraldinho Picolé de Chuchu e o PSDB, as marionetes de confiança do grande capital).

Terceiro, a interação desses dois conjuntos pode explicar sinteticamente a crise: um governo impopular e ilegítimo, com alta rejeição nacional, que procura aplicar a toque de caixa medidas que revertam a política dos governos anteriores que buscavam conciliar crescimento econômico com desenvolvimento social. As consequências sociais são imensas e sentidas desde já: efeitos da reforma trabalhista, da ausência de investimentos em políticas públicas, eliminação ou drástica redução de programas sociais, aumento do desemprego, dos preços para o consumidor final, da entrega das riquezas e da soberania nacionais etc.. Ora, não deveria espantar ninguém que os efeitos de tais políticas antipopulares seriam sentidas desde já. Caso fosse para continuar como estava (e não era um paraíso!) não haveria razão para o golpe.

A Petrobras entrou no butim dos vencedores do golpe: embora o povão tenha sido convencido pela grande imprensa de que a Petrobras estava falida e muito (tonto) desinformado continue a dizer que a solução é privatizá-la de uma vez, o fato mesmo é que a empresa persistiu como uma das maiores do mundo e é alvo de interesses poderosíssimos. Aos poucos, ela vai sendo entregue às grandes corporações do petróleo. Os royalties do pré-sal não serão mais aplicados integralmente à saúde e educação (medida aprovada no governo Dilma e eliminada como uma das primeiras medidas do governo golpista). A entrega da Petrobras e a nova política de preços dos combustíveis (implementada por Pedro Parente, um quadro do tucanato) passa a ter como prioridade os interesses dos acionistas, a relação com as “concessionárias” e as grandes corporações. O preço dos combustíveis passa a depender do preço internacional do barril do petróleo e da taxa de câmbio. A desvalorização do real em relação ao dólar também faz com que os preços subam constantemente.

Esses aumentos sucessivos vão pesar no bolso de todos os trabalhadores brasileiros, mas prejudicam aqueles que vivem dos transportes por causa da soma das condições. AQUI ENTRAM OS CAMINHONEIROS. Além do aumento do preço do diesel, houve aumento dos pedágios, dos pneus, das autopeças, dos alimentos e, ao mesmo tempo, uma pressão constante sobre o valor dos fretes. Chamo de caminhoneiros três grupos: primeiro, o daqueles sujeitos que possuem um caminhão e ficam na condição do que costumam chamar de “agregados” de empresas. Eles são, no geral, dependentes diretamente de uma ou no máximo duas empresas, têm destinos e agendas definidos pelas empresas, tempo de viagem determinado pelas empresas. Em tudo, portanto, figuram na prática como empregados dessas empresas, menos num detalhe: o instrumento fundamental de trabalho é de sua propriedade, portanto, os custos da viagem e da manutenção saem do valor recebido pelo frete. O segundo grupo, mais precarizado, é o de motoristas que trabalham com caminhão alheio e continuam a receber pelo valor do frete, com os descontos dos custos da viagem (combustível, alimentação, pedágios) e mais o desconto do percentual pago ao dono do caminhão (seja uma empresa ou uma pessoa física). Por fim, há motoristas de caminhão contratados, cada vez mais raros, que recebem salários.

Vejam: é para esses dois primeiros grupos que o preço do combustível, dos pedágios e demais necessidades fala alto. Num dado ponto de esgarçamento das suas condições, encontram na paralisação das atividades um argumento poderoso. Para os motoristas de caminhão contratados, assim como para motoristas de ônibus, o preço do diesel, dos pedágios, das passagens interessa muito pouco. Mas é claro que parar de trabalhar pode gerar uma melhora nas condições dos dois primeiros grupos no curto prazo, mas também prejudica imediatamente, visto que ganham por fazerem muitas, cada mais rápidas e arriscadas viagens cortando o país.

Aqui entra o segundo grupo interessado no processo: o dos empresários das transportadoras, que procura na situação de crise arrancar vantagens de um governo moribundo, ilegítimo e irresponsável (porque deixou a “corda” esticar para além do possível), como a redução de impostos que afetam seus lucros mais diretamente e em nada tem relação necessariamente com a melhora do valor dos fretes (que tende a ser arrochado), assim como a redução dos impostos de qualquer produto apenas pode fazer aumentar a lucratividade de um dado setor e não a redução dos preços para o consumidor.

A atual greve dos caminhoneiros tem, sem dúvida, grupos e interesses difusos que se beneficiam mutuamente. A participação dos empresários, de um lado, favorece ou facilita a adesão dos caminhoneiros. De outro lado, a luta dos caminhoneiros (legítima e compreensível) dá base social e política para os empresários. Talvez um e outro não fariam sozinhos o que acabaram fazendo juntos. Não é, portanto, nem apenas um locaute, mas a combinação do locaute com uma paralisação de fato dos trabalhadores que percebem seus interesses envolvidos ali. A contradição fundamental entre patrões e empregados não aparece nesse processo. Aqui há uma contradição principal comum que reúne pelo menos temporariamente os dois grupos: é a que envolve empresários e caminhoneiros e a política do governo golpista. Isso pode ser temporário porque não há de tardar que caminhoneiros coloquem em questão o nível de exploração e riscos aos quais estão submetidos pelas transportadoras.

Mas, por fim, resta falar de outro grupo, que tem mesmo entre os caminhoneiros forte expressão: aqueles dessa nova, obtusa e de toda equivocada “direita” brasileira, que tem preenchido as ruas, o mundo virtual e as fossas sépticas pelo Brasil afora desde 2013. Há, sem dúvida, uma porção de tresloucados que clamam pela ditadura militar e que percebem no movimento dos caminhoneiros uma oportunidade para pastar e relinchar a vontade. Mas somente se sentem a vontade por duas razões: primeiro porque o movimento dos caminhoneiros é capaz de paralisar praticamente o país, dado o peso (uma burra opção feita ali nos anos 1950 em favor da indústria automobilística) do transporte rodoviário, gerando profunda insegurança na população; segundo, porque os caminhoneiros são, como regra, politicamente conservadores. Não vamos nos alongar demais nisso, mas assim como motoristas de táxi, esse grupo de caminhoneiros que se vê como autônomo tende a perceber a sua condição de maneira cada vez mais individualizada e dependente dos seus méritos pessoais. Para esses grupos qualquer modificação na “ordem” é uma grande ameaça. Politicamente, possuem disposições bastante similares às da pequena burguesia.

É a soma das disposições políticas mais gerais dos caminhoneiros e dos alucinados com camisa da CBF que faz aparecer como algo forte a ideia da “intervenção militar”, ainda que não haja militares dispostos a fazê-lo e nem haveria razão para tanto.

Por fim, restou um grupo, esse com posições mais progressistas, de esquerda, que se dividiu na análise do processo. Alguns viram ali apenas o locaute; outros um movimento dos trabalhadores apenas; nos extremos, teorias da conspiração diversas sobre um movimento orquestrado para a instalação de uma nova ditadura ou a possibilidade de expandir a greve para outros setores a fazer a revolução socialista. Enfim, uma porção de análises que não conseguem lidar, no geral, com as contradições do movimento mas, principalmente, com dados da realidade objetiva muito mais simples e notórios.

Na minha perspectiva não vivemos uma crise que vai além das reivindicações justas de um grupo de trabalhadores e da fusão deles com os interesses mais imediatos de empresários que pretendem arrancar vantagens de um governo fraco, ilegítimo e que nada tem mais a perder. Que os efeitos dessa paralisação são grandes todos estamos vendo. Mas não há razão para enxergar aí nem o aprofundamento do golpe, muito menos a revolução. No primeiro caso, porque caminhamos para o fim desse governo e a possibilidade da realização do projeto golpista: passar às mãos do PSDB via eleições o comando da agenda neoliberal no país, com Lula preso e sem adversários mais difíceis de serem batidos. No segundo caso, ficar dizendo, à esquerda, que o movimento dos caminhoneiros abre a possibilidade de fazermos uma greve geral e, daí, derrubarmos o governo golpista e instalarmos um governo revolucionário e popular é apenas sonho do revolucionarismo pequeno-burguês. Nós, da esquerda, fomos incapazes de evitar o golpe dessa quadrilha mequetrefe. E não evitamos o golpe porque não quisemos: não tivemos força política e base social para isso. É a partir desse tipo de constatação objetiva e concreta que precisamos pensar a realidade e as possibilidades que temos nessa conjuntura e no futuro próximo.

Claro que as imprevisíveis reações da população podem mudar as coisas e ninguém aqui tem bola de cristal ou pretende prever o futuro (na Praia Grande – SP, por exemplo, tem ocorrido saques a supermercados e “arrastões”). Mas a tendência é que logo as coisas retornem aos seus lugares, com as condições de vida dos trabalhadores brasileiros piorando, como já vinha ocorrendo. Fica a necessidade de lutar para que ocorram as eleições de outubro e emplacar uma derrota eleitoral ao menos nos golpistas: essa é, na correlação atual das forças, a hercúlea tarefa da esquerda consequente e de setores progressistas do Brasil. O resto é conversa fiada, pataquadas de extremos da esquerda e da direita.
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1948-2018: O rastro de sangue do facho-sionismo
25/05/2018 ~ DEIXE UM COMENTÁRIO


João Quartim de Moraes
Na aldeia palestina de Deir Yassin, fincada numa colina rochosa na orla oeste de Jerusalém, um pequeno grupo de três pedreiros, três talhadores de rocha e um motorista de caminhão estavam terminando seu turno de vigilância durante a noite de 8 para 9 de abril de 1948. Não havia como não se sentir ameaçado.
Entre dezembro de 1947 e março de 1948, muitas outras aldeias (Beld Shaikh, Sasa, Karf etc.) haviam sido varridas do mapa pela Haganah, a principal organização armada clandestina sionista, e por dois esquadrões da morte especializados nos métodos mais cruéis e covardes de ação terrorista, Stern e Yrgun, nos quais os futuros primeiros-ministros israelenses Begin e Sha­mir começaram suas peculiares carreiras militantes. Decididos a conquistar o máximo de terreno para o Estado que pretendiam proclamar unilateralmente no dia 15 de maio de 1948, data fixada pela ONU para o término do mandato britânico, os destacamentos de choque sionistas estavam utilizando a fundo a superioridade de sua organização militar e de seus armamentos, ampliaram a escala de sua ofensiva.



Ás 4:30 da madrugada de 9 de abril, tropas de assalto combinadas do Stern e do Yrgun irromperam em Deir Yassin. O grupo de vigilância as viu chegar e deu o alerta. As armas de que dispunham os moradores eram irrisórias, comparadas às dos assaltantes. Mesmo assim eles resistiram cerca de duas horas, até esgotarem as munições. Começou então uma orgia de bestialidade que sequer poupou mulheres grávidas, cujo ventre foi aberto a facadas. Duzentos e cinquenta e quatro palestinos foram assassinados; dezenas de meninas foram estupradas, um recém-nascido foi arrancado dos braços de sua mãe, jogado ao chão e pisoteado. A obra de destruição da aldeia foi completada com dinamite. (Um relato mais circunstanciado da chacina de Deir Yassin está no livro Ô Jerusalém, escrito pelos jornalistas Dominique Lapierre e Larry Collins; há tradução em português). Os depoimentos dos poucos sobreviventes aos policiais britânicos foram reunidos por Sir R. C. Catling, diretor-geral adjunto do Criminal Investigation Department britânico na pasta “secreta e urgente” nº 179/11017/65. Eles contêm pormenores horripilantes.

Setenta anos depois, em 14 de maio passado, a execução em massa de palestinos de Gaza mobilizados contra a transferência para Jerusalém da capital de Israel foi mais rápida. O exército israelense simplesmente atirou na multidão desarmada, matando sessenta e um manifestantes, que se somaram aos que já vinham sendo sumariamente executados desde o início dos protestos em 30 de março, num total de pelo menos 112 palestinos, entre os quais 14 crianças. A responsabilidade por mais este crime contra a humanidade cabe não somente ao governo facho-sionista, mas também a Trump, que tomou a decisão provocadora de transferir para Jerusalém a embaixada estadunidense, violando acintosamente as Resoluções 476 e 478 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de agosto de 1980, que respectivamente declararam a parte oriental da milenar capital da Palestina território ocupado por Israel e convidaram as embaixadas então instaladas em Jerusalém a se transferir para Tel Aviv. Todas acataram a resolução. Essa vitória diplomática e moral de um povo esbulhado e humilhado é agora torpedeada pelo Al Capone da Casa Branca.

O covarde massacre de Gaza foi condenado mesmo pelos satélites europeus da Otan. Só os estafetas de Trump e os funcionários do Estado terrorista atreveram-se a tentar pôr a culpa no Hamas, que governa Gaza (transformada num enorme ghetto bloqueado por terra, mar e ar pelas forças armadas israelenses), de ter usado crianças como escudos humanos. Mesmo a supor que houvesse um átomo de verdade nessa falácia, a chuva de balas foi indiscriminada e todas as vítimas foram atingidas dentro dos limites da faixa de Gaza.

Nem toda arrogância é cínica, nem todo cinismo é boçal, mas o cônsul de Israel em São Paulo juntou esses três maus traços de caráter declarando à revista Veja que “Se quiser, Israel poderia destruir Gaza em apenas uma hora” (16 de maio de 2018). Não sabemos se o mau português é do Cônsul, da Veja ou dos dois juntos, mas a ambiguidade do enunciado sinaliza a torpeza do raciocínio. Dizer: “se, Israel quisesse, poderia”, estaria sugerindo que Israel não quer extermínio rápido, portanto que a ideia é limitar-se a matanças esporádicas; dizer: “se Israel quiser, poderá”, é ameaçar diretamente. O Consulado israelense e o periódico de extrema direita ficaram no meio do caminho, não dizendo nem uma coisa nem outra, mas deixando confusamente entender ambas. Eles insultam não somente os princípios humanitários consagrados na infelizmente impotente Carta da ONU, mas também a inteligência alheia. Qualquer força aérea pode destruir cidades indefesas em uma hora, talvez em meia hora. A Luftwaffe nazista fez isto na aldeia basca de Guernica em 1937. Israel, que dispõe de armas nucleares toleradas pela “comunidade internacional” (=o bloco imperialista e seus satélites) poderia, seguindo o exemplo de seus protetores estadunidenses em Hiroshima e Nagasaki, aniquilar grandes concentrações humanas em um minuto. Não o fazem por duas razões complementares: os dejetos radioativos de uma explosão nuclear em sua fronteira também os atingiriam e, sobretudo, potências que não comem na mão do Pentágono dispõem de arsenais nucleares bem maiores do que os deles. Tal é a lógica da força bruta de destruição maciça.

Publicado originalmente em http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=9196&id_coluna=24 , 25/05/2018.

A continuidade do golpe e a contradição principal
11/04/2018 ~ DEIXE UM COMENTÁRIO


Cesar Mangolin



O golpe ainda não se completou. O caráter de classe do golpe e, portanto, a sua razão fundamental, vai agora aparecer de maneira mais escancarada, afinal se trata de garantir a consumação dos interesses do consórcio que reuniu a alta finança, a burguesia associada, grandes corporações estrangeiras e a geopolítica mundial em favor dos EUA, contrário às políticas do ciclo dos governos petistas no sentido de perceberem a possibilidade de ganhos impedidos por certa preponderância de uma fração da burguesia que prestava os serviços voltados ao desenvolvimento de alguns setores fundamentais e pelas políticas de desenvolvimento social, que destinavam porções da riqueza produzida socialmente e da arrecadação à melhoria das condições de vida de populações secularmente deixadas na linha da miséria e da pobreza, bem como para o investimento em serviços públicos fundamentais para essa população, como a educação pública e a saúde. Esses setores do consórcio golpista não deixaram de lucrar bastante com o ciclo de governos encabeçado pelo PT: apenas sabem que é possível ganhar muito mais e recolocar o Brasil na condição de um simples satélite do imperialismo, um país da periferia do sistema que serve ao centro, quebrando as pretensões de uma autonomia na política internacional, estabelecidas e ensaiadas pela entrada no BRICS e por acordos bilaterais com países em condições similares de desenvolvimento e ocupando lugares comuns no quadro internacional.

A pequena burguesia histérica aparecerá agora como um problema a ser resolvido. Os criadores da onda fascistizante precisarão dar conta do monstro que criaram e deverão procurar as formas de fazê-lo sair de cena. O consórcio nacional e internacional da burguesia golpista precisa se desvencilhar das motivações da base social que criou para o golpe. O suposto combate à corrupção deu impulso ao discurso moralista e repleto de preconceitos e ódio, levou a uma histeria coletiva, criando um amontoado de gente para o qual não há história, não há lei, não há nada: apenas a ação de cães raivosos, repetindo uma ladainha decorada, sem sentido e com ações cada vez mais violentas. Será uma tarefa árdua e não sem riscos e contradições a tentativa de apascentar sua récua, uma vez que ocorreu a prisão daquele que oferecia maior risco ao projeto golpista, supostamente a situação eleitoral mais tranquila.

O golpe, como todos sabem, nada teve com o combate à corrupção. Ou teve, mas da maneira inversa daquela que entenderam seus cães de guarda, como foi bem expresso naquele áudio do senador Romero Jucá, que explicitava a necessidade de reunir, além dos já citados setores, também os nossos seculares bandidos que vivem da política institucional, os militares e o judiciário. Tratava-se de atender aos interesses diferentes desses setores todos, mas que apontavam para uma necessidade imediata: a derrubada da presidenta Dilma Rousseff, cujo governo permitia a investigação dos crimes de corrupção. Essa era a sangria que deveria ser contida, segundo Jucá: era necessário derrubá-la para que todos eles não fossem pegos, já que não conseguiram derrotar esses governos nas urnas. Sempre é bom insistir que foram os méritos dos governos de Lula e Dilma e não os seus defeitos que foram julgados e condenados. Nossa história possui exemplos de momentos similares, em que avançamos nas conquistas sociais e temos, na sequência, uma saída golpista, que lança tudo ao chão e nos obriga a recomeçar quase do zero. Podemos pensar na crise que envolveu as duas deposições de Vargas (a segunda mais dramática, sem dúvida, com o suicídio do presidente) e a conjuntura do começo da década de 1960 e a deposição de João Goulart, seguida da instalação da ditadura civil-militar que persistiu até 1985, de triste memória em todos os aspectos.

Não há ninguém desinformado nessa história. Ao concentrarem seus esforços e mostrarem seus dentes apenas para os casos de corrupção envolvendo o PT e outros participantes do governo, todos fizeram vista grossa à continuidade das práticas bastante conhecidas de todos nós. Nesse caso, há a complacência com alguns partidos e políticos e a severa perseguição daqueles que representam o ciclo de governos anterior. Perseguição que chega ao cúmulo da mentira e de julgamentos que não têm por base as provas necessárias para condenação. Inclusive fazendo do STF um órgão que resolve legislar, extrapolando o seu papel e indo contra a Constituição Federal, o que escancara a fraude e o golpe, além de detonar uma crise dentro do próprio judiciário.

Mas tudo isso apenas revela o caráter de classe do golpe, bastante distante dos discursos que têm motivado o ascenso de grupos e militantes de uma nova direita, que não entende bem o que isso significa. O golpe ainda não terminou. A ideia é que ele termina com a passagem do governo do Brasil ao PSDB. Isso exige uma autocrítica: há pouco menos de um ano, respondi umas perguntas feitas pelo camarada Eduardo Vasco, para o Pravda. Vivíamos o momento das denúncias contra Temer e os rumores de um golpe dentro do golpe. Ali, acreditei que o presidente golpista não seria capaz de se sustentar e que cairia em breve. Errei feio: não contei com a capacidade de articulação e com o poder de compra do “apoio” necessário na mídia, no Congresso e no Judiciário (com promoções e bilhões distribuídos de acordo com a necessidade do momento). Outro erro cometido, claro, foi a tentativa de “prever” o futuro, como algo determinado, e não as possibilidades postas e as probabilidades.

Pois bem, errei ao acreditar que o golpista Temer cairia ali, mas não insisto na compreensão de que a consumação do golpe passava, necessariamente, pela entrada do PSDB no governo. Faltou ali pensar numa outra opção tática do próprio PSDB: entrar com um mandato tampão após uma saída de Temer poderia complicar as coisas nas eleições de 2018. Melhor esperar e cumprir outros passos importantes para garantir a vitória eleitoral (ou tentar fazê-lo pelo menos), incluindo aí uma dúbia posição diante da população com relação ao governo golpista de Temer (falo da tentativa de parecer não pertencer ao governo, enquanto lhe dá base), passando, obviamente, pela prisão de Lula e impedindo sua candidatura.

Por que o PSDB? Repito aqui coisas já ditas naquela entrevista. O PSDB é o fiel escudeiro no país dos interesses do capital estrangeiro, da alta finança internacional e da burguesia associada. Foram quadros do PSDB, como José Serra, que estiveram nos EUA antes do golpe ajustando as coisas e prometendo a entrega da Petrobras. O PSDB é o partido que assume como programa a agenda das políticas neoliberais e a ideia de que a economia brasileira deve caminhar, necessariamente, atrelada e submetida aos interesses e grandes lances do capital estrangeiro. FHC em seus dois mandatos aplicou fielmente a cartilha do FMI, do Banco Mundial e do Consenso de Washington. A histórica foto de FHC com a língua de fora, qual cachorrinho manso, enquanto Clinton (que era presidente dos EUA), por trás, se apoiava em seus ombros, é uma boa síntese da relação do PSDB com o imperialismo. Não foi a toa que Serra seguiu, ainda que com incompetência patente e grosseiramente assumida, para o Ministério das Relações Exteriores logo após o golpe. O PMDB, Michel Temer e sua camarilha não são plenamente confiáveis.

O golpe não pode ser entendido, portanto, como uma pendenga entre ladrões de galinhas ou uma disputa entre partidos: em síntese (e é necessário insistir nisso!) o golpe deve ser compreendido como a derrubada pela força (já que não tiveram a capacidade de derrotá-lo nas urnas,como ocorreu na Argentina, por exemplo) de um ciclo de governos cujo programa para formação social capitalista brasileira tinha pretensões neodesenvolvimentistas. Podemos reunir uma série de frações burguesas que não estavam plenamente favorecidas por esse programa e de interesses diversos que explicam o golpe, tendo a crise mundial do capitalismo como pano de fundo: os interesses das frações da burguesia brasileira associada , os interesses das grandes corporações internacionais (pelo petróleo brasileiro, por exemplo), a política externa mais autônoma e a aproximação do Brasil de um eixo fora das asas dos EUA e a formação do BRICS, a ameaça de democratização e, ao mesmo tempo, de um marco regulatório dos meios de comunicação, os interesses de partidos e políticos ligados às históricas benesses do seu próprio aparelho de Estado e as sucessivas derrotas eleitorais. Isso tudo formou uma unidade de ruptura, ainda que com interesses difusos, mas uma unidade que tornou o golpe viável, após uma intensa campanha midiática e a geração de uma crise política que começou a afetar inclusive a economia.

Mas, retornando ao início do texto, o golpe possui, como qualquer golpe, uma dessas frações ou um desses grupos como dominante e, em última instância, será aquela fração que precisa se impor no processo. O processo eleitoral tende para o favorecimento da vitória de um grupo de maior e estrita confiança para fazer com que os interesses do grande capital internacional e da burguesia local associada prevaleçam sobre os demais. Os fantoches desses interesses pertencem ao PSDB. É a ideia de um mandato, finalmente, conquistado pelo voto, após quatro derrotas eleitorais.

Mas, como diria Garrincha, é preciso combinar essa tática com os russos… Ainda que blindados pela grande imprensa, os tucanos possuem dois grandes problemas: o primeiro é que não possuem força política suficiente para escapar do jogo “republicano” da compra de apoio, muito menos escapar do loteamento do patrimônio público para que seja sangrado pelo grosso dos nossos políticos profissionais e seus partidos, verdadeiros bandidos que provam todos os dias que o crime, bem organizado ou não, sempre compensa. Aliás, a ausência da força política se deve ao fato de que a tucanagem participa ativamente e com os seus melhores quadros do mesmo esquema. O segundo grande problema é a corja fascista gerada por esse processo, que não possui, necessariamente, uma direção bem consolidada e pode muito bem sair totalmente de controle, como vimos recentemente nos eventos do sul do país e temos cotidianamente notícias de suas barbaridades e violências. Essa gente tende a não ver o PSDB como o vê a alta finança internacional e a burguesia associada.

Enfim, temos um quadro bastante complicado. Penso que, tendencialmente, devam começar a aparecer nos meios de comunicação “denúncias” envolvendo o presidente golpista de plantão e outros candidatos à presidência. Também deve ser possível que, em breve, os tucanos declarem o rompimento com o governo, num lance apenas midiático. Mas o fato mesmo é que a prisão de Lula apenas escancara o caráter de classe do golpe e abre uma etapa, com grandes dificuldades e com o imprevisível e imponderável jogando um papel importantíssimo: algumas faíscas podem resultar num grande incêndio. Isso porque poucas vezes estivemos tão próximos de fazer explodir o barril de pólvora que é a formação social brasileira e seus seculares mecanismos de manutenção da exploração popular. O barril está sem a guarda devida, pois falta quem seja capaz de aglutinar as forças necessárias para garantir a hegemonia do processo.

Correndo o risco de parecer banal, penso ser necessária muita atenção para não morder as iscas que pretendem precipitar as organizações de esquerda às ruas com disposições mais radicais em condições acentuadamente desiguais de luta. Vale manter a objetividade e compreender a correlação de forças. Na nossa conjuntura, a contradição principal (que se expressa na oposição entre as frações burguesas que encabeçaram o golpe e os interesses do desenvolvimento nacional e autônomo e da melhoria das condições de vida dos trabalhadores) ainda passa pela necessária articulação de uma frente capaz de derrotar a tucanagem e congêneres nas eleições de outubro. Uma vitória eleitoral de forças de esquerda ou articuladas numa frente mais ampla e comprometida com a retomada e o avanço progressista das políticas anteriores derrotaria o golpe e colocaria para as forças de esquerda condições mais propícias para a abertura de uma nova fase de lutas, qualitativamente diferente.
O pastorzinho e seu rebanho de braços dados com o fascismo cotidiano.
23/03/2018 ~ 2 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

Escrevi um pequeno texto e publiquei por aqui faz algum tempo. Alguns anos, aliás. O título era “O infeliz Feliciano não fala ao vento”. Replico alguns trechos daquele texto aqui. Naquela ocasião o infeliz havia tentado justificar a suposta inferioridade dos negros e do continente africano (!) a partir de uma passagem bíblica, que indicava que deus os havia amaldiçoado. O sujeito é bom em falar besteira e propagar violência: disse coisas similares sobre homossexuais, sobre portadores de HIV, sobre as mulheres. Nesta semana, o infeliz pastor de asininos chamado Feliciano, que é deputado federal, acusado de estupro, de inteligência questionável e de valores reprováveis voltou à carga, fazendo gracejos com a execução da vereadora do PSOL do Rio de Janeiro e com os que militam à esquerda.

É sempre de lamentar qualquer pessoa que comemore ou faça graça com a morte de alguém. Principalmente nas condições e pelas patentes motivações da execução da vereadora. De lamentar mais ainda são aqueles que se apressaram a publicar uma série de informações mentirosas sobre a vereadora Marielle Franco, como se justificassem a sua morte. Mesmo que todas as mentiras publicadas fossem verdade, ainda assim, comemorar ou justificar a morte de alguém e naquelas condições é algo que revela caráter duvidoso, valores rebaixados e uma violência ilimitada.

Claro que essa violência partiu de mais gente e não apenas dessa parcela de cristãos estúpidos que segue gente como esse pastor e que consegue conciliar cristianismo, safadeza e violência que faria inveja a qualquer membro da família do papa Alexandre VI, o Bórgia. Disposição, aliás, que coloca cristãos ao lado do que há de mais reacionário, antipopular e violento no país, como a síntese da estupidez personificada no nazi-cristão Bolsonaro (não esqueçam que ele foi batizado pelo também pastor – e ex-candidato à presidência – Everaldo nas águas do Rio Jordão!). Não é por acaso que seu candidato a vice já foi escolhido dentre eles: um pastor selecionado num chiqueiro repleto de outros pastores imbecis tanto quanto o cabeça de chapa e seus seguidores.

Há, sem dúvida, uma confluência ideológica entre os nossos neofascistas e uma parcela dos cristãos, assim como dentre uma considerável parcela da pequena burguesia, que serve de base social ao retrocesso que vivemos.

Como escrevi na primeira oportunidade, o que chama mais a atenção é que o tal pastor não fala ao vento: fala para um rebanho que parece ser tristemente grande. Ele foi feito deputado com alguns milhares de votos; tem seus fiéis; representa não apenas a si próprio ou a uma pequena comunidade, mas faz coro com milhões de vozes, de outros tantos pastores e seguidores cegos de uma fé estúpida, porque preconceituosa, excludente e baseada em preceitos questionáveis. O pastor não fala ao vento porque é expressão de uma parcela considerável de brasileiros, cristãos ou não, que vêm os negros e homossexuais como excrescências, assim como vêm os mais pobres como “gente diferenciada” e, fundamentalmente, levam ao extremo uma violência dirigida contra os mais pobres, mais vulneráveis socialmente e contra aqueles que se levantam e lutam contra as desigualdades que vivemos.

Eu estou convencido que é um traço cultural nosso, herança ainda da nossa formação colonial e replicada e ajustada às transformações pelas quais o país passou nesses cinco séculos. Um traço característico de uma formação realizada em todos os sentidos através da violência e da exploração bestial de vastos contingentes da população. E não é somente violência direta e explícita. É também o que nos faz permissivos com os mais ricos e implacáveis com os mais pobres; é o que faz considerar com pesos distintos as ações que partem de classes distintas, que são praticadas por grupos mais ricos ou mais pobres: o uso de drogas pode ser glamouroso ou ser um vício detestável; a orientação sexual e as parcerias múltiplas podem ser festejadas ou reprovadas; mesmo a corrupção pode ser suportada ou considerada o mal do século.

Nosso país ainda é um país de miseráveis e pobres. Tanto no escravismo, quanto com o advento das incríveis oportunidades de diversificação da miséria trazidas pelo desenvolvimento capitalista, tratou-se de justificá-la atribuindo aos que padecem dela a responsabilidade. Mesmo dentre os que discordam do tal pastor de tolos há um grande contingente que faz o discurso liberal de que o acesso à educação resolveria esses problemas. Ora, isso nada mais é que atribuir a miséria à ignorância, portanto, a uma responsabilidade dos próprios miseráveis que poderiam ser salvos pelas palavras de um bom e bem intencionado professor que, no geral, pensa como um pequeno-burguês e está carcomido até às entranhas por esses preconceitos todos.

A pequena burguesia (ou a “classe média”), no seu combate intensivo aos programas sociais de distribuição de renda, costuma utilizar a frase do “Não dar o peixe, mas ensinar a pescar”. Novamente, por detrás da frase, temos a atribuição da responsabilidade da miséria à ignorância. Uma inversão comum, portanto, visto que a ignorância decorre da miséria, e não o contrário. Atribuir ao violentado a responsabilidade da violência que sofre é um recurso cotidiano das nossas relações. Triste exemplo são as violências de todo tipo contra as mulheres e as tentativas de justificá-las. Outro exemplo? Tente tratar do tema do racismo com qualquer grupo e conte no relógio: garanto que em menos de três minutos a frase “mas os negros são mais racistas”, a ideia do racismo reverso e a triste noção do suposto vitimismo aparecerão e embolarão o tema.

A ignorância não é propriedade privada dos miseráveis: a maior parte do povo brasileiro padece dela, mesmo os círculos intelectualizados, em todas as classes sociais. Isso não se resolve com educação formal. O que está enraizado secularmente no viver e no pensar não se resolve mudando apenas o pensar em um de seus níveis, como o acúmulo das informações recebidas por vias formais. Há um nível mais profundo do pensar, aquele que é determinado pela vida, que justifica o princípio da filosofia materialista que afirma que pensamos como vivemos. Sair da ignorância significa, portanto, mudar o viver, que muda o pensar.

Parece que a maioria das pessoas, embora tenham as informações necessárias que rompem com os preconceitos como os expressos pelo pastorzinho da vez, não é capaz de sintonizar a vida e o pensamento. Lá no fundo, determinados pela vida prática, balançam a cabeça como jumentos concordando com o pastor. Seu público é, infelizmente, muito maior do que se pensa.

Mas há um bom sinal nisso tudo: a radicalização do discurso desses líderes religiosos, políticos medíocres e movimentos de moleques fascistoides, escancarando seus preconceitos e informações falsas, leva a uma parcela considerável dos que ainda acreditam e replicam essas bobagens os elementos primeiros do rompimento, ainda confuso, com a moral de rebanho. O ápice do que foi construído sobre a mentira é também sinal do começo da queda.

Os que lutam como Marielle Franco pelo “belo, pelo justo e pelo melhor do mundo”, como escreveu Olga Benário, assistirão a derrota do pastor da vez e seus congêneres de um local privilegiado.








Moralistas imorais
09/02/2018 ~ 6 COMENTÁRIOS

João Quartim de Moraes


Não somente entre os defensores das causas sociais e do desenvolvimento nacional autônomo, militantes da democracia, da causa do povo e do socialismo, mas também entre os brasileiros honrados, para os quais a coisa pública não se confunde com a “cosa nostra”, é fundada e forte a convicção de que o processo de Lula configura uma escandalosa farsa judiciária.

Juristas dignos e articulistas de jornais de prestígio internacional consideraram a incomum celeridade com que foi marcado o julgamento de Lula em 2ª instância (após sua programada condenação em 1ª instância) um signo infalível de um plano sistematicamente articulado para impedi-lo de se candidatar a presidente. A sintomática unanimidade dos togados de Porto Alegre confirmou que estavam recitando um “script” que padecia, antes mesmo de qualquer consideração propriamente jurídica, de um vício de raciocínio que os lógicos chamam petição de princípio: dar como demonstrado aquilo mesmo que teriam de demonstrar.

A sinistra paródia de justiça de 24 de janeiro passado inscreve-se no “vale tudo” da direita para impedir o retorno de Lula à presidência. A lógica é perversa, mas simples: se o golpe judiciário de 2018 não completar o golpe parlamentar de 2016, terá sido em vão que o bloco reacionário neoliberal do Congresso e seu braço judiciário-policial violentaram o espírito das instituições constitucionais, agrediram os interesses nacional-populares e expuseram seu cinismo e hipocrisia à execração da opinião democrática brasileira e internacional.

A audácia dos rábulas judicantes é proporcional à percepção de sua própria força. Sabem que são abominados pela importante parcela dos eleitores de quem eles pretendem confiscar o direito de escolher o presidente, mas também sabem que contam com o apoio incondicional do “mercado” (entendamos, dos aventureiros, dos agiotas e de outras sanguessugas da especulação financeira) e da multimilionária “indústria” da intoxicação mediática. Contam também com o apreço da cúpula das Forças Armadas, demonstrado na condecoração da dupla Moro/Luciano Huck (Lava/Jato/Rede Globo) em abril de 2017 com a Ordem do Mérito Militar. Nesta comemoração, discursando em presença de Temer, o general Villas Boas, comandante do Exército, enfatizou que o Brasil passa por uma “aguda crise moral”, com “incontáveis escândalos de corrupção” que “comprometem o futuro”.

Seria importante aprofundar as ideias do general. O futuro se faz no presente. Que futuro ele quer com Temer presidente? Sem dúvida, a principal homenagem do Exército era para a dupla caipira Moro/Luciano Huck. Mas Moro deu ajuda decisiva para Temer continuar na presidência. Os dois, o juiz e o presidente, são parte do problema e não da solução da “aguda crise moral” que inquieta o comandante do Exército. Basta lembrar que no final de novembro de 2016 o inquisidor de Curitiba anulou 21 das 41 perguntas enviadas pelo cleptobíblico Eduardo Cunha a seu parceiro Temer, testemunha de defesa, considerando treze delas “inapropriadas” e oito sem “pertinência com o objeto da ação penal”.

Denunciando esta decisão, Jeferson Miola explicou no artigo “Por que Moro anulou as perguntas de Cunha sobre Yunes e Henriques?” (reproduzido em 16 de dezembro de 2016 pelo portal Vermelho), que as perguntas vetadas pediam, entre outros, esclarecimentos sobre a denúncia de que “um dos pagamentos pedidos por Temer, de R$ 4 milhões” foi efetuado em 2014 “na sede do escritório de Advocacia José Yunes e Associados”. Cunha queria também perguntar a seu velho parceiro Temer se, conforme delação de Márcio Faria, diretor da Odebrecht, ele confirmava ter participado de uma reunião em seu próprio escritório, em 2010, com João Augusto Henriques, “lobista” do PMDB (preso em setembro de 2015 por atos de corrupção na Petrobrás), com o objetivo de fixar o montante das propinas a serem distribuídas para o PMDB. É este um procedimento padrão dos justiceiros da Lava Jato: fechar os olhos para os crimes de seus parceiros políticos da direita e despejar sua sanha punitiva nos adversários de esquerda.
Ao condecorar o falso Catão da inquisição curitibana, o general não podia ignorar a maneira facciosa com que ele vinha conduzindo suas duvidosas atividades. Moro, ademais, integra o vasto pelotão de juízes que recebem substancial auxílio moradia mesmo para atuar na cidade em que moram em casa própria. Manipulam imoralmente a lei para se locupletar. Que “moral” ele tem para defender a moralidade? É exatamente o que fizeram e continuam fazendo os golpistas: usam a letra da lei para aniquilar seu espírito.

A parcela majoritária do eleitorado brasileiro, que sofre as consequências dessa malandragem burguesa e luta decididamente contra os que estão confiscando seus direitos, inclusive o de votar em Lula, não está em “crise moral” alguma. A crise, ou mais exatamente a deliquescência moral, está no campo da burguesia, dos espertalhões da finança, dos marqueteiros milionários e também dos que acionam a máquina policial-judiciária em nome de valores morais de que eles próprios carecem.

“Nós limpamos a bunda da sociedade!”
14/10/2017 ~ 1 COMENTÁRIO


Cesar Mangolin

Relanço aqui uma reflexão de alguns anos em comemoração ao dia dos professores e, porque não, ao dia das crianças: professores e estudantes podem refletir sobre nossa função e nossas ilusões. O texto é o mesmo de 2010, com poucos retoques. O título continua sugestivo…

A frase que nos serve de título foi dita por uma professora de uma escola de ensino infantil, que reclamava das suas precárias condições de trabalho e da falta de um material básico para trocar as fraldas das crianças: luvas descartáveis.

Para ser sincero gostei muito da frase. Talvez essa seja a melhor síntese, no final das contas, do papel dos professores da educação formal, em todos os níveis: limpar a bunda da sociedade! Lendo até o final você vai entender o porquê.

A frase não é polida e nem gentil, sem dúvida. Mas defendo que a palavra falada e escrita permita que se entenda claramente a intenção daquele que fala ou escreve. Tenho certeza que muitos já compreenderam o texto todo lendo apenas a frase em questão. Portanto, abaixo a polidez!

Já insisti nesse espaço no papel reprodutor da educação formal. O filósofo Louis Althusser, que tratou a escola como um aparelho ideológico fundamental das formações sociais capitalistas, chamava a atenção para o fato de a escola aparecer como algo inquestionavelmente necessário para a nossa vida, assim como a igreja parecia sê-lo nos tempos do feudalismo. Daí que dificilmente alguém pensa na possibilidade de sua eliminação. Sempre vem a pergunta: “mas o que colocamos no lugar?” – Que tal refletir um pouco sobre a possibilidade de não colocar nada em seu lugar? Parece impossível, não é? Daí os pedagogos e outros profissionais bem intencionados passarem a vida tentando e propondo formas de arrumar essa máquina de moer gente. O problema é que a escola não tem defeito algum: cumpre, exatamente, seu papel.

Na verdade, poucos conseguem perceber a insanidade do processo escolar. Para os que passam por todos os seu graus, são mais ou menos 17 anos de frequência regular, quase que diária, desde a mais tenra idade até a vida adulta. Caso se queira somar aí a pós-graduação, podemos incluir pelo menos mais 6 anos.

Nela são transmitidos os condicionamentos básicos, mais que a construção de conhecimento: uma “visão de mundo” que torna naturais e razoáveis as relações sociais de produção capitalistas, o reconhecimento e a obediência cega às hierarquias, ficar preso e fazer coisas nas quais não se vê sentido, enfim, aprende-se a viver nesse mundo e aprende-se, pela ideologia do mérito, a aceitar a distribuição que a escola opera para o “mercado” de trabalho. Indivíduos, avaliados individualmente, que são apenas um número durante anos e convencidos de que são os únicos responsáveis por sua trajetória de vida, seu sucesso ou seu fracasso. Claro que sucesso e seu contrário também são ideologicamente construídos: significa o exercício de algum trabalho não-manual e a acumulação de determinada quantidade de riqueza material ao longo da vida. Os que não o alcançam aprendem a atribuir à sua própria incompetência individual a responsabilidade de seu trágico fim. É a ideologia do mérito pessoal e seus efeitos.

A verdade é que não existem postos de trabalho não-manual para todos, assim como não existe correlação entre o número de diplomados e as vagas abertas nesse grande comércio de carne humana que se chama, de forma equívoca, “mercado de trabalho.” Não havendo essa relação direta, ocorre o fenômeno do que prefiro chamar de sobrecertificação, no lugar da batida sobrequalificação. Isso porque falar de qualidade de ensino é sempre bastante complicado, gelatinoso e, geralmente, acaba despolitizado por um discurso tecnicista que pretende medir conhecimentos que seriam imprescindíveis (decididos por quem?).

Havendo um número de diplomados sempre crescente, as empresas passam a elevar a exigência de certificação para a ocupação de postos que, há pouco tempo, bastava o ensino fundamental. Por sua vez, essa elevação provoca a corrida aos bancos escolares e aos bancos das universidades, atrás do famigerado diploma, e isso alimenta uma grande máquina de fazer dinheiro para as instituições privadas, jamais a construção do conhecimento.

A obrigatoriedade de “estudar”, essa pena que deve ser cumprida pelo único crime de ter nascido, torna qualquer coisa que signifique construir conhecimento como algo chato, enfadonho, enfim, como qualquer coisa que não se faz quando se tem possibilidade de escolher. A escola, no geral, elimina a possibilidade e a vontade de construir conhecimento.

E quem são os agentes diretos dessa desconstrução? Quais são aqueles que, por vezes de forma inocente, transmitem ao longo da vida ideologia travestida de ciência à quase totalidade da população? Somos nós, os professores.

Pode-se argumentar que nem todos fazem isso. Mas não adianta coisa alguma não fazê-lo: a lógica do sistema é determinada por um objetivo, que é a necessidade da certificação. A obrigatoriedade da frequência, as notas nas malditas provas, são suportadas em nome da possibilidade de viver um pouco melhor, ou continuar a viver como se vive, mantendo posições, como faz a classe média.

Ainda que um professor se esmere na tentativa de reverter esse fim funesto, a lógica do sistema e seus demais colegas fazem o trabalho de coveiros. Busca-se a escola para poder conseguir uma inserção melhor nessas mesmas relações de exploração do trabalho, não para transformá-la. A ideologia do mérito pessoal movimenta as pessoas e é estimulada pelos professores e pelos “media” o tempo todo. Buscam a escola para lutar por sua escravidão, como se lutassem pela liberdade!

Está aí o segredo do aparelho escolar e sua importância: inculcar a ideologia dominante, distribuir os indivíduos nos postos de trabalho, garantir as condições de reprodução do modo de produção capitalista.

É como se a escola tivesse uma ação de tornar, na aparência, limpas e saudáveis essas relações. Através do processo escolar se justifica a exploração do trabalho e se faz creditar as posições às capacidades e incapacidades pessoais. A ordem capitalista é vista, portanto, como algo bastante razoável, justa e natural: os melhores avançam, os piores lhes servem.

A escola oculta as relações sociais reais, não permite que se compreenda a essência das relações sociais capitalistas, limpa a sujeira desse tipo de organização social, ou a oculta, pelo menos.

Os professores são linha de frente nessa tarefa: não limpam a bunda de gente, limpam a bunda da ordem capitalista, para que ela apareça como algo belo, justo e natural.
Curso sobre Darcy RIbeiro
12/07/2017 ~ 2 COMENTÁRIOS
Camaradas,
para quem quiser esquentar as férias estudando um pouco de maneira
mais tranquila: segue um interessante curso do ICHS sobre o grande Darcy Ribeiro e
sua obra “O povo brasileiro” . Interessante para quem já leu ou pretende ler ou se informar um tanto sobre o contexto da produção do antropólogo brasileiro, o lugar dessa obra no conjunto da sua produção e o passo a passo da obra em si. Participei do curso ao lado do meu camarada e amigo, prof. André Olobardi. Ficou bem legal e tem um certificado dado pelo ICHS. Abraço!
Há outros cursos disponíveis!!!

https://www.ichscursoslivres.com/cursos-disponiveis








Viuvez ou adultério? O antipetismo de esquerda.
12/02/2015 ~ 7 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

Dilma concorreu as eleições com outros 10 candidatos Seis deles eram ex-petistas. Eduardo Jorge (PV), Marina Silva (PSB), Luciana Genro (PSOL), José Maria (PSTU), Mauro Iasi (PCB) e Rui Costa Pimenta (PCO). Nenhum deles apoiou o PT no segundo turno…

Os dois primeiros já estavam no colo da direita e se juntaram ao PSDB. O PSOL, que teve o mérito de pelo menos perceber as contradições do processo, liberou a militância para o voto, desde que não fosse em Aécio. Os dois partidos trotskistas fizeram o de sempre: declararam o voto nulo. O PCB, infelizmente, lhes seguiu os passos.

Claro que há razões apenas políticas (ainda que equivocadas na minha opinião) para a tomada de posição desses partidos, mas como não pensar que a coincidência dos ex-petistas não agrega no jogo uma pitada de questões subjetivas?

Sempre considerei o PT uma esquerda anticomunista. Valeria escrever um dia sobre isso e tentar colocar no papel de forma mais sistemática essa compreensão. Mas percebo a formação de uma esquerda antipetista, que me parece viver de dois impulsos: o esquerdismo e os rancores pela militância pregressa.

Alguém um dia criou a alcunha “viúvas do PT”… Independente daquele contexto, poderíamos pensar hoje que existe gente sofrendo de viuvez ou dos dramas do adultério… A viuvez faz lamentar aquele que não voltará jamais… O traído vive a mistura da saudade e do rancor raivoso por aquele que um dia acreditou ser o companheiro ideal para seguir até o final dessa jornada… Lembro bem, ali ainda no final dos anos 1980 e começo da década de 1990 como muitos dos que hoje engrossam as fileiras de outras organizações declaravam a certeza e o amor à alternativa popular e (na cabeça deles) revolucionária que significava o PT.

Viuvez ou adultério, pouco importa, o fato mesmo é que a chamada esquerda revolucionária é composta por partidos que saíram de dentro do PT (PSOL,PSTU e PCO) ou que recebeu militantes oriundos do PT (como o caso do PCB) ali na metade do primeiro mandato de Lula, que passaram a cumprir importantes papéis de direção e participaram de mudanças qualitativas na linha política e na organização. Há, sem dúvida, aspectos positivos nisso: o PCB ainda nas eleições de 2004 estava em coligações de direita por onde estava organizado. A partir de 2005 as coisas mudaram, mas guinaram ao esquerdismo.

As referidas organizações possuem o mérito de manterem, afirmativamente, a bandeira do socialismo e da necessidade do processo revolucionário vivos, mas que (e por razões diversas) não conseguindo participar das lutas concretas e das contradições realmente existentes em nossa conjuntura, atuam negativamente com relação à própria possibilidade de avanço desse processo, embora ressalvas devam ser feitas com relação ao PSOL, que tem feito um esforço em participar, a seu modo, da vida concreta. Além de PCB, PCO, PSOL e PSTU, há mais uma infinidade de “coletivos”, “agrupamentos”, “ligas” e outras coisas que possuem, cada qual a sua maneira e de forma cada vez mais isolada, um belo discurso revolucionário e “vanguardeiro”. Quanto menores e mais distantes da realidade, mais esses pequenos grupos se apresentam como os portadores da verdade revolucionária.

Confundindo a realidade objetiva com a própria vontade (como é próprio do esquerdismo) esses grupos confundem o objetivo revolucionário (estratégico) com as mediações necessárias e cambiantes de cada conjuntura (a tática): ao afirmar a necessidade da revolução, afirmam também que as condições para que ela ocorra já estão presentes, atribuindo aos traidores da classe (como é próprio do trotskismo) ou a pequenos ajustes conjunturais a razão do seu atraso. Não é raro dirigentes dessas organizações verem a “protoforma do proletariado revolucionário” em ação nas ruas, mesmo quando temos apenas uma manifestação massiva e plena de contradições com tendências majoritárias à direita como foram as tais “jornadas de junho”. O revolucionarismo pequeno-burguês, mesmo que tenha participado daqueles eventos à reboque e a duras penas com seu reduzido número de militantes, tende a ver-se como a essência cristalina e pura da transformação como mero ato subjetivo da vontade. Não conseguiram explicar até hoje como o “proletariado revolucionário” das ruas de junho apareceu depois, nas urnas, como eleitores de Aécio Neves e de Marina Silva e hoje se apresenta como a base social que pede o impeachment de Dilma e/ou a ditadura militar… Insistem apenas em proclamar-se os fiéis representantes da “rebeldia das ruas”, ainda que ela não ocorra…

O silêncio dessas organizações sobre a escalada de direita e golpista que vivemos é sintoma de sua ausência de realidade, de sua incapacidade de análise concreta da situação concreta, de uma posição moralista derivada daí (o famoso “isso é culpa do próprio PT que blablablabla…”) e de um ranço que apenas posso compreender como subjetivo (a viuvez ou o adultério…) que cega a todos ou parte de seus dirigentes.

Mas há dois argumentos rápidos que devem ser apresentados para justificar uma ação contrária à escalada da oposição à direita: um é sócio-econômico e mais óbvio; outro é somente político e também óbvio, não fosse a cegueira dos nossos dirigentes. Mas dizer o óbvio tornou-se praxe dos nossos dias…

Mas vamos ao primeiro: o governo de Dilma e os governos do PT têm problemas, não há dúvida. O partido ajustou-se perfeitamente à lógica do jogo capitalista, assim como todo e qualquer governo anterior, assim como todas as instâncias pelo país afora, assim como quase todos os partidos. São governos que jamais pretenderam ou prometeram fazer além do que fazem: gerenciar o capitalismo brasileiro concedendo ou reconhecendo alguns direitos a mais aos trabalhadores e às populações mais empobrecidas. Não acho, no entanto, que isso seja pouco, ou que seja desprezível.

Li, ano passado, um texto de um partido da esquerda que defendia que as duas candidaturas no segundo turno eram iguais: uma era capitalismo com mais Estado, a outra com menos… Burrice: mais ou menos Estado, nas nossas condições objetivas, significa retirar ou lançar muita gente na miséria absoluta e isso deveria interessar bastante aos que lutam ao lado dos trabalhadores…

Constatar que os governos de Lula e Dilma servem ao grande capital é como afirmar com tom de descoberta científica que fogo queima e água molha. Não apenas o de Dilma e Lula, mas também os de FHC, de Collor, de Sarney, os dos generais da ditadura… Para marxistas deveria ser bem óbvio que, dentro da ordem burguesa, não apenas o Estado, mas toda a estrutura jurídico-política serve ao grande capital. O mesmo serve também para o tratamento dos limites dos processos eleitorais dentro dessa ordem. O que falta aqui é perceber, a partir da análise da nossa conjuntura e não da que a vontade desejava que existisse, que a ordem burguesa, assim como o processo revolucionário, não são estáticos, portanto, são plenos de movimento e de contradições. É tendo como referência o objetivo estratégico que as mediações com a vida real precisam ser construídas. Isso significa participar da vida e das lutas do cotidiano dos trabalhadores, das condições severas e adversas que abrem as possibilidades de avançar um passo aqui e recuar outros ali. Significa atuar em todas as contradições possíveis dentro da ordem burguesa, no sentido de aguçá-las. Não podemos afirmar que os governos Lula e Dilma são a mesma coisa que os governos de FHC. O esquerdismo é leviano e irresponsável quando faz isso. Há, sem dúvida, uma melhora nas condições de vida dos trabalhadores, em particular dos mais empobrecidos. Mudanças que, aliás, têm mudado o cenário de alguns cantões do Brasil, utilizados até pouco tempo atrás como reserva de votos de legendas da direita, como o DEM.

Enfim, não é possível fazer festa para os governos do PT, sem dúvida, como fazem o próprio partido e alguns de seus aliados de sempre do campo da esquerda, como o PCdoB. Que o governo serve aos interesses do grande capital não há dúvida, mas isso não nos deve permitir negar que ocorreram mudanças, mudanças qualitativas, que abrem e podem ainda abrir novas contradições, tanto entre frações do capital (a financeira e a industrial, por exemplo), como abre possibilidades para a atuação dos setores mais avançados da esquerda, com possível acesso a áreas e a contingentes de trabalhadores que, tendo necessidades básicas sanadas, abrem-se também para a possibilidade de outras soluções, para além do clientelismo do Estado, pelo menos em princípio para simplesmente ter acesso a condições mais favoráveis de vida. Para que isso ocorra necessitamos de organizações comprometidas com a estratégia revolucionária, mas que tenham os pés bem grudados no chão e sejam capazes de participar dessas lutas, desse processo. Vejam que falo do “possível”: isso significa que as contradições que se abrem apenas podem ser resolvidas ou aguçadas favoravelmente aos trabalhadores caso tenhamos uma ação consequente, que saiba apontar a contradição, o caminho de sua resolução e os limites do resultado dentro dessa ordem…. Apenas com forte trabalho inserido e a partir dessas novas possibilidades há construção efetiva de organizações revolucionárias e a possibilidade, no longo prazo, da retomada concreta da perspectiva socialista…

Fora essas novas e as antigas possibilidades, fora as novas contradições que esse ciclo gera, é necessário ter responsabilidade com aqueles que estão mais fragilizados pela pobreza extrema. Ainda que sejamos ainda um país de pobres, esse período recente conseguiu retirar da fome milhões de pessoas. Isso somente é um dado secundário para quem está com o buchinho cheio e olha o Brasil a partir da janela fechada do carro e vê apenas a Avenida Paulista, sonhando com a Champs-Elysées… A manutenção desses programas e a luta popular para que avancem para além disso deve ser uma bandeira de luta das organizações mais avançadas.

Isso nos remete ao segundo argumento, que apresento de forma rápida e direta: nossos dirigentes confundem elementos teóricos que utilizamos para pensar o modo de produção capitalista com a conjuntura política que é cambiante e exige maior criatividade. Exemplo para ir ao cerne da questão: o Estado, segundo Marx e Lênin, é sempre um Estado de classe. De alguma forma, a existência do Estado sempre será a ditadura de uma classe sobre outras, o “comitê executivo” da dominação de classe etc.. Isso é verdade e característico também das formações sociais capitalistas. Mas essa que é uma ditadura de classe historicamente se reveste na forma da democracia burguesa em períodos mais ou menos longos… O elemento fundamental que faz com que essa ditadura de classe seja obrigada a conviver com maiores ou menores liberdades democráticas é a luta de classes.

Objetivamente, é a capacidade de organização política dos trabalhadores e suas organizações que forçam, alterando a correlação política de forças, conquistas sociais e também espaço de ação política. Penso que somente os tolos podem acreditar que as condições de uma ditadura escancarada pode ser mais favorável à organização dos trabalhadores que as possibilidades de ação “abertas” pela democracia burguesa… É neste cenário que devem atuar e, portanto, todas as organizações dos trabalhadores devem lutar com todas as forças contra o golpismo em marcha, seja na forma da ditadura, seja na forma do golpe à paraguaia…

Isso não faz ninguém virar petista (ou retornar ao PT)… Isso é apenas atuar na nossa conjuntura politicamente e não de forma moralista, tendo clareza da nossa realidade concreta, atuando e aguçando suas contradições. Engrossar o cordão da direita fazendo oposição pela esquerda é um suicídio político. Falam línguas diferentes, mas falam a mesma coisa. A deposição da presidente na atual conjuntura representa um grande retrocesso para os trabalhadores brasileiros. É necessário ser bastante estúpido para tratar disso analisando “culpas”, ou afirmando que esse problema não é dos revolucionários…

Essas organizações, porém, com exceção do PSOL (até certo ponto), não possuem força política alguma… Pois então: atuar na conjuntura concreta, sem a postura moralista e infantil que tem marcado suas resoluções, é o único caminho e possibilidade que possuem de ter alguma relevância política. Os partidos trotskistas jamais compreenderão isso, mas o PSOL e o PCB (que tem agido e pensado, sintomaticamente, como uma organização trotskista) têm aberta a possibilidade e têm também o dever de abrir caminho para alternativas reais e concretas à esquerda. Isso somente se constrói com a inserção nos movimentos sociais e lidando com a realidade.

Mas o esquerdismo é implacável… As eleições passadas servem de exemplo. Repito aqui algo que escrevi naquele momento: A ausência de estrutura material e o desigual acesso aos meios de comunicação de massa justificam parcialmente a parca votação das candidaturas da esquerda. Mas devemos também considerar suas dificuldades em dialogar com os trabalhadores há muitos anos e de participar dos problemas e das lutas cotidianas. Ao apresentar apenas o horizonte estratégico (socialista), sem as devidas mediações, essas organizações acabaram por se fechar ainda mais no universo pequeno-burguês que combina com sua linha política escatológica. Orgulham-se de não fazer política porque assumem o dever (moralista) de não lidar com nada que não seja diretamente a revolução. Como ela não chega logo, da mesma forma que para os cristãos Jesus demora em voltar, vivem de apontar os dedos para os que se maculam nas fétidas águas da realidade objetiva. E tocam a vida satisfeitos e plenos de razão…

Portam-se como quem chega virgem aos 100 anos e nada mais lhe resta a não ser autovalorizar a própria pureza, ainda que ninguém se importe com isso.
A culpa é da Dilma: O antipetismo de direita
09/02/2015 ~ 17 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

Um jumento em disparada faz algum estrago… Um bando deles faz mais ainda. Inconsequentes, não darão a devida importância para os danos que podem causar, apenas correm, destruindo tudo ao redor. Nem mesmo fazem ideia de quem abriu a porteira, talvez propositalmente.

Os neo-militantes de direita agem assim. Tomam problemas seculares do Brasil (como a corrupção) como se fossem obras dos últimos governos; atribuem à presidência da República responsabilidades de outras instâncias, inclusive responsabilidades dos abridores de porteiras bicudos que povoam nosso país e não se conformam com a derrota sofrida nas urnas.

Chama mais ainda a atenção que temos jumentos desembestados que se somam aos da direita vindos da esquerda, mas trataremos deles em outro texto…

Com vergonha alheia, vi gente (quase 40% da população) que atribui a falta de água ao governo federal; há quem atribua a segurança pública também. Mas há episódios mais tristes ainda: vi uma postagem que dizia que a Dilma havia concedido o direito de visita íntima a um assassino! Para esses tontos, a culpa de toda e qualquer desgraça brasileira tem nome: Dilma!

Enfim, chegamos num ponto em que a frase afirmativa “há limites para a estupidez!” somente pode ser proferida na sua forma interrogativa: “Há limites para a estupidez?” Parece que não.

A corrupção é inerente ao capitalismo… No Brasil persiste há muito. O caso da Petrobras, tomado com assombro pela mídia golpista e a classe média cor-de-rosa, é velho. Ainda era um adolescente quando trabalhava numa loja de conexões e ouvia um vendedor externo contar histórias sobre as casas de praia de compradores da Petrobras… Nessa mesma época aprendi que a propina, que “molhar a mão”, o “fazer rir” era uma prática comum. Nunca gostei nem a pratiquei, mas todos nós convivemos com ela. Quem descobriu apenas agora que as empreiteiras e demais empresas subornam compradores em processos licitatórios? Quem não sabe que há décadas no Estado de São Paulo algumas empreiteiras dividem entre si as grandes obras e “molham as mãos” de agentes do Estado? Corruptores e corruptos, farinhas do mesmo saco, crias da mesma ordem, existem desde muito tempo: isso não foi uma invenção dos governos do PT.

Mas a jumentice parece ter se tornado um adjetivo muito comum dos nossos tempos obscuros…

Há uma movimentação que envolve a grande mídia, políticos tradicionais com capivaras imensas, o tucanato, o judiciário e uma massa de manobra histérica que parece que começou a viver apenas agora e perceber as mazelas do tipo de capitalismo que se desenvolveu no Brasil.

Embora falem em nome de algum Brasil, fica claro, pelo que defendem, que não incluem o Brasil da população que mais sofreu, pela marginalização e empobrecimento contínuo, com a dragagem das nossas riquezas naturais e com a concentração de riqueza gritante e secular… A massa de manobra histérica não faz parte, obviamente, da seleta elite que concentra em suas mãos o grosso da riqueza social produzida. Os que esbravejam contra o PT e o governo não têm ideia do que estão falando; não são capazes de apontar uma solução mínima para qualquer problema. Repetem chavões, palavras de ordem sem sentido, de gente que não conhece minimamente nossa história recente.

Façam um teste: pegue um desses surtados e pergunte o que está errado e o que deveria ser feito para resolver o problema… Vai receber de volta um grunhido histérico e sem sentido, porque eles não sabem do que estão falando.

O mais triste e temerário é que forçam uma crise política seríssima, que interessa a determinados setores do grande capital. São marionetes dele…

Defendem o retorno da ditadura militar sem saber minimamente o que caracterizou aquelas duas décadas: entrega das nossas riquezas ao capital estrangeiro; perda constante de poder aquisitivo dos salários; mais de dez milhões de mortos por fome no nordeste; genocídio de populações nativas; prisões arbitrárias, censura, tortura e assassinato…

Há também a curiosa postura da classe média brasileira que tem asco de tudo que se refira a trabalhador…

Os governos do PT atendem, sem dúvida, aos interesses do grande capital. É um governo da ordem burguesa, que dirige o Estado capitalista… Mas ao deslocarem esforços e recursos no atendimento a populações deixadas de lado por nosso processo histórico, deslocam recursos dos cofres do grande capital, que sempre tem espaços vazios para serem ocupados. No momento da crise que envolvia o segundo mandato de FHC, o PT e o governo de Lula, com as garantias que deram, foram palatáveis ao grande capital. Na entrada dessa nova crise, trata-se de tornar toda e qualquer fonte sob controle absoluto. Há muita diferença numa taxa selic de 36% (segundo mandato de FHC) e numa de 12%… Ou 7.4, que foi o mínimo alcançado no primeiro governo de Dilma… Isso toca em interesses diversos, beneficia algumas frações do capital, prejudica outras. A pressão dentro do bloco no poder e a capacidade de uma dessas frações tornar o Estado seu valet é o que está em jogo…

Há muito que se estudar e escrever sobre essas contradições, mas isso toma muito espaço… Mas, principalmente, exige tempo e paciência histórica. Algo que está ausente por aqui… Mas retomarei o argumento para falar do antipetismo de esquerda depois…

Por enquanto, vale a constatação de que os neomilitantes da direita e os da esquerda preferem facilidades: análises de lógica formal, sem contradições. Um programa redondinho e internamente coerente, ainda que não tenha relação com a realidade. O papel aceita qualquer coisa: recebe textos sagrados e também é utilizado nos banheiros…

Valeria aos que histericamente pedem o impeachment de Dilma pensar um pouco nos pressupostos do que chamam de “limpeza” da política, pensar nas soluções para nossos problemas mais graves… Caso sejam capazes de fazer isso, descobrirão que as soluções que andam apoiando representam um passo atrás muito perigoso. Que as marionetes desse jogo anti-popular percebam que ajudam a abrir as portas do seu próprio abismo.
“Nós limpamos a bunda da sociedade II”: reflexões sobre a violência
04/02/2015 ~ 1 COMENTÁRIO


Cesar Mangolin

Há muita polêmica sempre que se discute o tema da violência. Dentre as tantas coisas que são mistificadas no mundo que vivemos, parece que suas causas e, principalmente, seus agentes, figuram como objetos privilegiados.

Cotidianamente famílias e amigos assistem estarrecidos a morte por motivos banais de seus membros. A televisão transmite videos de assassinatos… O sentimento de tristeza e revolta, de insegurança e medo, faz com que as vítimas potenciais, compreensivelmente, voltem sua raiva contra os efeitos dessa hecatombe social, não havendo espaço para pensar em resolver suas causas.

Como sou adepto de “colocar as coisas no chão”, algumas constatações me parecem óbvias: 1. sempre que se fala da violência a referência é à violência praticada por indivíduos, jamais a violência do Estado e, muito menos, a violência das nossas relações, que segrega e condena milhões à miséria; 2. nosso povo vive, essencialmente, dentro da “ordem” (a ordem burguesa, evidentemente): trabalha honestamente para garantir a sobrevivência do dia-a-dia, ainda que os elementos básicos para que se mantenham vivos sejam adquiridos através de pesados trabalhos, desde os que trabalham manualmente nas indústrias aos batalhões da “informalidade”, vendendo qualquer coisa nos faróis, revirando os sacos de lixo, limpando a sujeira produzida por outros, guardando carros nas ruas etc; 3. é, portanto, uma ínfima minoria a que se propõe partir para toda sorte de crimes; 4. é notável que, com raras exceções, esses criminosos fazem parte das camadas mais empobrecidas da população, ainda que isso não sirva para justificar a sua ação.

Não tenho a pretensão de fazer a apologia do crime ou dos criminosos. Constatar os dados da realidade, porém, é fundamental para poder chegar a conclusões também mais próximas da concretude de nossas relações.

Mas, comecemos com essa minoria e as soluções que estão postas legalmente, como a cadeia. Chocam as condições dos que estão presos: sem assistência jurídica, médica, psicológica; vivem amontoados; comem mal, não têm atividades regulares, convivem com os ratos e insetos etc.

Alguns poderiam dizer que os presos, por terem praticado algum crime, devem mesmo viver assim. Boa parte da população afirma mesmo que deveriam ser mortos, pura e simplesmente, em lugar de presos. A raiva dos amigos e parentes das vítimas pode fazer parecer que a morte de um infeliz resolveria o problema. Mas vale aqui o exemplo: matar uma mosca não evita que outras apareçam, sem que a causa, ou o atrativo, seja igualmente resolvido…O fato é que, pelo menos na teoria, a pena a ser cumprida por um delito qualquer tem, por princípio, uma caráter também educativo: a tal ressocialização.

Aí é que as coisas se complicam…

Primeiro, novamente, uma constatação óbvia é que a cadeia não serve para ressocializar ninguém. Todos sabemos disso. Segundo, esse ressocializar é algo extremamente questionável.

O que isso pode significar se levamos em conta as condições de vida do grosso dessa população? Sabemos que não há postos de trabalho para todos, sabemos que suas vidas não vão mudar apenas porque querem (assim como a vida de ninguém muda ao sabor de suas vontades), que vão voltar, no geral, em condições pioradas para as mesmas perspectivas de vida e de sobrevivência, portanto, as opções são apenas duas: voltam a praticar crimes ou adaptam-se à vida de humilhação e pobreza a que são relegados seus pares (como disse no início, a maioria do nosso povo pobre).

Isso tudo me parece muito óbvio…

Menos óbvia é a ação dos agentes do Estado.

Escrevi tempos atrás, neste espaço, um texto sobre os professores, intitulado “Nós limpamos a bunda da sociedade”. Penso que podemos incluir nessa tarefa mais profissionais. Além dos professores, os policiais e demais agentes do Estado e de seus aparelhos ideológicos… Mas não é a toa que professores e policiais são os que mais procuram auxílio e os recordistas de afastamento por problemas psicológicos-psiquiátricos.

A coisa funciona mais ou menos assim: as relações capitalistas típicas de um país como o Brasil produzem um exército de miseráveis, que matam um leão por dia para garantir a sobrevivência. Grande parte dessa massa apreende através da escola e dos meios de comunicação a raciocinar segundo a ideologia do mérito pessoal, no seu aspecto negativo: aprende a atribuir a si mesma incapacidades diversas que justificariam sua miséria, subordinação e o destino de ocupar os postos mais baixos, em termos de pagamento, desse negócio de carne humana chamado mercado de trabalho.

Os agentes diretos da subordinação desse primeiro contingente são os professores, além dos eunucos do reino e demais pregadores histéricos, os meios de comunicação de massa etc. Eles dão ao resultado de relações de exploração e concentração de riqueza, próprios do modo de produção capitalista, uma aparente coerência, que nega a essência dessas relações, ao mesmo tempo em que afirma a individualidade e o mérito pessoal. Dão sentido para suas vidas miseráveis.

O segundo contingente, menor, é aquele que parte (e é questionável se há, de fato, um momento em que se toma essa opção…) para a prática de crimes diversos. Procuram, através de uma forma mais rápida e prática, resolver os problemas que envolvem a sobrevivência e a possibilidade de uma vida digna. Todos, é claro, tendo na mente o que se construiu ideologicamente como sendo sucesso em sociedades como a nossa (basicamente, o acúmulo de quinquilharias e riqueza material). Esse contingente menor volta suas armas contra pares. Não volta, no geral, sua violência contra a burguesia. O objetivo é apenas alcançar, de alguma forma, o que foi construído como sinal de “sucesso” pela ordem capitalista e é obstaculizado pelas vias da própria ordem.

Para estes, vem o sistema penal e os aparelhos coercitivos: a polícia, o código penal, as penitenciárias. Seus agentes diretos são todos os envolvidos nesse lamaçal que se chama Justiça (com o “j” maiúsculo).

Claro que todos esses agentes fazem parte da mesma ideologia. Não reconhecem a gênese do processo, não pensam nas contradições, apenas atribuem aos que se “desviam da lei” a responsabilidade individual de seus crimes, pelos quais devem pagar em condições assustadoras.

Isso me faz lembrar de aspectos do filme “laranja mecânica”. Particularmente do método Ludovico. A grande sacada desse método não era exatamente o de fazer com que aquele rapaz violento deixasse de sê-lo. O mais interessante era a combinação da impossibilidade do exercício da violência com a incapacidade de auto-defesa: não ser mais capaz de defender-se de uma sociedade que permanece violenta, que foi quem exatamente gerou aquele comportamento.

A ressocialização dos presos é o nosso método Ludovico que, assim como no filme, acaba não dando certo.

A escola consegue aplacar a reação violenta a relações violentas antes que elas aflorem – diríamos que é uma aplicação do Ludovico antes da manifestação do ato, uma vacina que torna imunes de perceber a realidade todos os que passam por ela. Incapacitados de agir violentamente, igualmente impossibilitados de auto-defesa, procuram uma forma de inserção subordinada e lutam por sua escravidão como se lutassem pela liberdade.

Para os que a vacina não faz efeito, a ação violenta dos que detêm o monopólio da violência legitimada faz o trabalho necessário.

Novamente, a sujeira que as relações capitalistas produz é recolhida. Os que fazem esse trabalho sujo são igualmente membros desses grupos empobrecidos. Trabalham para a ordem que lhes relega esse serviço. Auxiliam na criação de condições para que a reprodução do capital continue seu sanguinário destino. Vêm sentido nisso tudo…

Assim como no filme, não é possível mudar comportamentos sem a transformação das relações sociais.

Os diversos agentes não percebem, mas também limpam a bunda da sociedade. Assim como também acabam fazendo, pela dor sentida, aqueles que pretendem resolver o problema pregando a morte dos que matam… Sem saber, apenas justificam algo que já acontece largamente em nossa sociedade e também deixam navegar em céu de brigadeiro a ordem que gera esses efeitos danosos.

A violência cotidiana é fruto dessa ordem. Por ela somos todos responsáveis. De alguma forma, todos os gatilhos apertados têm as digitais de todos nós.
A vida de gado e o “homo sapiens sapiens”
31/01/2015 ~ 1 COMENTÁRIO


Cesar Mangolin

Vivi na área rural durante alguns anos. Poucos anos. Por duas vezes “sapiens”, torna-se quase ofensivo comparar diretamente a vida do humano e do gado. Mas o gado tem mais decência por uma simples razão: no pasto nunca veremos uma vaca deitada sendo abanada e servida por outras, como se ela fosse, por qualquer razão, melhor ou mais interessante. Não temos nos currais um grande espaço destinado para um boi apenas, com todas as mordomias, enquanto os demais se amontoam em pequenos e sujos cubículos… Não ter as patas dianteiras livres, não falar e ter o cérebro menos capaz que o nosso não permitiu às vacas estabelecer distinções sociais, fazer discurso meritocrático e jamais pensariam na frase infeliz do “ensinar a pescar”… Muito menos aprenderam a explorar umas às outras…

Mas há coincidências lamentáveis… Lembro de quando estava na área rural. Chamava a atenção a vida do gado e sua rotina. Vale pensar nela um pouco.

Pela manhã, são postos a trabalhar os bois, as vacas e os bezerros. As vacas são ordenhadas, os bezerros amamentados, todos encaminhados para o pasto após a noite presos no curral. Claro, menos os bezerros que ainda mamam, para que não suguem todo leite das vacas ao longo do dia.

Seu trabalho é bem específico: as vacas devem comer, reproduzir e produzir leite; os bois devem comer e engordar, também reproduzir; os bezerros também comem e engordam e ocuparão, em breve, a posição dos adultos.

Os bois e as vacas já sabem bem qual é a rotina. Pouco trabalho dão. Os bezerros ainda estão aprendendo o processo, mas rapidamente se adaptam. A vida do curral para o pasto e do pasto para o curral não é muito cheia de emoções.

Um ou outro as vezes sai um pouco da linha, mas a intervenção precisa de seu dono logo os coloca dentro da ordem. Para os mais rebeldes, uma punição severa resolve: açoites, rabo quebrado, isolamento dos demais… simples assim.

Não é nem mesmo necessário que o dono deles diga nada pela manhã: simplesmente destranca a porta e eles saem em direção ao pasto para mais um dia.

Bois e vacas não pensam, portanto, não questionam nada dessa vidinha besta. É como se fosse determinado por algo, pelo além, que a vida deve ser assim e pronto. Apenas vivem um dia após o outro, com uma resignação comovente.

Andam em bando, mas são como ilhas, parece que desconhecem uns aos outros, embora estejam na mesma condição: esbarram-se no caminho para o pasto e na volta para o curral, de cabeça baixa, com olhar fixo, com uma expressão de que nada há em suas cabeças além da necessidade de ir e vir, sem motivo, apenas porque alguém decidiu que deveria ser assim.

No fim da tarde, início da noite, a procissão toma o caminho de volta.

Um mugido aqui, outro ali, mas nada que seja coletivo, apenas o andar mais lento de uns, mais corrido de outros, que tomam a frente e empurram os demais, numa pressa que até parece ter um sentido, uma razão, mas nada que vá além do objetivo: o retorno ao curral, para mais uma noite que é, apenas e tão somente, o prenúncio de outro dia, que será substancialmente tão igual ao anterior que é até possível prevê-lo.

Caso pensassem, é possível que antes do sono agradecessem a deus por terem retornado. Sem pensar que retornaram apenas para voltar outra vez e que sua vida se resume apenas a isso. Talvez até agradeceriam ao seu dono, afinal, têm comida e onde dormir, sem perceber que comer e dormir é apenas uma condição necessária para dar mais ao dono, não a si.

Chega a deprimir a vida do gado…

Pensei nessas coisas e tive essas lembranças de mais de 20 anos atrás observando uma estação de trem, no meio da semana, finalzinho da tarde, hora da volta da boiada que vive um dia após o outro, resignadamente…
Nós limpamos a bunda da sociedade
28/01/2015 ~ 5 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

As férias terminaram, professores e estudantes retornam às aulas. Lanço aqui uma reflexão para as duas categorias sobre nossa função e nossas ilusões. O título é sugestivo…

A frase que nos serve de título foi dita por uma professora de uma escola de ensino infantil, que reclamava das suas precárias condições de trabalho e de um material básico para trocar as fraldas das crianças: luvas descartáveis.

Para ser sincero gostei muito da frase e passei a fazer milhões de relações. Talvez essa seja a melhor síntese, no final das contas, do papel dos professores da educação formal, em todos os níveis: limpar a bunda da sociedade!.

A frase não é polida e nem gentil, sem dúvida. Mas defendo que a palavra falada e escrita permita que se entenda claramente a intenção daquele que fala ou escreve. Tenho certeza que muitos já compreenderam o texto todo lendo apenas a frase em questão. Portanto, abaixo a polidez!

Já insisti nesse espaço no papel reprodutor da educação formal. Althusser tratou a escola como um Aparelho ideológico fundamental das formações sociais capitalistas: a escola aparece como algo extremamente necessário para a nossa vida, assim como a igreja parecia sê-lo nos tempos do feudalismo.

Daí que dificilmente alguém pensa na possibilidade de sua eliminação. Sempre vem a pergunta: mas o que colocamos no lugar? Que tal refletir um pouco em não colocar nada em seu lugar? Parece impossível, não é? Daí os pedagogos e outros bem intencionados profissionais passam a vida tentando e propondo formas de arrumar uma máquina de moer gente que não tem defeito: cumpre, exatamente, seu papel.

Na verdade, poucos conseguem perceber a insanidade do processo escolar. Para os que passam por todos os seu graus, são mais ou menos 17 anos de frequência regular, quase que diária, desde a mais tenra idade até a vida adulta. Caso se queira somar aí a pós-graduação, podemos incluir mais uns dez anos.

Nela são transmitidos os condicionamentos básicos, mais que a construção de conhecimento: uma “visão de mundo” que torna naturais e razoáveis as relações sociais de produção capitalistas, o reconhecimento e a obediência cega às hierarquias, ficar preso e fazer coisas nas quais não se vê sentido, enfim, aprende-se a viver nesse mundo e aprende-se, pela ideologia do mérito, a aceitar a distribuição que a escola opera para o “mercado” de trabalho.

Indivíduos, avaliados individualmente, que são apenas um número durante anos e convencidos de que são os únicos responsáveis por sua trajetória de vida, seu sucesso ou seu fracasso. Claro que sucesso e seu contrário também são ideologicamente construídos: significa o exercício de algum trabalho não-manual e a acumulação de determinada quantidade de riqueza material ao longo da vida. Os que não o alcançam aprendem a atribuir à sua própria incompetência individual a responsabilidade de seu trágico fim.

A verdade é que não existem postos de trabalho não-manual para todos, assim como não existe correlação entre o número de diplomados e as vagas abertas nesse grande comércio de carne humana que se chama, de forma equívoca, “mercado de trabalho”.

Não havendo essa relação direta, ocorre o fenômeno do que prefiro chamar de sobrecertificação, no lugar da batida sobrequalificação. Isso porque falar de qualidade de ensino é sempre bastante complicado, gelatinoso e, geralmente, acaba despolitizado por um discurso tecnicista que pretende medir conhecimentos que seriam imprescindíveis (decididos por quem?).

Havendo um número de diplomados sempre crescente, as empresas passam a elevar a exigência de certificação para a ocupação de postos que, há pouco tempo, bastava o ensino fundamental. Por sua vez, essa elevação provoca a corrida aos bancos escolares e aos bancos das universidades, atrás do famigerado diploma, e isso alimenta uma grande máquina de fazer dinheiro para as instituições privadas, jamais a construção do conhecimento.

A obrigatoriedade de “estudar”, essa pena que deve ser cumprida pelo único crime de ter nascido, torna qualquer coisa que signifique construir conhecimento como algo chato, enfadonho, enfim, como qualquer coisa que não se faz quando se tem possibilidade de escolher. A escola elimina a possibilidade e a vontade de construir conhecimento.

E quem são os agentes diretos dessa desconstrução? Quais são aqueles que, por vezes de forma inocente, transmitem ao longo da vida ideologia travestida de ciência à quase totalidade da população? Somos nós, os professores.

Pode-se argumentar que nem todos fazem isso. Mas não adianta coisa alguma não fazê-lo: a lógica do sistema é determinada por um objetivo, que é a necessidade da certificação. A obrigatoriedade da frequência, as notas nas malditas provas, são suportadas em nome da possibilidade de viver um pouco melhor, ou continuar a viver como se vive, mantendo posições, como faz a classe média.

Ainda que um professor se acabe na tentativa de reverter esse fim funesto, a lógica do sistema e seus demais colegas fazem o trabalho de coveiro. Busca-se a escola para poder conseguir uma inserção melhor nessas mesmas relações de exploração do trabalho, não para transformá-la. A ideologia do mérito pessoal movimenta as pessoas e é estimulada pelos professores e pelos “media” o tempo todo. Buscam a escola para lutar por sua escravidão, como se lutassem pela liberdade!

Está aí o segredo do aparelho escolar e sua importância: inculcar a ideologia dominante, distribuir os indivíduos nos postos de trabalho, garantir as condições de reprodução do modo de produção capitalista.

É como se a escola tivesse uma ação de tornar, na aparência, limpas e saudáveis essas relações. Através do processo escolar se justifica a exploração do trabalho e se faz creditar as posições às capacidades e incapacidades pessoais. A ordem capitalista é vista, portanto, como algo bastante razoável, justa e natural: os melhores avançam, os piores lhes servem.

A escola oculta as relações sociais reais, não permite que se compreenda a essência das relações sociais capitalistas, limpa a sujeira desse tipo de organização social, ou a oculta, pelo menos.

Os professores são linha de frente nessa tarefa: não limpam a bunda de gente, limpam a bunda da ordem capitalista, para que ela apareça como algo belo, justo e natural.
Ditadura Militar: relato do assassinato de seis militantes da VPR
21/01/2015 ~ DEIXE UM COMENTÁRIO


Cesar Mangolin

Recebi (de Ruth Previati) um link da Folha de São Paulo (de 19-01) que relata o assassinato de seis revolucionários da VPR em 1974 pela ação de agentes infiltrados que os levaram a uma emboscada no Paraná. Tal relato é parte do grandioso trabalho que a Comissão da Verdade tem realizado (tanto a nacional quanto as estaduais e específicas) de reconstrução da história recente do Brasil e esforço para que, pelo menos, os brasileiros saibam o que ocorreu naquelas décadas obscuras da ditadura. Dentre os revolucionários assassinados estava Onofre Pinto, um dos fundadores da VPR, ao lado de João Quartim de Moraes. Ex-sargento, militar nacionalista, contrário à ditadura militar e cassado por ela, Onofre foi morto com uma injeção de inseticida e teve o corpo mutilado (para não ser identificado) e lançado em um rio, segundo o infeliz que participou do seu assassinato. Onofre figura até hoje na lista dos “desaparecidos”.

Lamentáveis são os comentários no final da reportagem sobre a ação dos “heróis” militares que “salvaram o Brasil dos comunistas”! A Comissão da Verdade foi além e também contabilizou quase 9.000 nativos (ou como insistimos erroneamente em chamá-los, índios) de diversas etnias entre as vítimas da ditadura. Poderíamos acrescentar ainda os milhões mortos pela fome, principalmente no Nordeste do país…

Mas os tontos persistem com suas tonterias, por mais que tenhamos muita produção teórica e histórica que demonstra que a ditadura teve um sentido bastante diferente daquele que acreditam e mesmo revelando seu caráter sanguinário… Há os que defendem a volta dos militares… Nunca é demais, porém, insistir e dizer o óbvio, mesmo que saibamos que os estúpidos são incapazes de mudar de posição. Como disse em texto recente, quem apenas aprendeu a relinchar e abanar as orelhas tem grande dificuldade de entender coisas novas. O ditado popular sintetiza isso: para essa gente, mudar a cor do capim significa a morte por fome.

Recomendo a leitura das matérias – sobre a VPR e sobre os nativos – (cujos links seguem abaixo) e reproduzo depois um texto meu de 2012 que trata dos que tinham medo dos trabalhos da Comissão da Verdade e comenta uma outra entrevista, de um delegado do Dops, assustadora tanto quanto, que revela as colaborações entre grandes empresas e empresários e o aparato repressivo da ditadura.. Os comentários feitos naquele ano me parecem ainda válidos.

Seguem os links:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/01/1576945-militar-contou-a-comissao-da-verdade-como-ajudou-a-emboscar-militantes.shtml?cmpid=comptw

http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=7219%3A8350-%C3%ADndios-foram-mortos-na-ditadura-militar

Por que têm tanto medo (me refiro à exposição da história real) os que persistem vivos e participaram daquilo tudo, além de seus epígonos mais jovens, também formados dentro de fascistóides teorias nacionalistas?

O revanchismo é a acusação regular. No caso, me parece descabida, visto que somente temos uma revanche após uma derrota e o que está em questão não é a vitória ou a derrota, mas os métodos utilizados, condenáveis, inclusive, pela legislação internacional no que concerne às situações de beligerância. Tortura e assassinato de prisioneiros de guerra, ou no caso, de quem está sob a guarda do Estado, não me parece ser alvo de revanche, mas de necessária averiguação e punição de criminosos de guerra.

Deixo, no entanto, este discurso jurídico para os que gastam a vida com ele. Importa pensar no que está por trás dessas movimentações.

Não podemos esquecer o caráter de classe do golpe de 1964. A ditadura, em nome da ordem (da ordem burguesa, obviamente), pôs abaixo a própria ordem burguesa instituída pela Constituição de 1946. Não foi em nome daquela ordem que o golpe foi dado, mas em nome de uma nova ordem, surgida com a entrada maciça do capital monopolista ao longo da década de 1950. Foi no interesse do grande capital que a própria ordem burguesa, que permitia ainda a eleição de presidentes com projetos centrados na tradição trabalhista e no desenvolvimento nacional com relativa autonomia, foi colocada abaixo para, sobre ela, se erguer uma nova ordem, que permitiria a livre exploração das riquezas e dos trabalhadores brasileiros.

Os militares podem até, em sua maior parte, ainda acreditar que salvaram o Brasil de alguma coisa ruim, que eles mesmos até hoje não entendem bem. É próprio dos que se disciplinam a receber ordens sem pensá-las. O que importa, porém, não é no que acreditam os que se movimentam, mas efetivamente pelo que lutam. Lutaram, de forma covarde, pelos interesses do grande capital. Torturaram, assassinaram, ocultaram cadáveres, produziram histórias para justificar suas atrocidades. Tudo isso para que a exploração se acentuasse sem questionamento.

Os que executaram podem até, em parte, pensar que estavam cumprindo um grande trabalho em defesa da pátria. Os piores papéis sempre necessitam dos tolos. Mas, para além dos testas-de-ferro, sabemos que não apenas os altos oficiais, mas também muita gente de fora dos quartéis sabia muito bem o que ocorria ali e exatamente pelo que lutavam. Lembrem dos assíduos contribuintes do IPES e do IBAD; lembrem de Boilesen, o grande empresário que não se contentava apenas em patrocinar o aparelho repressivo, mas também de assistir às torturas. Os amigos de Boilesen não são poucos. Eles devem temer muito o resultado de uma comissão que apure e dê ao povo brasileiro uma versão real dessa história.

Li recentemente uma entrevista de um desses carniceiros ainda vivos. Um delegado da Polícia Civil, chamado José Paulo Bonchristiano, também conhecido com a singela alcunha (que demonstra bem sua tarefa e seu estilo) de “Paulão Cacete e Bala”. Assim era carinhosamente chamado pelos próprios companheiros de ofício. (a entrevista está disponível em: http://br.noticias.yahoo.com/especial-conversas-com-mr-dops.html?page=all ).

Ali temos relatos interessantes de um delegado do Dops, que trabalhava com Fleury (outro carniceiro, “que deveria ter um busto em praça pública”, como diz nosso “Paulão”).

Sobre a ligação com grandes empresários brasileiros, totalmente vendidos e atrelados ao grande capital internacional, temos o seguinte:

Bonchristiano é um dos poucos delegados ainda vivos que participaram desse período, mas ele evita falar sobre os crimes. Prefere soltar o vozeirão para contar casos do tempo em que os generais e empresários o tratavam pelo nome. Roberto Marinho, da Globo, diz, “passava no DOPS para conversar com a gente quando estava em São Paulo”, e ele podia telefonar a Octávio Frias, da Folha de S. Paulo “para pedir o que o DOPS precisasse”. Quando participou da montagem da Polícia Federal em São Paulo, conta, o fundador do Bradesco mobiliou a sede, em Higienópolis: “Nós do DOPS falamos com o Amador Aguiar ele mandou por tudo dentro da rua Piauí, até máquina de escrever”.

Os generais, a Globo, a Folha e o Bradesco, num único parágrafo, numa única lembrança!

Sobre o treinamento recebido da CIA: “Gaba-se de ter sido enviado para “cursos de treinamento em Langley” nos Estados Unidos, pelo cônsul geral em São Paulo, Niles Bond, que admirava a “eficiência” da polícia política paulista. E o chamava de “Mr. Dops””.

Além de treinar 100 mil policiais no Brasil, a OPS-CIA selecionava policiais e oficiais militares para estudar em suas escolas no Panamá (1962-1964); e nos Estados Unidos, depois que a Academia Internacional de Polícia (IPA) foi inaugurada em 1963 em Washington, funcionando até 1975. No Brasil, o OPS ficou até 1972, quando o Congresso americano começou a investigar as denúncias de que o programa patrocinava aulas de tortura.

A IPA foi um das “escolas” nos Estados Unidos que recebeu Bonchristiano antes mesmo do golpe militar. Dois anos antes – logo depois de ser aprovado no concurso para delegado de 5ª classe, o início da carreira, ele já frequentava a casa do diretor DOPS Ribeiro de Andrade, no Jardim Lusitânia, em São Paulo. “Ele estava sempre de portas abertas para nós, ficávamos lá conspirando”, ironiza.

A eficiência a que se refere o texto todos sabem bem qual era…

E dentre seus incríveis trabalhos à mãe pátria está o que segue:

“Bonchristiano tornou-se delegado de 2ª classe em 1969 e foi promovido “por merecimento” a delegado de 1ª classe em 1971. Naquele mesmo dia, admitiu que frequentava os outros centros de tortura montados em São Paulo a partir de 1969, como a OBAN (Operação Bandeirante) e o DOI-CODI, comandados pelo Exército e compostos de policiais civis e militares instruídos a torturar. Só no período de 1970 a 1974, a Arquidiocese de São Paulo reuniu 502 denúncias de tortura no DOI-CODI paulista, apelidado jocosamente pelos policiais de “Casa da Vovó”.

Bonchristiano disse então que “alguns da diretoria do DOPS” participaram da montagem da OBAN – “os militares não entendiam nada de polícia, depois aprenderam” – e que cederam três delegados no início das operações, todos incluídos entre os torturadores na Lista de Prestes: Otávio Medeiros, ligado ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e à TFP (Tradição, Família e Propriedade), assassinado em 1973 por militantes da resistência armada; Renato d’Andrea, colega de Bonchristiano na Faculdade de Direito da PUC; e Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, ex-investigador subordinado a Bonchristiano e ligado ao CCC, que se tornaria delegado depois.

Levaram também os métodos da polícia, incluindo o pau-de-arara – na origem um cabo de vassoura apoiado em duas mesas, onde os policiais deixavam o preso pendurado por pulsos e tornozelos até que a dor insuportável os fizesse “confessar””.

Tortura e assassinato, a ligação estreita dos militares com a política civil, mais o CCC, mais os dementes da TFP, grandes empresas nacionais e estrangeiras… Dá pra ver que a coisa era maior que uma pendenga apenas com os militares.

Já chega… Como podem ver não é preciso ir tão longe para saber nomes, responsáveis pelas ações. O que seria preciso, na verdade, e talvez esse seja o medo maior, é apurar quais eram os verdadeiros mandatários, os verdadeiros responsáveis, não apenas os agentes diretos. Neste caso também não é necessário avançar muito e a própria entrevista do orgulhoso Sr. Cacete e Bala já resolveria a questão.

No manifesto publicado e assinado por diversos altos oficiais, intitulado “ELES QUE VENHAM. POR AQUI NÃO PASSARÃO!”, numa atitude típica dos valentões de coturnos, se pode ler: “O Clube Militar, sem sombra de dúvida, incorpora nossos valores, nossos ideais, e tem como um de seus objetivos defender, sempre, os interesses maiores da Pátria.”

Pois é… os interesses maiores da Pátria coincidiam (e ainda coincidem) com os interesses da Globo, da Folha, do Bradesco, da Ultragas, enfim, com os interesses do grande capital, jamais com os interesses dos trabalhadores brasileiros!

Assisti um dia desses uma entrevista com Carlos Chagas, jornalista que foi assessor do ditador Costa e Silva, segundo general presidente e responsável pelo AI-5 que, como todos sabem, instituiu de uma vez por todas e de forma brutal, a ditadura no final de 1968.

Chagas disse ter visto o choro do presidente, quando já afastado e sem poder falar por causa da doença que o levou à morte, quando em perguntas seguidas se descobriu que a maior tristeza daquele que via a morte bem perto era não ter conseguido acabar com o AI-5 e reabrir o Congresso. Disso, tirou a conclusão da bondade do ditador e de que não havia mocinhos e bandidos naquela história.

De fato, somente os imbecis pensam a história como a luta eterna entre mocinhos e bandidos. Não faremos isso aqui. Mas também é preciso ter a mesma qualidade, quando não má intenção, para se chegar à conclusão da bondade ou do arrependimento e, assim, num ato de perdão cristão, depois de estapeados os dois lados do rosto, tratar tal figura central de toda essa tragédia como o pobre homem que era bom, mas as circunstâncias o forçaram fazer algo ruim, mas necessário (para os objetivos postos).

A história não é feita por intenções, nem a bondade, tampouco a maldade, podem nos servir para compreendê-la, muito menos o arrependimento. Nos serve apenas a análise fria do que foi consumado e como foi consumado, as disposições e desdobramentos, no palco das lutas de classes, da forma como efetivamente ocorreram e seus resultados. O imbecil que individualiza a história está ao lado daquele que constata que o que não ocorreu não poderia ter ocorrido. Dentro da trama e dos encontros, a tarefa principal é compreender porque ocorreu assim e extrair disso boas lições.

Uma das boas lições a extrair disso tudo nos dão alguns países da América Latina: estão punindo vários dos assassinos e torturadores. Outra lição importante é perceber que eles são responsáveis pelo ato da tortura e do assassinato, mas que seus mandantes, os do grande capital, ainda estão no poder e precisam, uma hora dessas, serem derrubados.


“Muito espírito no feto e nenhum no marginal”: sobre o brasileiro executado na Indonésia
19/01/2015 ~ 6 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

A “reaçada” no Brasil adora uma desgraça alheia pra poder esticar as orelhas secas e testar ferraduras novas… Desta vez foi com a desgraça de um brasileiro executado na Indonésia.

O argumento, no geral, se dividiu em duas frentes: a primeira foi a de usar o evento para poder falar mal da presidente; a segunda, foi a de tornar a Indonésia um paraíso da justiça e fazer a defesa da pena de morte aqui no Brasil. Tudo, como sempre, desproporcional, como é próprio dessa gente.

Curioso ver a quantidade de estudantes de Direito fazendo um debate, com conclusão previamente estabelecida, defendendo que os traficantes brasileiros também devem ter o mesmo fim. Isso se estende aos demais criminosos, evidentemente.

Mas, pensemos por um instante sobre essas duas linhas de argumentos.

A primeira: é óbvio que um país que não adota (pelo menos oficialmente) a pena de morte, deve se postar, no plano internacional, contrário a ela. No caso, um cidadão deste país seria executado pelas leis da Indonésia, estranhas aos brasileiros. O pedido da presidente não foi no sentido de que o sujeito não cumprisse alguma pena pelo crime de tráfico internacional de drogas. O pedido foi no sentido de salientar que o Brasil é contrário à pena de morte e, inclusive, possui em suas cadeias muitos estrangeiros que cumprem pena pelo mesmo delito. E isso me parece muito tranquilo e muito razoável. Aliás, é o que se deveria esperar do governo brasileiro nesse caso. Usar o episódio para tentar confundir as pessoas, dando a entender que a presidente defende o tráfico, ou que acredita que o sujeito não deveria ser punido é, para dizer o mínimo, muita safadeza dos nossos conservadores e moralistas da classe média cor-de-rosa.

A segunda linha é pior ainda. Primeiro, a Indonésia não é nenhum exemplo de justiça pelo mundo. Aliás, carrega em sua história uma colaboração estreita com o imperialismo estadunidense, décadas de ditadura recente e o massacre de centenas de milhares de opositores do regime. Vejam: falo de centenas de milhares! Os historiadores e estudiosos do tema oscilam entre 500.000 e 2 milhões de mortos, com a chancela do imperialismo ocidental. Basta estudar um pouco o processo da derrubada do presidente Sukarno e a ditadura de Suharto, que persistiu da década de 1960 até 1997. Suharto ainda criou condições para que uma estrita elite tomasse em suas mãos o grosso da produção e da riqueza do país, processo que teve a corrupção como um elemento quase legal. Ainda invadiram o Timor Leste, pequeno país que havia se libertado da dominação portuguesa em 1975 e possuía petróleo. Um terço da população do Timor foi massacrada pelas forças de Suharto…

Mas sabemos que estudar um pouco não é uma atividade dessa gente que rosna e relincha, com todo respeito aos cachorros, cavalos e congêneres.

Tirado do caminho o “paraíso da justiça”, resta ainda a defesa da pena de morte aqui. É curioso como a massa conservadora do Brasil tem sede de sangue… Sangue de pobre, obviamente.

Não sou totalmente contrário à pena de morte ou à prisão perpétua. Penso que, em determinados casos, ela seria exemplar. Mas sou totalmente contrário à adoção de algo semelhante dentro dessa ordem que vivemos por um motivo muito simples: a pena de morte apenas alcançaria os pobres, jamais as elites brasileiras, que nem mesmo vão para a cadeia.

O direito burguês, que pela primeira vez na história trata igualmente os desiguais, deve punir também igualmente. A ideia parece boa, mas pensemos assim: o conjunto de leis, que serve para todos individualmente (“Todos os indivíduos são iguais perante a lei”) vai necessariamente punir desigualmente, visto que: 1 – as leis (e toda a estrutura jurídico-política) têm um papel decisivo na reprodução da ordem capitalista, portanto, na continuidade de uma forma de organização social baseada não em indivíduos, mas em classes sociais separadas por suas posições nas relações sociais de produção, que por sua vez estão alicerçadas na exploração do homem pelo homem; 2 – se as leis cumprem esse papel, é óbvio que o que se considera crime não passa pelas bases da própria exploração capitalista, ou seja, a expropriação e a exploração dos trabalhadores, a ação dos bancos, a apropriação privada dos recursos naturais e da riqueza produzida socialmente etc, etc: nada disso é crime, embora seja responsável direto pelas desigualdades sociais, pela miséria, pela fome e pela morte de centenas de milhares de trabalhadores e filhos de trabalhadores anualmente; 3 – o que é considerado crime vai prevalecer, portanto, nas massas populares, visto que roubar milhões todos os dias (como fazem os bancos, por exemplo) não é crime, mas assaltar individualmente sim. Ora, são as mesmas condições de desigualdade social que geram a marginalização e, com ela, o “criminoso”, inclusive o crime organizado.

Não defendo bandido. Mas não defendo nenhum deles. Alguns eu compreendo, Outros, combato, como esses grandes bandidos que vivem de sugar o sangue e o suor dos trabalhadores brasileiros historicamente.

O fato mesmo é que, se instalada a pena de morte no Brasil, quem morreria? Não tenho dúvida de que apenas os pobres. E é essa morte mesmo que defendem os nossos orelhudos conservadores e moralistas.

Sabemos que muitos são assassinados por agentes do Estado todos anos. Milhares, aliás. Essa pena de morte velada não resolve o problema da criminalidade, assim como se se tornasse lei também não resolveria. Basta tomar as estatísticas dos países que a adotaram… Mas que tal irmos à raiz dos nossos problemas? Vamos identificar qual é a fonte exatamente dos nossos problemas sociais e darmos cabo dela? Isso não querem os nossos relinchadores e muito menos aqueles que os manipulam como marionetes…

E qual seria, então, a solução imediata para esse problema? Não há solução, simplesmente. É como secar gelo. Perfumar merda…

O que devemos fazer quando há uma grande quantidade de moscas incomodando a todos? Aprendi de alguém especial certa vez que matá-las não resolve, visto que imediatamente novas moscas se juntam ali. A única solução é limpar o espaço para acabar com o que tem atraído as moscas… A causa!

Não digo que numa sociedade mais justa e igualitária, capaz de socializar a riqueza social produzida por todos de acordo com as necessidades de cada um, não haveria mais nenhum crime. Mas tenho certeza de que o que chamamos de crime agora seria apenas uma mancha distante de um passado sombrio da nossa espécie.

Fora a solução que ataca a causa diretamente, portanto, não há medida alguma que possa resolver ou amenizar no longo prazo essa situação. Não há pena de morte que resolva, por mais que sofram os que “vêm muito espírito no feto e nenhum no marginal”.

Nelson Werneck Sodré publicou um livro cujo título era “O fascismo cotidiano”. São pequenas histórias do dia a dia que revelam a face perversa e violenta das nossas relações. Poderíamos prosseguir o esforço dele e escrevermos muitas mais dessas histórias… Aliás, dessa grande novela, esse evento da execução do brasileiro foi apenas mais um pequeno e lamentável capítulo.

Ser ou não ser Charlie: será esta a questão?
16/01/2015 ~ 4 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

O atentado de Paris gerou reações de todo tipo, que se colocaram entre duas posições: “Eu sou Charlie” – “Eu não sou Charlie”… Sem dúvida, no primeiro momento, o “Eu sou Charlie” ganhou força por causa do impacto do acontecimento. Mas logo na sequência muitos começaram a fazer críticas ao trabalho dos jornalistas e a levar em conta o contexto no qual estava inserido o jornal, o que os levou a tomar a posição contrária. Embora tenham aparecido textos muito lúcidos, houve também aqueles que exageraram na dose, como sempre… Não tenho dúvida que se o atentado fosse num país islâmico e não no coração do imperialismo ocidental o impacto mundial seria muito menor, assim como foi o massacre de duas mil pessoas na Nigéria na mesma semana… Com maior ou menor peso nas mídias, tratam-se, evidentemente, de duas grandes tragédias.

Houve ainda os que avançaram em teses obscuras, visto que não possuem elementos precisos para as afirmações que fizeram. Um certo grupo político se apressou a afirmar que a ação era, na verdade, do Mossad e da CIA, numa conspiração para atritar ainda mais o ocidente com o mundo islâmico e, ao mesmo tempo, auxiliar a escalada à direita nos países do centro do sistema e na França, objetivamente.

Ora, seria impossível que tudo não passasse de uma armação de Israel e das potências ocidentais que dão guarida à sua sanha assassina no Oriente Médio? Não! Não seria impossível. Mas o fato mesmo é que tal conspiração somente poderia ocorrer porque os acusados seriam capazes de fazê-lo pelos motivos alegados… Tento explicar: somente posso fazer algo e tentar atribuir a culpa a outrem se esse outro sujeito parecer ao que vai julgar o ato capaz de realizá-lo da mesma forma e pelos motivos alegados. Portanto, se foram os grupos islâmicos radicalizados e não reconhecidos pela maioria dos muçulmanos, ou se foram os fascínoras de Israel e do ocidente judaico-cristão, vale mesmo é compreender que ambos seriam capazes de cometer (e cometem constantemente, embora desproporcionalmente) a mesma estupidez.

Minha reflexão, portanto, vai mais no sentido do ato em si e menos na tentativa de descobrir quais foram seus responsáveis. Não esqueçamos que tanto o Estado Islâmico quanto a Al Qaeda se apressaram em assumir os ataques…

Houve os que, também apressadamente, trataram os jornalistas mortos como um atentado à esquerda francesa, assim como outros que os demonizaram na semana seguinte… A pressa e a precisão não caminham na mesma marcha.

Nem mártires, nem demônios. Mas o primeiro argumento é ruim… Que o jornal e alguns de seus membros tenham um passado recente ligado à esquerda francesa não há dúvida, mas currículo é um negócio que em política vale muito pouco. Eu sinceramente acredito que insultar a religião alheia de forma sistemática rompe a barreira do que pode ser considerado humor, mas principalmente alimenta a já elevada perseguição que sofrem imigrantes em solo francês, assim como torna as parcerias de França com os EUA realizando “atentados de Estado” pelo Oriente afora mais palatável ao povo francês. Quem duvida que o governo francês receberia amplo apoio para uma resposta desproporcional e violenta contra supostas bases dos “terroristas” em outros países? Dentro da França os muçulmanos têm sofrido perseguições e violências de todo tipo…

Também não considero progressista ou de “esquerda” caricaturar uma ministra negra num corpo de macaco, como fizeram os jornalistas em questão… O efeito, internamente, é o mesmo.

Mas nada disso, evidentemente, justifica a desproporcionalidade da reação, embora seja sempre bom pensar em quantos cidadãos franceses, imigrantes ou filhos de imigrantes, sofreram violências respaldadas por esse tipo de humor, assim como brasileiros negros, nordestinos, homossexuais, nativos etc… Quantos morreram por ações amparadas pela construção cotidiana desses estereótipos preconceituosos? Difícil contabilizar, ainda mais se levamos em conta que morrer não depende apenas de um tiro: podemos matar pessoas e gerações inteiras sem nenhum ato de violência direta.

Sempre insisto com os estudantes que precisamos questionar os pressupostos teóricos de uma proposição ou teoria qualquer para poder verificar se está próxima da realidade concreta. Não sou adepto do relativismo teórico, nem do chamado pós-modernismo, que caiu tão bem para gente que tem preguiça de estudar e povoa as universidades brasileiras. Marx fez a crítica da economia política porque conseguiu, antes, por abaixo seus pressupostos…

Enfim, a questão não é ser ou não ser Charlie, nem o elemento principal é saber se foram os islâmicos radicalizados ou o Mossad (do nazi-sionismo assassino) os responsáveis pelo atentado. A grande questão é: quais são os pressupostos históricos e teóricos que explicam a ação e a reação?

Isso exige estudar um tanto para os que não se dedicaram a pensar nossa história dos últimos séculos, em particular a ação do Ocidente no período da expansão colonizadora, depois, já no capitalismo, na fase imperialista. Os franceses comovidos parecem nunca terem tomado conhecimento das atrocidades que cometeram há poucas décadas contra os argelinos…

E não é apenas para entender, sem dúvida. Precisamos urgentemente envolver muito mais pessoas na tarefa coletiva de construção de uma nova organização social, que tenha como pressupostos a cooperação, o fim da exploração do homem pelo homem, a igualdade e uma vida material confortável para todos e para que todos possam viver em paz suas diferenças.

Somente a igualdade coletiva permite viver e respeitar as diferenças. O contrário de igual é desigual, não diferente. Na desigualdade o resultado é a massificação e a violência estúpida por todos os lados.
Deus, o diabo e nós
14/01/2015 ~ 5 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

Esses dias ouvia a pregação de uma mulher de alguma igreja cristã.

Ela dizia a uma senhora lá pelos sessenta e tantos que os tombos que havia tomado eram obra do diabo. Por alguma razão, no mínimo curiosa, o próprio teria certo gosto em desequilibrá-la.

Depois, disse que o demônio estava em todos os lugares. Na sua casa, dentro dela e, quase acrescentei eu, dando rasteira nos outros por aí.

A violência, o desemprego, a fome, as guerras, as doenças…. tudo obra do capeta!

Pobres humanos que são vítimas sem defesa do tinhoso !

Ela falou durante uns quarenta minutos: 30 minutos sobre a obra de satanás, uns cinco sobre Jesus e outros cinco falando das benesses de sua igreja na conquista do reino dos céus, desde que pagos os 10% do pastor, obviamente, que deve ter algum acordo de representação imobiliária com deus, além de cuidar de outras questões burocráticas, como a ida direta e sem escalas ao paraíso. O pastor, pelo que entendi, é um verdadeiro e competente despachante das coisas celestes!

Os cinco minutos gastos com Jesus foi uma explicação digna de nota sobre o fim do mundo: segundo a pregadora, no fim dos tempos Jesus vai voltar e chamar a cada um pelo nome, separando os salvos dos não salvos.

Argumentei comigo mesmo que depois de toda revolução tecnológica isso não parecia muito inteligente, além de demorar pra diabo, digo, bastante.

Daria sorte se a chamada for em ordem alfabética: como meu nome começa com “c”, estaria relativamente no início da lista. Mas logo desgostei da idéia, visto que meu amor, a Ruth, estaria no final da lista e, considerando que uma coisa é chamar e outra é responder, passaria bons meses, ou anos, sem vê-la, afinal, são 7 bilhões de pessoas, fora as que já morreram! Independente do lugar, sei que vamos para o mesmo (se houver lugar a ir, óbvio).

O mais incrível disso tudo é que a mulher demonstrava acreditar mesmo naquilo tudo que dizia, particularmente nas artimanhas do sete pele para lascar ainda mais nossa vidinha besta.

Solidário que sou aos perseguidos e desprezados, acabei por logo me compadecer com o cabrunco e começar a pensar que havia ali alguma questão política de fundo, que tornava o chifrudo responsável por tudo.

Independente da lógica da argumentação da mulher, salta aos olhos a importância da identificação de uma fonte do mal para que se possa falar de uma fonte do sumo bem. A demonização não é algo próprio do discurso religioso, mas está presente em todas as frentes.

Caso sejamos sinceros o bastante, dentro da lógica religiosa, a fonte primária de tudo mesmo é deus, afinal, ninguém pediu para ser criado, exatamente porque o que não existe não pode ter vontade. Daí os cristãos saem com aquela do livre arbítrio… Vejam: que ser cria outro com a capacidade de se arrebentar? Por que não nos fazer simplesmente perfeitos e felizes, ou ainda melhor, simplesmente não fazer nada, visto que a obra acabou dando merda?

Respeito profundamente a fé das pessoas. Não me tomem, por causa do meu tom irônico, por arrogante. Até agora apenas fiz comentários simplistas dentro da lógica que parece prevalecer no discurso dos seguidores dessas igrejas todas, principalmente as influenciadas pelo movimento pentecostal, do que não foge a igreja católica, com a sua chamada “renovação carismática” e seus padres marcelos cantadores das belezas e das mazelas do reino para o umbigo de cada um.

Esses movimentos pentecostais estão bem adaptados ao mundo que vivemos: tratam a fé como algo individual, suas músicas são cantadas sempre na primeira pessoa do singular, as orações feitas em tom histérico, com mãos erguidas para o alto e cada qual dizendo o que bem entende.

São ilhotas religiosas, assim como são ilhotas em todos os outros espaços da vida, mendigando ao patrão uns centavos a mais em troca de sua fidelidade total (isso se chama, de forma mais popular, de peleguismo), mendigando a deus mesmo na vida de agora e as garantias para a vida futura. Carneiros mendigando e buscando soluções rápidas para as agruras da vida, individualmente.

O diabo virou tudo o que se quer negar e, ao mesmo tempo, explicação para tudo de ruim. Eu não tenho desejo sexual, é o diabo que põe isso na minha cabeça; não tenho vontade de tomar umas biritas, coisa do cão; não sou egoísta, não tenho defeitos, tudo que sai errado é obra do esquerdo; a sociedade que vivemos não é resultado de nossa passividade, as violências sociais todas não têm relação com a divisão de classes, com a exploração do homem pelo homem: tudo é obra do coisa ruim.

Já trataram, ainda no século XIX, dos efeitos ideológicos da projeção desta vida na vida eterna e de sua função reprodutiva e atomizadora das relações sociais concretas.

Constato aqui apenas o óbvio: isso é atualíssimo, cada vez mais gritante… e mais estúpido.

Caso isso tudo (deus, diabo, vida eterna etc) for como dizem por aí nas igrejas, penso que no teatro da vida, lá em cima, depois das escadarias, na porta que dá visão das poltronas todas e do palco, morrem de prazer e riem-se abraçados deus e satanás.
A defesa dos animais! Mas o animal humano…
09/01/2015 ~ 3 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

Observação: o texto que vai abaixo é de 2011, mas vale ser republicado… Povoam nas revistas e jornais textos que fazem a defesa dos animais e esquecem do animal humano… Vale, portanto, insistir no assunto e nessa loucura coletiva, lembrando desde já que não sou contra a defesa dos demais animais: sou contra esconder atrás desse discurso o individualismo e a violência que marcam as relações humanas atuais. Que aprendamos a defender todos os animais., mas que aprendamos também que somente construindo condições para relações sociais igualitárias e justas poderemos criar um espaço razoável para a vida em geral.

* * *

Assisto a alguns programas da televisão de forma aleatória, sem fidelidades e tempo certo.

Tem me chamado a atenção as matérias sobre a defesa dos animais, além de já ter visto programas voltados exatamente para esta questão. Não sou contrário a defesa dos animais, nem de que tenham uma vida digna e direito à vida, alimentação, carinho, que não sejam abandonados à própria sorte, nem maltratados, torturados e coisas assim.

O que ma chamou a atenção foi a forma como se referem aos animais os profissionais e seus entrevistados.

Na noite do dia 21, por exemplo, o programa “Pânico” exibiu um verdadeiro mutirão para a adoção de animais que foram abandonados. A exibição da “feira” de doação era cortada por depoimentos dos integrantes do programa, que apareciam ao lado de seus animais domésticos. Saiu todo tipo de barbaridade ali, que pode ser sintetizada na frase de um deles: “Um cachorro é muito melhor que um ser humano!”

Não duvido que, diante das misérias humanas, um cão deva ser necessariamente depreciado. Penso que nossa questão não é a de quem deve ser melhor. Uma questão que deveria ser objeto de reflexão do sujeito que soltou a frase seria: por que ele acredita nisso? Fatalmente, descobriríamos ali (e na maioria das pessoas) motivações que, sem dúvida, são bastante inferiores às de qualquer rato de esgoto que, dentro de suas condições ideais, sabem bem manter sua coerência. Deixemos de lado o sujeito.

Vi, num documentário exibido em outra grande emissora, o trabalho desenvolvido por uma senhora no sul do país. Ela gasta seus dias abordando, ao lado da polícia, homens “maus” que se utilizam de cavalos para puxar as carroças carregadas de lixo destinado à reciclagem.

Os cavalos são mal cuidados, não têm acompanhamento de um veterinário, não se alimentam bem, carregam muito peso e trabalham demais.

Os que assistiam ao programa devem ter chegado às lágrimas quando soltaram um dos cavalos num campo gramado! O pobrezinho rolava na grama e parecia relinchar agradecimentos e juras de eterna gratidão à sua libertadora!

Enfim, em todos esses programas vemos a ação desses heróis salvadores e frases semelhantes como a que soltou o imbecil do programa citado mais acima.

Como quase tudo nesse mundo, isso me parece assustador!

Insisto que não defendo que os animais devam sofrer. Apenas acredito que essa dedicação aos animais, com raras exceções, esconde necessidades afetivas e de sociabilização, que tornam-se mais comuns na medida em que nos tornamos cada vez mais egocêntricos e pensamos as relações com outros iguais sempre calculando custos e benefícios.

A relação com alguém que está vivo, mas não lhe responde, não questiona e é totalmente submisso, dependente e agradecido deve suprir a carência de vida desses humanos-robôs idiotizados que têm a tomada no próprio umbigo.

O caso dos cavalos é emblemático.

Pensem bem: ninguém passa a vida revirando lixo para reciclagem porque acredita que isso é importante para o meio ambiente. No geral, os “verdinhos” estão bem distantes do lixo, das doenças e do fedor.

Naquela cidade do sul, os que precisam sobreviver e, por isso, reviram os lixos, carregam toneladas naquelas carroças. As casas onde moram são bastante precárias, como demonstrado na reportagem, além de ser um trabalho penoso que, combinado com uma alimentação também precária, deve garantir muitos anos de vida a menos para os que estão ali trabalhando, além do quadro evidenciar uma vida de sofrimento e carências materiais diversas.

Assim como os cavalos, os humanos ali são mal cuidados, não têm acompanhamento de um médico, não se alimentam bem, carregam muito peso e trabalham demais.

Os cavalos lhes foram retirados… Eles devem puxar a carroça agora!

Vi, certa vez, na Praça da Sé, um garoto que passou pelo ponto do ônibus onde eu estava as 22:30h, no meio da semana, numa velocidade incrível. Estava puxando com o peito um carrinho enorme, carregado de papel e papelão. Não aguentou o peso na descida e não pôde escapar da grade do carrinho, que pegou velocidade. O garoto se espatifou no final da rua, afinal não poderia fazer a curva com o carrinho desgovernado.

No ponto de ônibus, as pessoas riram.

Imaginem se fosse um cavalo!!!

Deixemos de lado os tais direitos humanos! Caso déssemos aos humanos os mesmos direitos dos demais animais, a vida poderia ser mais feliz.

Repito as mesmas palavras do segundo parágrafo desse texto, agora com relação ao humano, que também, não devemos esquecer, é uma espécie animal: Não sou contrário a defesa dos animais, nem de que tenham uma vida digna e direito à vida, alimentação, carinho, que não sejam abandonados à própria sorte, nem maltratados, torturados e coisas assim.
Entre crentes e fanáticos: a violência de Paris é cotidiana…
07/01/2015 ~ 8 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

Certa vez ouvi de um aluno meu, do ensino superior, que os ateus deveriam morrer… O seu raciocínio era simples e lógico: já que recebemos a vida de deus, o mínimo que merecem os que não acredtiam nele é perdê-la, visto que é uma imensa ingratidão continuar com o presente recebido sem reconhecer e agradecer diariamente quem o ofertou.

Para tentar argumentar por dentro de seu campo, perguntei a ele se era razoável matar as pessoas por não acreditarem em deus, visto que, ainda que ele (deus) existisse, teria criado seres capazes de não ter fé (visto que os ateus existem), portanto, ainda que sugerindo que isso tudo fosse razoável, seria igualmente razoável que deus liberou os humanos para que acreditassem nele ou não. Tendo feito deus assim, como poderia achar que ele (o estudante) deveria resolver de outro modo o desígnio divino?

A sua resposta foi rápida: deus nos deu liberdade, mas também nos deu sua palavra revelada e nela está que devemos adorá-lo sobre todas as coisas. Sendo assim, não cabe a deus defender o mundo e os crentes dos ateus, mas aos homens de fé… A conclusão, que ele não proferiu, é óbvia: deus fica lá quietinho e os que têm fé formam seu exército de justiceiros divinos.

Minha última questão foi simples: e em qual deus, deuses ou deusas devemos acreditar? Ele foi categórico: no deus trino, na salvação conquistada pelo sofrimento de Jesus, enfim, no deus dos cristãos. As demais religiões para ele eram equivocadas…

Não acredito que esse estudante sozinho seria capaz de matar pessoas por causa da fé, mas não tenho dúvida que pela intolerância expressa e pelos limites da sua argumentação, poderia fazê-lo desde que estivesse num grupo maior.

Em qual momento a fé vira fanatismo dado a executar barbaridades? Poderíamos acrescentar aí não apenas a fé, mas determinadas convicções morais, políticas, étnicas etc. Qual o limite entre lutar por algo que parece razoável e ser fanático ao ponto de realizar atrocidades sem razão?

Parece que a linha que divide as duas coisas está na maneira como concebem o que acreditam os que possuem causas quaisquer. Mas pricipalmente está no fato de não conseguirem alargar o horizonte do raciocínio para além do seu próprio campo, o que significa que qualquer maluquice pode adquirir sentido. Voltando ao exemplo do estudante, disse que seu argumento era lógico, mas a lógica formal que governava sua maneira de pensar era, desde sempre, escrava de um campo fechado, pois operava apenas por dentro e a partir de uma certa concepção de cristianismo, sem estabelecer relações com a vida concreta, com outras visões de mundo, com zilhões de coisas das quais depende a existência de uma simples folha de árvore e, ao mesmo tempo, depende também a constituição de espécies e seres contingentes e casuais como somos nós etc.

Assim também operam os fanáticos de todo tipo: as demais religiões possuem os seus; há militantes políticos, de direita e de esquerda, reféns da mesma lógica circular e hermética.

Uma outra consequência para as vítimas que ultrapassam a barreira do que acreditam para o campo do fanatismo dogmático é a intolerância radical e a prática da violência com relação a tudo que é diferente do seu mundinho… Um outro estudante, certa vez, disse que seu pai lhe falava que estudar era uma grande perda de tempo. Ele dizia que não havia estudado nada e sabia tudo do mundo e da vida… O próprio estudante concluiu: “Imagine, professor, o mundinho em que vive meu pai!”

É isso! Quem acredita que sabe tudo desse mundo sabe, na verdade, tudo de um universo restrito, um mundinho que ele enfiou na cabeça como sendo o todo. Ora, quem sabe de tudo não tem nada a aprender, apenas a ensinar. Daí a arrogância encontrada não apenas no exemplo do pai do estudante, no senso comum, nos que não estudaram, mas também a arrogância que está presente, principalmente, naqueles que estudaram muito. Estes não são capazes, no geral, de responder sem violência ao mínimo questionamento. É curioso como um fedelho qualquer que coloca o pé na universidade vê-se, da noite para o dia, como conhecedor das coisas todas e um arrogante de primeira linha. Talvez o exemplo ensine mais que os livros: ele tem espelhos nos seus professores…

Quando falo da violência não me refiro apenas à violência direta, do assassinato, como fizeram em Paris… Falo também da violência simbólica, da violência do preconceito e da exclusão, que também mata aos montes e destina vidas a seguirem caminhos dolorosos por um decreto da irracionalidade.

Não estou fazendo o discurso de um pacifismo tolo. Sei reconhecer o papel da violência na história como algo objetivo. Mas é necessário, sempre, que digamos o óbvio diante de fatos estúpidos como o que ocorreu com os responsáveis pelo jornal parisiense. É necessário condenar a violência religiosa e a tentativa de impor aos demais que vivam segundo os preceitos de uma divindade qualquer que não acreditam. Jamais vi os ateus reagindo dessa forma estúpida ao serem chamados de pagãos, de infiéis, de condenados, possuídos pelo demônio e uma série de outros termos tolos.

A intolerância religiosa, pricipalmente a que parte dessas três religiões monoteístas (cristianismo, islamismo e o judaísmo), suja a história de sangue e dor. Aliás, e com raras exceções de pequenos grupos, elas sempre estiveram ao lado de interesses poderosos pelo mundo afora, jamais ao lado dos trabalhadores, jamais ao lado dos oprimidos concretamente.

Tenho certeza de que a maior parte dos adeptos dessas religiões condena coisas como a que ocorreu hoje na França e, inclusive, manifestam-se contrárias ao atentado. Mas não vejo, por outro lado, um grande empenho de todos os crentes no sentido de uma fraternidade de fé, pelo menos no sentido da tolerância e do respeito mínimos aos demais.

Na virada do ano, desejei aos amigos que o ano de 2015 fosse mais gentil com todos nós. Pelo menos isso. Parece que esses animais estúpidos – me refiro à espécie humana – não serão capazes disso. Paciência. Há muito e vem muito por aí…
A nova onda da classe média cor-de-rosa
07/11/2014 ~ 6 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

Meses atrás a histeria coletiva da classe média pedia a redução da maioridade penal. Recentemente foram presos os que, na época, viraram heróis dessa gente, quando prenderam um jovem negro num poste e ali o espancaram: eram traficantes da região do Flamengo, no Rio, filhos de classe média, que apenas estavam eliminando a concorrência… Foi a mesma oportunidade em que uma jornalista obtusa soltou a célebre frase: “quem está com dó, que leve pra casa.” Vimos muita gente defendendo a justiça com as próprias mãos, até que uma turba ensandecida matou por espancamento uma mulher inocente em Guarujá, dentre outros assassinatos e espancamentos ocorridos por todo o Brasil. Ainda mareja os olhos lembrar o suplício daquela mulher, que confundida com uma sequestradora de crianças de outro Estado por algum desses imbecis, morreu sem ter tempo e chance de se defender…

Nas chamadas e mal compreendidas “Jornadas de junho”, em 2013, a classe média cor-de-rosa também mostrou as garras… Agrediram militantes de organizações que estão por décadas nas ruas e em todas as lutas, reivindicaram para si o direito supremo de decidir que a partir dali era ela quem dava as cartas, ainda que sem saber exatamente porque saía às ruas… Mas ela tem fôlego de ancião, embora seja composta por grande número de jovens: não aguentou mais que duas semanas para reconduzir ao berço esplêndido o gigante recém acordado… São os mesmos que animaram-se com as marinagens e tucanagens das eleições presidenciais, que reelegeram o PSDB em SP, que elegeram deputados e senadores conservadores pelo Brasil afora, dentre eles ex-militares fascistóides e suas crias, pastores infelizes, racistas e homofóbicos, assassinos da Rota paulista…

Estiveram num ato público pouco antes do segundo turno, no Itaim Bibi, conhecido bairro de endinheirados de São Paulo. Gritaram contra o comunismo, diziam aos que votariam em Dilma que fossem embora para Cuba, ouviram discursos inflamados do filho de Bolsonaro, eleito deputado por São Paulo, que compareceu devidamente armado. Ofenderam trabalhadores que circulavam ao final da tarde, indo pra casa depois de servirem às suas portarias e limparem sua sujeira… Cantaram o hino nacional em frente ao shopping JK, puxado por uma cantora que nem mesmo mora no Brasil e que tem questionável intelecto…

Passadas as eleições e confirmada a reeleição de Dilma, retornaram aqui e ali às ruas. Ofenderam novamente os trabalhadores, cometeram injúrias raciais diversas, atos explícitos de racismo nas redes sociais e nas ruas, imploraram a militares por uma intervenção, pediram pelo retorno da ditadura militar, colocaram em questão a contagem de votos… Infelizmente os que prometeram ir embora caso Dilma vencesse desistiram e resolveram aparecer, envolvidos pela bandeira nacional, como micos animadores de uma quase festividade reacionária tão estúpida como a daqueles que estendiam as mãos espalmadas para a passagem do Führer… Eles lamentam não terem um desses: o Brasil, na concepção dessa gente, foi incapaz de produzir alma tão grandiosa. Resta sonhar com a reencarnação dos gorilas de farda de 1964…

Mas eles são apenas tolos mesmo. O discurso sem fundamento esconde, na verdade, o asco que criaram por qualquer coisa que carregue o nome de “trabalhador”. Ainda que os governos do PT estejam dentro da ordem e garantindo nesses anos todos alta lucratividade ao capital, eles não se conformam que ocorra qualquer tipo de política compensatória, distributiva ou de estímulo aos trabalhadores. Atribuem a miséria a questões genéticas e tratam como inferiores os que foram, historicamente, colocados à margem do desenvolvimento capitalista. Herbert Spencer, Gobineau, Gall, Galton fariam muito sucesso entre eles, caso pretendessem estudar alguma coisa para dar explicação às suas tolices. Mas nem de intelectuais racistas eles gostam. A histeria não dá lugar à razão, são incompatíveis.

Alguém disse recentemente que quem não conseguiu até hoje engolir a lei Áurea não pode aceitar que trabalhadores tenham uma vida melhor. Infelizmente há razão nessa constatação. Apenas podemos corrigir um tanto: eles até aceitam a lei que libertou os escravos. O que não podem aceitar é que quem deveria ser escravo pretenda deixar de viver como um, que esteja em espaços comuns, que utilizem os mesmos elevadores, que viajem nos mesmos aviões, que comam da mesma carne.

Na verdade a classe média cor-de-rosa tem pavor da melhoria de vida dos trabalhadores, tem medo do seu acesso (ainda que precário) aos bancos do ensino superior. Ela precisa de pobres e ignorantes para justificar diante da burguesia suas supostas competências, registradas em certificados e diplomas. Ela precisa fazer acreditar que é por esforço e mérito pessoal que merece o reconhecimento e os melhores postos de trabalho para que ela possa se replicar geração após geração. Como dizia Bourdieu sobre a escola, eles precisam do privilégio supremo de não aparecerem como privilegiados. A ideologia do mérito pessoal é sua fé e a existência de miseráveis é o elemento comparativo necessário para que ela possa mostrar-se como grupo diferenciado, assim como uma bolsa maior somente pode ser assim reconhecida se comparada com uma menor… Tenho medo e dó dessa gente ao mesmo tempo.

Mas, infelizmente para eles, não haverá intervenção militar alguma. Em 1964 havia uma fração nova e poderosa do grande capital (o capital monopolista, instalado aqui fisicamente com as multinacionais) à qual interessava a saída ditatorial para realizar seus objetivos mesquinhos: exploração de força de trabalho muito barata, acesso a matérias primas, exportação e reprodução do capital sem limites ou barreiras. A última tentativa de resolver isso pela própria ordem burguesa foi a eleição de Jânio Quadros, apoiado e levado à presidência pela UDN (algo como o PSDB e o DEM de hoje). O fanfarrão presidente tentou um golpe de força e foi substituído pelo herdeiro do trabalhismo getulista, João Goulart, que nada tinha de simpatia pelos comunistas, apenas prometia reformas que beneficiariam os trabalhadores e impediria a livre sangria das nossas riquezas pelo grande capital… Foi o momento em que a própria burguesia rompe com a ordem constitucional, com sua própria ordem portanto, demonstrando uma vez mais que ela não possui nenhum compromisso com as tais liberdades democráticas. Era necessário um Estado repressivo para impedir que os trabalhadores reagissem à ampliação da sua exploração e um Estado que lhes beneficiasse diretamente através de obras estruturais, concessão de monopólios extrativos e matérias primas beneficiadas em siderúrgicas estatais vendidas por vezes abaixo do preço de custo… Era disso que se tratava ali. Não havia ameaça comunista alguma. Os militares brasileiros cumpriram bem o seu papel de rastejantes lacaios dos interesses imperialistas, como sabemos pelas histórias de prisões arbitrárias, censura, proibição de organização, torturas, assassinatos, ocultação de cadáveres etc., etc. Alguém que defende a ditadura ou pede sua volta merece somente o sentimento de dó e o lamento por sabermos que existe gente desse tipo vivendo entre nós. As forças armadas brasileiras e o Exército, em particular, conquistaram com isso apenas uma mancha de vergonha e de sangue de brasileiros contra os quais voltaram suas armas.

Curioso é que a classe média mesmo foi das primeiras a se arrebentar com a política econômica da ditadura, assim como se despedaçou com a entrada das multinacionais pouco tempo antes. O mesmo aconteceu nas experiências fascistas. Mas ela estava lá, servindo de base social para esses movimentos todos. São corresponsáveis pelo extermínio de povos nativos e por milhões de mortos de fome desses anos nefastos.

É evidente que não sabiam (e até hoje não sabem) do que se tratava. A sua mediocridade intelectual e sua centrada perseverança no próprio umbigo não lhe permite compreender, mesmo com a distância histórica, o que foi aquela tragédia para os brasileiros. Envoltos em bandeiras nacionais, eles saíram às ruas lá, como hoje, gritando contra a ameaça comunista, contra a corrupção, pedindo a intervenção dos militares. As beatas marchadeiras da classe média saíram às ruas pela família e pela liberdade, com deus e os eunucos do reino…

Prepararam o terreno e a base social para que golpe e a ditadura viessem e os interesses do grande capital fossem atendidos plenamente…

Hoje não há esse interesse por nenhuma fração do grande capital. Que o capital financeiro prefira, sem dúvida, gente de sua estrita confiança (no caso, um presidente do PSDB), não há dúvida. Mas não há nada no horizonte que ameace seus interesses seriamente. Podem tocar a vida assim.

Portanto, aviso de novo, não haverá golpe agora. Não imagino que qualquer um desses infelizes que andam pelas ruas pedindo a volta da ditadura esteja lendo esse texto até agora, mas quem sabe alguma alma bondosa tente explicar isso a eles de alguma forma.

Caso alguém se disponha a cumprir tarefa tão terrível, peço que diga a eles outra coisa: há, sem dúvida, semelhanças entre as palavras de ordem do pré-1964 e as de agora. Mas não há o elemento fundamental para usar essa gente estúpida toda como base social. Para o capital vai tudo muito bem. Resta apenas lembrar aquela formulação de Hegel, de que a história se repete duas vezes, acrescida do comentário de Marx: a primeira como tragédia, a segunda como farsa ou como comédia. É só disso que se trata agora: esses imbecis nos propiciam uma lamentável comédia.
As três principais candidaturas são iguais?
03/10/2014 ~ 6 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

Observação preliminar: O texto ficou mais comprido do que pretendia, mas ainda assim com a linguagem própria que uso no blog, com formulações que mereceriam, sem dúvida, melhor explanação. A intenção principal é dar alguma explicação para pessoas que questionam minhas posições tomadas recentemente e que não são militantes. Mas também serve para dialogar com militantes, como tenho feito nos últimos meses. Peço encarecidamente que compreendam a crítica que faço às organizações da chamada ”esquerda revolucionária” como uma crítica feita pela esquerda e com a franqueza que marca a relação entre camaradas. Temos uma boa polêmica aí… Apenas faço a observação para que os vários amigos e amigas militantes não tomem nada aqui como algo pessoal (em particular meus camaradas do PCB) e para que nenhum tucano, marinero ou qualquer outro tipo de gente pelega e desprezível use meu texto para a crítica (sempre rasteira) pela direita.

Há um discurso consensual entre algumas organizações da esquerda que afirma a igualdade de projeto das três principais candidaturas à presidência da República. Na propaganda eleitoral desse período essa afirmação aparece na formulação sintética de que todos são iguais – candidatos e partidos ou coligações -, o que leva à compreensão de que a eleição de qualquer um deles significa, na prática, a mesma coisa.

Já que estamos às vésperas das eleições, vale procurar dar uma resposta rápida e inteligível aos que não são do meio (me refiro à militância da esquerda), como uma maneira de participar do debate e também como única e limitada forma (infelizmente) que me resta de participar nesse momento da vida política prática.

As referidas organizações são os partidos e demais agrupamentos que se intitulam a “esquerda revolucionária”, que possuem o mérito de manterem, afirmativamente, a bandeira do socialismo e da necessidade do processo revolucionário vivos, mas que (e por razões diversas) não conseguindo participar das lutas concretas e das contradições realmente existentes em nossa conjuntura, atuam negativamente com relação à própria possibilidade de avanço desse processo. São partidos como o PCB, o PCO, o PSOL e o PSTU, mais uma infinidade de “coletivos”, “agrupamentos”, “ligas” e outras coisas que possuem, cada qual a sua maneira e de forma cada vez mais isolada, um belo discurso revolucionário e “vanguardeiro”. Quanto menores e mais distantes da realidade, mais esses pequenos grupos se apresentam como os portadores da verdade revolucionária.

Confundindo a realidade objetiva com a própria vontade (como é próprio do esquerdismo) esses grupos confundem o objetivo revolucionário (estratégico) com as mediações necessárias e cambiantes de cada conjuntura (a tática): ao afirmar a necessidade da revolução, afirmam também que as condições para que ela ocorra já estão presentes, atribuindo aos traidores da classe (como é próprio do trotskismo) ou a pequenos ajustes conjunturais a razão do seu atraso. Não é raro dirigentes dessas organizações verem a “protoforma do proletariado revolucionário” em ação nas ruas, mesmo quando temos apenas uma manifestação massiva e plena de contradições com tendências majoritárias à direita como foram as tais “jornadas de junho”. O revolucionarismo pequeno-burguês, mesmo que tenha participado daqueles eventos à reboque e a duras penas com seu reduzido número de militantes, tende a ver-se como a essência cristalina e pura da transformação como mero ato subjetivo da vontade. Não conseguiram explicar até hoje como o “proletariado revolucionário” das ruas de junho aparece agora, nas urnas, como eleitores de Aécio Neves e de Marina Silva… Insistem apenas em proclamar-se os fiéis representantes da “rebeldia das ruas”…

É a partir desses equívocos que a proclamação da igualdade das candidaturas que se apresentam com possibilidade de vitória ganha espaço. O argumento é bem simples e de lógica formal, embora mude um tanto aqui e ali e tenha sempre um suposto estudo de base da nossa formação social e da nossa conjuntura como referência. Sinteticamente funciona assim: 1 – as contradições geradas pela ordem burguesa apenas podem ser resolvidas plenamente pela via revolucionária e pela construção do socialismo; 2 – as três candidaturas que têm possibilidade de ganhar as eleições formariam governos em prol do capital; 3 – portanto, se nenhuma das três encampa a ideia da revolução socialista, todas elas são uma única e mesma coisa.

Despidas da parafernália das citações e de afirmações sem fundamento próprias dos programas de cada uma dessas organizações (e de qualquer outra, sem dúvida), a coisa fica simples assim, quase infantil… Ou plenamente infantil.

Premissas justas para conclusões equivocadas, como diria Lênin. Os pontos 1 e 2 são premissas bastante justas e correspondem à realidade objetiva. A conclusão (ponto 3) é o equívoco. Mas ainda assim o argumento permanece infantil. Para abusar de Lênin, não foi a toa que juntou ao termo “esquerdismo” a qualificação de “doença infantil” do comunismo. Livro, aliás, infelizmente pouco lido…

Constatar que os governos de Lula e Dilma serviram ao grande capital é como afirmar com tom de descoberta científica que fogo queima e água molha. Não apenas o de Dilma e Lula, mas também os de FHC, de Collor, de Sarney, os dos generais da ditadura… Para marxistas deveria ser bem óbvio que, dentro da ordem burguesa, não apenas o Estado, mas toda a estrutura jurídico-política serve ao grande capital. O mesmo serve também para o tratamento dos limites dos processos eleitorais dentro dessa ordem.

O que falta aqui é perceber, a partir da análise da nossa conjuntura e não da que a vontade desejava que existisse, que a ordem burguesa, assim como o processo revolucionário, não são estáticos, portanto, são plenos de movimento e de contradições. É tendo como referência o objetivo estratégico que as mediações com a vida real precisam ser construídas. Isso significa participar da vida e das lutas do cotidiano dos trabalhadores, das condições severas e adversas que abrem as possibilidades de avançar um passo aqui e recuar outros ali. Significa atuar em todas as contradições possíveis dentro da ordem burguesa, no sentido de aguçá-las.

Um exemplo: dia desses li um documento de uma dessas organizações, escrito por um quadro experiente. O documento afirmava que o anúncio da possibilidade do plebiscito por uma constituinte e pela reforma política era um oportunismo do governo e, portanto, seu partido não deveria participar. Como justificativa, havia um longo e choroso histórico da tentativa de fazer algo parecido no início do primeiro mandato de Lula (em 2003), quando supostamente haveria base social para algo muito progressista. Essa possibilidade, no entanto, não se realizou: Lula preferiu negociar com o grande capital. A conclusão, óbvia para a lógica formal, é que se não fizemos lá em 2003 (com a promessa de que seria algo viável e progressista), não devemos participar agora, afinal o parlamento brasileiro é burguês (!) e conservador… Além disso, o plebiscito seria agora apenas um expediente do governo para enganar as massas. Faltou apenas acrescentar: “e retirar-lhes do caminho inexorável e reto rumo ao socialismo!”.

O discurso é, de fato, coerente. Mas sabemos que coerência apenas não resolve e muito menos qualifica nada. Para o mentiroso é muito coerente seguir mentindo…

Podemos tratar de dois pontos de forma rápida:

1º – apenas uma parcela (equivocada) da esquerda (inclusive de fora do Brasil) acreditava que o PT, ao chegar ao governo federal, iria fazer algo para além do que fez: ajustes dentro da ordem, concessões aos trabalhadores, tentativa de privilegiar frações produtivas do grande capital apesar da força da fração financeira… Eu mesmo vi (e me pareceu engraçado), nas primeiras manifestações contra uma suposta “traição” do governo petista , na Assembléia Legislativa de São Paulo, um encontro inusitado: militantes do PFL (atual DEM) e da tucanagem misturados com bandeiras vermelhas das “ligas de alguma coisa” e de partidos trotskistas… Lula foi eleito numa conjuntura em que as lutas populares estavam em alta no segundo mandato de FHC, envolto em perdas salariais, aumento do desemprego, taxas de juros elevadíssimas… Foi eleito fazendo desde a campanha concessões programáticas diversas, com um discurso do diálogo entre as classes, expresso nas ideias do “governo como mesa de negociação contínua”, “de conciliação” e tendo como figura maior o líder carismático travestido de “Lulinha paz e amor” pelos marqueteiros eficientes que cuidaram da sua campanha. Foi aceito pelo grande capital como uma necessidade daquela conjuntura, não para fazer revolução alguma, mas para manter a ordem burguesa, ainda que, para tanto, fossem necessárias concessões como aceitar o ex-operário presidente, um partido do campo da esquerda no governo, mais políticas de distribuição de renda e de inclusão para reduzir a miséria gritante do nosso país. É confundir realidade com vontade afirmar que havia, lá em 2003, base social para algo muito avançado. Mais ainda atribuir a uma suposta traição do novo governo não fazê-lo.

2º) qual o resultado concreto das tais “jornadas de junho”, tão lembradas e distorcidas pelas organizações da esquerda? Além da redução do valor da passagem (os tais vinte centavos de São Paulo), a única medida concreta que veio como resposta por parte do governo foi a promessa do plebiscito e da reforma política… Como negar que a iniciativa é o único resultado concreto, pelo menos até agora, daquele movimento? É óbvio que o governo vai tentar controlar o processo. Mas dizer que as quase quatrocentas organizações populares, sindicatos e mandatos parlamentares que apoiam o plebiscito são apenas correias de transmissão do governo e que vão operar a reforma no sentido de ir contra os anseios populares me parece muito mais fora da realidade do que compreender que é necessário que as organizações de esquerda que mantêm o objetivo socialista precisam atuar nas contradições que fatalmente aparecerão entre os interesses de movimentos populares distintos e os caminhos pretendidos pelo governo. A pressão popular pode, sim, arrancar da ordem burguesa e do seu governo elementos progressistas, que alteram a vida dos trabalhadores, que educam no sentido da organização, que abrem novas possibilidades e contradições.

Enfim, poderíamos desenvolver mais e melhor os argumentos acima, mas me parece que apenas esses dois pontos já podem esclarecer como é frágil o discurso… Da mesma forma que o plebiscito e a reforma política são da ordem burguesa, também são as eleições. Ou pretendiam os “revolucionários” agora fazer o socialismo por plebiscito, já que não o fizeram pela eleição do presidente em 2002?

É atuar na luta política concreta, com as possibilidades com que se apresenta hoje que está em questão. Isso também pode levar a desvios de direita, a adesismos etc.. Mas apenas correm riscos os que se colocam em movimento…

Meu argumento para as eleições e para a negação da suposta igualdade dos candidatos é o mesmo. Não podemos afirmar que os governos Lula e Dilma são a mesma coisa que os governos de FHC. O esquerdismo é leviano e irresponsável quando faz isso. Há, sem dúvida, uma melhora nas condições de vida dos trabalhadores, em particular dos mais empobrecidos. Mudanças que, aliás, têm mudado o cenário de alguns cantões do Brasil, utilizados até pouco tempo atrás como reserva de votos de legendas da direita, como o DEM.

Enfim, não é possível fazer festa para os governos do PT, sem dúvida, como fazem o próprio partido e alguns de seus aliados de sempre do campo da esquerda, como o PCdoB. Mas também não é possível negar que se vive melhor hoje do que no ano 2000… Que o governo serve aos interesses do grande capital não há dúvida, mas isso não nos deve permitir negar que ocorreram mudanças, mudanças qualitativas, que abrem e podem ainda abrir novas contradições, tanto entre frações do capital (a financeira e a industrial, por exemplo), como abre possibilidades para a atuação dos setores mais avançados da esquerda, com possível acesso a áreas e a contingentes de trabalhadores que, tendo necessidades básicas sanadas, abrem-se também para a possibilidade de outras soluções, para além do clientelismo do Estado, pelo menos em princípio para simplesmente ter acesso a condições mais favoráveis de vida.

Lembro, ainda lá no começo do governo, em 2003 ou 2004, ter ouvido Lula dizer algo mais ou menos assim: “esses trabalhadores tendo acesso ao básico aprendem também a querer mais”. Claro que não tomo Lula como uma referência teórica, mas nesse caso ele pode ter razão. O “aprender a querer mais” pode ser tanto criar a dependência direta do Estado e dos seus programas, quanto pode ser também alcançar novas formas de organização, reforçar antigos ou criar novos instrumentos de luta econômica reivindicatória; pode ser também o caminho para que um grande contingente de trabalhadores compreenda, na vida e na luta prática, que há limites nesta ordem e avancem para a luta política mais consequente. Para que isso ocorra necessitamos de organizações comprometidas com a estratégia revolucionária, mas que tenham os pés bem grudados no chão e sejam capazes de participar dessas lutas, desse processo. Vejam que falo do “possível”: isso significa que as contradições que se abrem apenas podem ser resolvidas ou aguçadas favoravelmente aos trabalhadores caso tenhamos uma ação consequente, que saiba apontar a contradição, o caminho de sua resolução e os limites do resultado dentro dessa ordem…. Apenas com forte trabalho inserido e a partir dessas novas possibilidades há construção efetiva de organizações revolucionárias e a possibilidade, no longo prazo, da retomada concreta da perspectiva socialista…

Fora essas novas e as antigas possibilidades, fora as novas contradições que esse ciclo gera, é necessário ter responsabilidade com aqueles que estão mais fragilizados pela pobreza extrema. Ainda que sejamos ainda um país de pobres, esse período recente conseguiu retirar da fome milhões de pessoas. Isso somente é um dado secundário para quem está com o buchinho cheio e olha o Brasil a partir da janela fechada do carro e vê apenas a Avenida Paulista, sonhando com os Champs-Elysées… A manutenção desses programas e a luta popular para que avancem para além disso deve ser uma bandeira de luta das organizações mais avançadas. Programas, como o PAA, que têm incentivado a geração de uma grande quantidade de pequenos produtores rurais, mudando a vida e o cenário de muitas cidades nordestinas precisam ser defendidos.

Enfim, não podemos afirmar que são iguais as três candidaturas principais… E, já que infelizmente não temos condição de eleger para a presidência um projeto mais avançado, me parece mais razoável (embora não seja feliz…) votar e torcer por uma nova vitória petista nestas eleições. Torcer ao mesmo tempo para que ao lado dos nossos militantes da esquerda de hoje se juntem outros milhares de homens e mulheres de luta, para o aprofundamento do que é progressista, para o acúmulo necessário do combate para darmos no longo prazo saltos maiores. Para tanto precisamos de grandes reformulações nas linhas políticas e na composição das organizações de esquerda.

Como conheço bem esse meio (são duas décadas e meia de militância…), tenho certeza de que esse meu texto terá frases isoladas e a pronta condenação por revolucionários de gabinete, prontos já para defenderem o voto nulo no possível segundo turno. Não se deve esperar mais que isso do esquerdismo… Serei chamado de nomes muito feios para quem é militante comunista (reformista e daí pra baixo). Mas também sei que há muitos camaradas vivendo os dilemas do esquerdismo, percebendo que sem a relação com a realidade concreta não há nenhum futuro para essas organizações, e sei que eles saberão compreendê-lo à luz de outras discussões que já tivemos no mesmo tom.

Não defendo, por fim, o “voto útil”: defendo a “utilidade do voto” como condição, nessa conjuntura, para avançarmos em possibilidades, dialogarmos com a realidade e, ao mesmo tempo, retomarmos a responsabilidade sobre o futuro imediato de milhões de trabalhadores, que seriam mais penalizados com uma vitória das outras duas candidaturas.

A ausência de estrutura material e o desigual acesso aos meios de comunicação de massa justificam parcialmente a parca votação das candidaturas da esquerda. Mas devemos também considerar suas dificuldades em dialogar com os trabalhadores há muitos anos e de participar dos problemas e das lutas cotidianas. Ao apresentar apenas o horizonte estratégico (socialista), sem as devidas mediações, essas organizações acabaram por se fechar ainda mais no universo pequeno-burguês que combina com sua linha política escatológica. Orgulham-se de não fazerem política porque assumem o dever (moral) de não lidar com nada que não seja diretamente a revolução. Como ela não chega logo, da mesma forma que para os cristãos Jesus demora em voltar, vivem de apontar os dedos para os que se maculam nas fétidas águas da realidade objetiva. E tocam a vida satisfeitos e plenos de razão… Portam-se como quem chega virgem aos 100 anos e nada mais lhe resta a não ser autovalorizar a própria pureza, ainda que ninguém se importe com isso.
Os resíduos de junho de 2013, as esquerdas e as eleições.
05/09/2014 ~ 3 COMENTÁRIOS


Cesar Mangolin

Na campanha eleitoral deste ano podemos ver candidatos e partidos diversos falando em nome do “recado das ruas” de junho de 2013. Cada qual que tenta aparecer como porta voz daqueles eventos faz deles a interpretação que melhor lhe cabe. Partidos da direita, de centro e de esquerda, também as legendas de aluguel, enfim, para qualquer um as manifestações do ano passado servem. Desde os que defendem a “rota na rua” até os que estão vislumbrando a revolução socialista para a semana que vem.

Penso que já há certa distância para que possamos pensar no saldo, ou no rescaldo, de junho de 2013. Pensar no que aquelas manifestações representaram de fato. Arrisco aqui sugerir ainda, mais ao final, possibilidades ainda sem um tratamento mais aprofundado de caminhos a seguir. Um debate necessário, que deve partir de incertezas e não de verdades absolutas.

Muitos de nós escrevemos ali, em 2013, no calor da hora, tentando uma interpretação mais próxima da realidade, tendo em vista nossa participação nela. Sem dúvida, quem escreveu naquele momento não tinha ainda a visão dos seus desdobramentos, portanto, cometeu equívocos e bons acertos – como ocorre geralmente com as tentativas de prever o futuro.

Eu mesmo escrevi, dias antes da grande manifestação de São Paulo, um texto que deu muita atenção aos boatos golpistas daquele momento. Penso que não foi sem justificativa: uma quantidade grande de gente se precipitando às ruas, de alguma forma, obrigou que agrupamentos políticos diversos se manifestassem. Houve a manifestação por parte de setores reacionários e o fantasma das saídas golpistas esteve no ar, efetivamente. Podemos agora perceber melhor que a conjuntura, porém, não permitiria a formação de base social concreta para as aspirações desses grupos mais à direita. Concluir isso agora é, obviamente, bastante fácil. Não me parecia assim no calor da hora. Eis minha autocrítica.

Mas meu texto também chamava a atenção para outro erro muito comum, que persistiu na análise de setores da esquerda sobre junho. Dizia naquele texto que não se tratava da juventude nas ruas protestando contra a ordem burguesa, mas ao contrário: que o grande fluxo que foi para as ruas somente ocorreu quando, para além do aumento do preço das passagens (o que envolvia mais diretamente a prefeitura de São Paulo), houve a associação com o governo federal. Essa associação não expressava exatamente qualquer desconforto com a ordem burguesa, mas explicitava um ranço conservador e de direita da crítica rasteira dos setores médios a um governo que, apesar dos pesares, ainda carrega a palavra “trabalhadores” no nome do partido.

Isso pode ser compreendido quando o governo do Estado de São Paulo (do PSDB) retirou das ruas o aparato repressivo que dias antes tinha massacrado uma manifestação bem menor no centro da cidade. O grosso daquelas manifestações que percorreram todo o território nacional foi formado pelos setores médios urbanos, conservadores, que fazem do discurso meritocrático sua bandeira e sua principal ilusão. Não tenho receio em afirmar, hoje, que aquele movimento teve um saldo de expressão e aprofundamento do conservadorismo, que se expressa politicamente pedindo mudanças, mas mudanças à direita e plenamente dentro da ordem. Não é a toa que o grosso dos que participaram daqueles movimentos vê numa fraude como Marina Silva a esperança para a solução dos seus problemas. Gente da mesma estirpe também viu em Mussolini e em Hitler a mesma promessa (sem querer, evidentemente, dar a Marina a estatura histórica dos dois citados).

Intelectuais, dirigentes e militantes da chamada “esquerda revolucionária” tenderam a um discurso triunfalista: confundindo a própria vontade com a realidade objetiva (como é próprio do esquerdismo), compreenderam ali um avivamento das lutas populares que não ocorria efetivamente. A desastrosa sequência das atividades, com a equivocada palavra de ordem “não vai ter copa” e seus correlatos, colocou esses partidos a reboque de dois grupos distintos em São Paulo: os infantis coletivos ultra-esquerdistas e o movimento de luta pela moradia, em particular, o MTST. Este último, vivendo das condições e contradições de qualquer movimento, ao ter a promessa de que suas aspirações seriam realizadas pelo governo federal, se retirou das ruas. Restaram os “anarcoloucos” da vida, seguidos de uma reduzida militância partidária perdida e sem peso político. O resultado sabemos qual foi: repressão desmedida, prisões arbitrárias, ausência total de respaldo ou diálogo com demais setores dos trabalhadores e o aprofundamento no caminho do auto-isolamento em guetos felizes que vêm a revolução às portas a qualquer grunhido da classe média. Protegidos ali pela bandeira casta dos princípios revolucionários, deixam de fazer política em nome da pureza moral. Esquecem-se da chamada de atenção de Lênin de que a política não se faz pelos princípios, tampouco se trata de um passeio em campo aberto, sem obstáculos. O esquerdismo é incapaz de participar da vida real e de utilizar como ponto de partida as condições concretas dos trabalhadores e seus movimentos. Esses partidos atraem a pequena-burguesia e seu revolucionarismo que, como dizia Lênin, decorre da insatisfação da sua perspectiva individualista. Servem a ordem burguesa na mesma proporção em que vislumbram seu fim próximo.

Por fim, os desvios de direita (tão nocivos como os de esquerda), ficaram por conta do partido no governo federal e seus aliados históricos. Tentando, ao mesmo tempo, tornar-se representante do “clamor das ruas” e detrator dos ultra de direita e de esquerda (de braços dados no processo), o governo foi forçado a ir mais à direita na medida em que a oposição de direita angariava o apoio dos debutantes nas ruas. O que pode garantir a vitória de Dilma nas urnas neste ano são os votos dos mais empobrecidos pelo Brasil afora, no geral, alheios a toda a movimentação que ocorreu em 2013. Os setores médios urbanos e os que vivem em sua órbita tendem a ir mais à direita, com Marina Silva e, residualmente, com Aécio Neves, que já está fora do páreo.

Há diferença, sem dúvida, caso Dilma continue, ou Marina se torne, presidente. Mas minha preocupação maior, como militante de esquerda, é como explicar o momento que vivemos e quais seriam as possibilidades para uma retomada, de fato, de um ciclo no mínimo progressista para o médio prazo.

O momento que vivemos já possui elementos de resposta pelas linhas acima: estamos separados por desvios à direita e à esquerda, ambos nocivos a uma política de esquerda consequente. Arrisco dizer que vivemos um momento novo, uma crise nova, mas ainda ligada ao que começou a acontecer 25 atrás, com a queda do Muro de Berlim e o consequente refluxo dos movimentos de esquerda. Um tempo marcado por uma ofensiva ideológica brutal com a pregação do fim da história, pela corrida para mudar nomes e símbolos associados ao movimento comunista, pela mudança de lado, pelo caminho ao centro e pela opção pela conciliação de classe (que explica o desvio de direita), pela tentativa de reafirmação de princípios revolucionários de forma desesperada e historicamente impaciente. Nossa conjuntura de médio prazo, marcada por esses eventos, nos coloca a tarefa de repensar a tática, equivocada por todos os lados.

Não é tarefa de quem pensa a realidade arriscar previsões do futuro. Mas é nosso papel arriscar dizer que o caminho para uma retomada de um processo de ascensão dos movimentos, no mínimo, progressistas, passa necessariamente pela capacidade de estar junto dos movimentos que organizam, ainda que residualmente, os trabalhadores. Estar nos sindicatos pelegos para dialogar com os trabalhadores e apontar outras possibilidades, nos movimentos populares participando das lutas cotidianas, no parlamento burguês, em todas as instituições, atuando em todas as contradições da formação social brasileira. Sem dúvida isso é ainda bem geral, mas podemos indicar o caminho que pode nortear (e exigir) as necessárias mudanças no modo de atuação das chamadas esquerdas: isso somente deve e pode ser feito abandonando as pretensões hegemonistas, a tendência ao aparelhamento, a cooptação dos movimentos pelo Estado e, fundamentalmente, aprendendo a ter paciência histórica, sem messianismo, sem revolucionarismo. Precisa ser de acordo com as possibilidades concretas abertas em cada quadra e não através de um discurso ininteligível, porque descolado da realidade. É preciso, como dizia Engels, saber aprender com os trabalhadores. É necessário lembrar que aos revolucionários cabe tentar fazer a revolução, não emitir auto-atestado de pureza. É preciso compreender, de fato, que revolução não é resultado apenas de atos de vontade, muito menos de proselitismo religioso, de conversão de consciências, de conquista de “corações e mentes”. Não são necessárias essas expressões sentimentais.

Passa da hora, isso sim, de recolocar os pés no chão e recomeçar a caminhar.



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