sábado, 22 de outubro de 2016

“Samora compreendeu que para nós lutarmos contra o Apartheid, primeiro tínhamos que existir”


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CHISSANO10Em Março de 1963, Samora Machel deixa Maputo e junta-se aos militantes da Frelimo na Tanzânia. No mesmo ano, o presidente Chissano, também abandona os seus estudos e fixa-se na Tanzânia. Quando é que conheceu Samora Machel? Nessa altura ou muito antes?
Eu conheci o Presidente Samora Machel quando ainda era criança, por acaso, em Maputo, na camarata dos praticantes de enfermagem, no hospital Miguel Bombarda, hoje, Hospital Central. Eu costumava ir lá visitar uns amigos e conheci-o. Conheci também os seus colegas, como o Macuácua; Avelino Nhampule, que era de uma classe menos avançada em relação a dele; José Macamo, um herói nacional, que também era da minha terra. Portanto, eu ia visitar esses amigos. Então, conheci por acaso esse homem que gostava de assobiar e falar em voz alta. Como já o conhecia, encontro-me com ele na Mafalala e, nessa altura, eu já era um pouco ‘crescidinho’. Fiquei a saber que ele também morava na Mafalala, mas não era da minha idade, portanto, não convivíamos, não conversávamos. sabia que ele era enfermeiro, que gostava muito dos estudantes e eu era do Núcleo dos Estudantes Secundários. Numa ocasião, tivemos uma curta conversa com ele sobre esse aspecto. Eu tinha a ideia de que ele também era um estudante secundário, porque já tinha feito escola primária e estava na enfermagem. Mas, depois, ficou enfermeiro e daí não o vi mais, porque foi colocado fora de Maputo, certamente.
Na Tanzânia, foi um reencontro?
Quando o Presidente Samora chegou a Dar-es-Salaam, eu estava ainda em Paris. Ele chega nos meados do ano, vai para Argélia, e eu chego próximo da altura em que o grupo dele ia regressar da Argélia. Eu cheguei entre Setembro e Outubro e eles regressaram entre Março e Abril de 1964, quando eu tinha meio ano em Dar-es-Salaam. Na altura, eu era responsável pelo departamento de Defesa e Segurança, em substituição do incumbente, o falecido camarada Filipe Samuel Magaia, que era o secretário desse departamento, mas que estava ausente. Estava na China quando eles regressam. O grupo deles regressa da Argélia e eu é que os fui receber. e, então, comecei a ter um relacionamento com ele mais “taco a taco”.

Nesse reencontro, com que impressão ficou dele?
Bom, era uma pessoa que eu já conhecia, quer dizer, de todos aqueles que vieram da Argélia, é a cara que me foi mais familiar e ele era o chefe do grupo.
Era chefe do grupo porque naquela altura já revelava algumas características de liderança?
Quando o conheci na camarata, todos prestavam atenção nele. Mas recebi-o e ele não se mostrou como líder do grupo, porque era ao mesmo tempo humilde. Eu é que perguntei quem era o chefe do grupo, quando cheguei ao quartel, na Tanzânia. Na sua humildade, esperou que eu perguntasse quem era o chefe do grupo e ele apresentou-se. Naquela altura, estavam numa situação muito delicada, porque uma grande parte dos combatentes que tinham chegado da Argélia não queria seguir imediatamente ao centro de treinamento político-militar que se situava a centenas de quilómetros de Dar-es-Salaam, em khongwa. Eles queriam ficar para uma espécie de férias, antes de irem para o campo e, depois, seguir para o combate. Por isso, alguns tinham decidido fazer uma greve, não comer, e alguns alegariam que a comida não era boa. Quando o Presidente Samora se apresentou, eu sabia que havia essa situação, greve, mas não procurei conversar sobre comida ou não comida nem persuadi-los a comer. eu disse “camaradas - naquela altura ainda usávamos irmãos - vamos comer”. Dirigi-me e ele logo me seguiu. Seguiram-me outros, como o Matias Mboa, Raimundo Pachinuapa, Alberto Chipande, etc. Ele encabeçava esse grupo que me seguiu. Ele também sabia qual era a situação, mas não quis ficar para ver se os convidava e automaticamente quase toda a gente veio atrás.
O Presidente Chissano, quando chega à Tanzânia, é designado secretário particular do presidente Eduardo Mondlane e seu assistente nas funções de chefe do Departamento de Educação. E Samora? Depois de voltar dos treinos, que responsabilidades Eduardo Mondlane lhe atribuiu?
Bom, era preciso dizer como Samora saiu para Argélia. Ele saiu por escolha própria, porque Mondlane sempre perguntava a muitos de nós, sobretudo quando tínhamos uma certa educação, o que gostaríamos de fazer: ir estudar ou ir para a formação militar, porque era preciso aproveitar alguns cérebros para a própria direcção da luta, para se formarem melhor. Mondlane já tinha uma ideia de que a luta levaria tempo, que as pessoas iam formar-se e voltariam para a luta e, se calhasse o contrário e a luta fosse mais rápida, a vitória chegasse mais cedo, as pessoas voltariam preparadas para outras tarefas. Mas o Presidente Samora escolheu ir aos treinos militares, porque tinha saído de Moçambique para se juntar à luta de Libertação Nacional. No regresso, ele estava pronto para seguir para essa luta. Assim, como chefe do grupo, ele liderou-o para ir ao centro de preparação político-militar. Portanto, foi abrir o centro de preparação político-militar de khongwa. Essa foi a tarefa. Foi chefe do centro de preparação político-militar, até à altura em que faleceu Filipe Magaia, e ele passa a ser secretário do Departamento de Defesa.
Com a morte de Filipe Samuel Magaia, Samora assume a área de Defesa e o Presidente Chissano a área de segurança?
Não é bem assim, não é com a morte de Filipe Samuel Magaia. Ainda em vida Filipe Samuel Magaia, a direcção do partido tinha chegado à conclusão de que devia separar o Departamento de Segurança e Defesa em departamento de Segurança e Departamento de Defesa, razão pela qual tive que ir pela segunda vez à União Soviética, para ser treinado de uma maneira especial, para que pudesse compreender o que são as tarefas desse departamento de segurança que se criava, aliás, que muitos não compreenderam. Mas eu fui treinado precisamente porque já tinha sido nomeado chefe do Departamento de Segurança, com Filipe Samuel Magaia ainda em vida. Durante a minha ausência de seis meses, Jaime Sigaúque substituiu-me nesse departamento e, quando voltei, assumi-o. Portanto, não foi por causa da morte de Filipe, foi uma decisão da direcção.
Como era o relacionamento entre o Presidente Chissano e o presidente Samora, tendo em conta que ambos dirigiam áreas muito importantes para a conquista da independência nacional?
Essas duas áreas, Defesa e Segurança, eram afins. Não foi por acaso que estavam juntas antes. Mas eu, ao formar o grupo que devia ir comigo, sugeri que fosse comigo também o presidente Machel, porque sabia que, depois, haveríamos de necessariamente ter que trabalhar em conjunto, como se fosse um departamento, mas cada um avançando a área que lhe cabe. Mas, como o curso ia demorar seis meses e o presidente Samora Machel tinha que desempenhar um papel importante para o avanço da luta, tinha que ficar e, quando voltámos, continuámos a trabalhar juntos. Já tínhamos estado juntos no campo do Khongwa e partilhávamos o mesmo quarto. Havia duas camas e dormíamos juntos nesse quarto, não pelo facto de eu ser chefe do departamento de segurança, porque ainda não era quando partilhámos o quarto, mas por ser membro do Comité Central. Então, ele alojava-me no seu quarto e, também, por causa daquele conhecimento, daquele contacto que nós já tínhamos tido e que lhe infundia uma espécie de respeito por mim. Portanto, a relação era muito boa.
O presidente Mondlane morre em 1969 e o Comité Central elege Samora Machel para o suceder. Porquê a preferência por Samora para assumir a liderança do movimento após a morte de Mondlane?
Foi por causa da definição da tarefa principal que o movimento tinha que realizar, que era a luta armada. Quem conduzia a luta armada era o Presidente Samora Machel. Ele não teve a mesma opinião, por isso, não foi fácil convencê-lo a presidente da Frelimo. Pensava que se sentiria mais livre para dirigir a luta armada se não se ocupasse de outros assuntos, como as áreas diplomáticas e sociais. Ele estaria a orientar somente a parte militar, mas ele finalmente convenceu-se, porque ele próprio concordava que a nossa luta não tinha divisões. A política da Frelimo é de que todos éramos políticos-militares, daí convencemos o presidente Samora de que a luta não tem compartimentos, é uma luta político-militar e diplomática.
Estaria a dizer que o Presidente Samora tinha mais cunho militar que político? 
Ele foi o protótipo de um político-militar, até posso dizer e diplomata, já nessa altura. Ele assumiu e, por causa da perda de Mondlane, que criou em nós todos um espírito de querermos valorizar o trabalho que tinha feito, impulsionando a luta, ele empenhou-se com grande dedicação e mestria na direcção da Frelimo não só no combate militar, mas também no combate diplomático.
Houve mudanças no modelo de gestão política do movimento com a sua liderança?
Mondlane dirigiu bem, tinha pouco tempo para viver com os combatentes, por causa das várias tarefas que tinha, e era esse o medo do Presidente Samora, de perder esse contacto com os combatentes e com as massas populares. Portanto, quando Samora assume a direcção da Frelimo, já era uma pessoa que tinha contacto e um conhecimento vasto das pessoas com que trabalhava. Conhecia os comandantes todos pelo nome, mas Mondlane não. Portanto, ele tinha maior comunicabilidade, tinha experiência do terreno que Mondlane não tinha, essa era a diferença que eu posso encontrar.
Como foi percebida a liderança do Presidente Samora no movimento?
Ele tinha um carácter que persuadia qualquer um pela sua prática, pela sua postura. Ele era um educador pelo exemplo e toda a gente achava que ele sempre tinha razão. Mas ele obrigava as pessoas a raciocinar, para poderem até divergir com o que ele dissesse, apesar de que tinham desenvolvido um slogan de que “a palavra de um dirigente é uma ordem”. mas ele tinha habituado as pessoas a reflectir e a debater as questões e a não tomar só a primeira palavra. Fazia perguntas para as pessoas responderem reflectindo e até fazia a pergunta de diferentes maneiras, porque a pessoa não pode dizer três vezes sim senhor. Devia dizer por que sim, por que não. Então, nós debatíamos assim com ele as questões.
Antes de assumir a liderança, Samora criou o destacamento feminino. Qual era a sua visão sobre a participação da mulher na luta de libertação nacional?
O Presidente Samora tinha respeito pelas mulheres. Ouviu o que elas reclamavam, queriam fazer parte da luta. Teve que reflectir, tivemos todos que reflectir, o presidente Mondlane também reflectiu. A questão eram os maus exemplos vindos da experiência na Tanzânia. Na Tanzânia, tinham tido maus resultados no princípio, porque o comportamento dos homens era mau, no sentido de que não respeitavam as mulheres. para eles, as mulheres eram objecto de adorno, de satisfação dos seus prazeres fisiológicos, etc. Mas aqui houve uma coragem dos presidentes Samora e Mondlane que nos levou todos a assumir a mesma coragem de fazermos a nossa experiência e deu certo.
Era comum ouvir o Presidente Samora dizer que a libertação da mulher era uma necessidade da revolução e que não haviam criado o Destacamento Feminino para servir amantes aos combatentes, mesmo para passar essa imagem positiva do papel da mulher no combate.
Isso porque os primeiros grupos do Destacamento feminino, quando foram levados para o interior do país, a educação sobre como conviver não estava bem generalizada, a consciência não estava bem formada, mas era uma questão de ser ultrapassada pela educação. Alguns usavam o termo mantas, diziam que receberam mantas para nos aquecer, mas isso foi reprimido muito severamente e passou-se para uma relação normal de homens com mulheres. os que chegaram a namorar, foi de maneira natural.
Em Setembro de 1974, logo após a assinatura dos acordos de Lusaka, o Presidente Chissano é nomeado primeiro-ministro do Governo de Transição. Qual era a expectativa de Samora ao atribuir-lhe esta pasta?
Samora procurou uma pessoa que ele sabia que podia pensar muito próximo da sua maneira de pensar. Uma pessoa que havia de lidar com uma situação nova e que podia trazer a sua própria criatividade, uma pessoa com que podia relacionar-se, confiar e tomar decisões sem grandes consultas, porque ele ia ficar no exterior do país. E essa pessoa calhou ser eu. Havia varias opções, mas ele conhecia-me muito bem e sentia-se mais seguro que fosse eu. Além disso, havia a questão de uma pessoa que pudesse ser rapidamente bem acolhida no seio do povo.
No primeiro mês da independência, o Presidente Samora anunciou a nacionalização da Saúde, Educação, Justiça e, passado um ano, também a nacionalização das casas de rendimento. Como é que avalia estas medidas do Presidente Samora?
Eram medidas que eram pertinentes para a altura. A mais pertinente foi a nacionalização da terra.
Foram tão pertinentes e tão boas quanto más?
Não, eu gosto de falar das questões no momento em acontecem. Essas medidas eram correctas e não tinham nada de negativo. A nacionalização da terra era correctíssima, a nacionalização da educação era para a correcção de anomalias por que nós todos passamos, em que havia educação inferior e superior, que dividia a população. era preciso uniformizar isso antes de voltar a liberalizar, para que houvesse escolas privadas. Portanto, era preciso uniformizar o sistema de educação, criar um sistema que envolvesse todos.
O Presidente Samora também lançou um plano ambicioso que visava desenvolver o país em dez anos, o Plano Prospectivo Indicativo, igualmente os programas de socialização dos campos, que vieram a fracassar. O problema estava nas ideias que não eram muito boas ou outros factores determinaram o fracasso?
Devo dize-lhe que o PPI está a ser implementado mesmo hoje. O PPI foi um estudo muito adequado que até hoje estamos a implementar. É preciso ver bem que se tivesse havido meios na altura, que poderiam ter vindo dos países socialistas, o PPI teria sido cabalmente implementado. Mas vários factores vieram fazer com que não fosse implementado imediatamente, um dos factores foi a intensificação da guerra, porque o PPI foi adoptado em 1977 e a guerra de desestabilização já tinha iniciado em 1976.
Qual era a visão de desenvolvimento do Presidente Samora? Tinha uma política agrária?
Sim, porque isso já foi do Governo de Transição. quando entrámos para o governo de transição, já tínhamos essa directiva adoptada de que era preciso basear-se no campo para o desenvolvimento. Como primeiro-ministro, visitei várias províncias e distritos com essa perspectiva e, nos primeiros anos da independência, foi implementada essa tarefa de desenvolver a agricultura. Portanto, o presidente Samora sabia que o nosso país era eminentemente camponês, não tinha grande industrialização.
Como descreve Samora como diplomata na procura de um bem maior para o povo moçambicano?
Todo o sentimento e pensamento do Presidente Samora Machel guiou-se pelos interesses do povo moçambicano. Fez a luta de libertação nacional para o bem do povo moçambicano e não era uma luta contra qualquer povo, era contra o colonialismo e a opressão. Portanto, ele respeitava o povo português, respeitava o povo sul-africano, os rodesianos brancos, os portugueses em Portugal, os americanos, etc. Portanto, isto é um sentimento que ele tinha por causa da vivência que teve, já em Maputo, com pessoas de várias raças e que se juntaram em ideais de liberdade, respeito pelo povo, direitos humanos, etc. Para o Presidente Samora, uma vez conquistada a independência, o que era preciso fazer era aquilo que vínhamos fazendo, procurar amigos para apoiar a luta de libertação nacional, procurar amigos para o desenvolvimento do homem e da mulher moçambicana e tentar fazer o máximo para apoiar a libertação dos outros povos. O que opunha o presidente Samora aos americanos era o seu apoio à opressão dos povos de Moçambique, Angola, Cabo Verde, portanto, das colónias portuguesas e das outras colónias ou dos outros povos que viviam com regimes opressores, como da África do Sul, Rodésia e Namíbia. De maneira que a política da Frelimo foi de criar amigos e diminuir inimigos. É a política da nossa diplomacia, que eu segui quando era ministro dos Negócios Estrangeiros e também depois.
Mas quando o Presidente Samora decide assinar a acordo de Incomáti, que foi bastante controverso, não beliscou um pouco a relação com os países amigos de Moçambique, com os líderes de movimentos libertadores, quer da África do Sul como na Tanzânia? Como foi percebido, quer ao nível da Frelimo quer ao nível dos líderes dos movimentos libertadores?
Ao nível da Frelimo, a compreensão foi quase total. Se alguém teve escondido algum tipo de ressentimento é com ele, porque a gente não se apercebeu disso. Mas a estratégia do Presidente Samora era compreendida, por isso, faz parte do valor do Presidente Samora como estratega. não era só estratega militar, era estratega diplomático também. Ele sabia analisar as situações para tomar uma decisão que o levasse à vitória. E à vitória não se chega de qualquer maneira. Ora, ele sabia medir a correlação de forcas entre nós e o inimigo, saber qual é a melhor táctica a utilizar e, neste caso, compreendeu que para nós lutarmos contra o Apartheid, primeiro, tínhamos que existir, tínhamos que sobreviver e nos reforçarmos, portanto era preciso ir abraçar o inimigo e, depois, passar à fase seguinte. Felizmente, depois desse aperto de mão com Peter Botha, vimos como a evolução das coisas se acelerou, na própria África do Sul, a compreensão que surgiu no meio dos brancos sul-africanos...
E ao nível do ANC, qual foi a reacção?
Houve elementos que não entendiam muito bem, pensavam que havia um abandono da luta, mas não era isso. Pensavam que era uma atitude semelhante à de Malawi, mas não era isso. Felizmente, a liderança do ANC compreendeu perfeitamente qual era a estratégia, de tal ponto que, numa conversa entre o Presidente Samora com o líder do ANC, Oliver Thambo, o Presidente Samora desdobrava-se em explicações a tentar convencer, mas o presidente do ANC disse imediatamente: “Samora, quem te disse que nós não entendemos, não compreendemos? Nós compreendemos perfeitamente, só temos que discutir como vamos agir daqui em diante, mas não é preciso explicações, porque está claro. Ou Moçambique existe e reforça-se para poder apoiar-nos ou então todos vamos sucumbir”. Oliver Tambo parecia estar do nosso lado e entendemos que ele haveria de explicar ao seu movimento. Foi um momento muito bom para nós, mas houve críticos, mesmo o presidente Nyerere não tinha compreendido, dizia que não e pressentia que os sul-africanos não iam cumprir o acordo como estava. Mas está claro que, com o acordo, nós ganhámos algum tempo para nos reorganizarmos e para o próprio ANC refinar as suas tácticas, a forma de acção na luta contra o Apartheid. O presidente Mandela, quando saiu da prisão, fez questão de visitar, como segundo ou terceiro país, Moçambique porque também ele, mesmo estando na prisão, tinha compreendido profundamente essa estratégia.
Qual era a visão dele sobre a integração dos países da SADCC? O que podia ser feito para unir estes povos?
A SADCC é uma face contrária da moeda dos países da linha da frente. Os países da linha da frente que estavam unidos em apoio à luta política, diplomática e militar contra os regimes opressores. Quando fomos ganhando a vitória, começaram os líderes a pensar na forma como cooperar na área económica.  Nos anos 1965, quando a Zâmbia se torna independente, os líderes estavam preocupados em saber como sustentar essa independência, já que a Zâmbia era um país encravado, que dependia dos portos da África do Sul e de Moçambique, onde estava o colonialismo português. Portanto, aqui havia uma estratégia militar, mas também económica. Mas quando o Zimbabwe estava para ficar independente, o acento tónico foi posto nesta questão da cooperação económica, vista na perspectiva de criar condições para mais independência dos países da região em relação à economia sul-africana. Portanto, tínhamos que cooperar, para podermos tirar mais proveito das nossas potencialidades entre nós, para sermos menos dependentes da África do sul.
O IV e o V Congresso foram decisivos para o abandono da orientação política marxista-leninista definida no terceiro congresso. Como é que o Presidente Samora lidou com o fracasso do socialismo?
Moçambique, tanto quanto me lembro, foi muito rápido a detectar que no seio dos países socialistas haveria mudanças. Detectámos as fraquezas económicas dos países socialistas. Sabíamos que os países socialistas não poderiam apoiar-nos da mesma maneira que nos apoiaram nos primeiros anos da independência. Já sabíamos que não tinham o poder económico para apoiar todos os países que vinham a apoiar e nós declarámos que estamos a criar um partido marxista-leninista, porque havia valores que nós encontrávamos no socialismo científico. O Presidente Mondlane também tinha feito referência a essa tendência da Frelimo, que era mesmo empurrada pelo próprio imperialismo para aderir a esta linha, com o apoio dos países socialistas. mas os países socialistas começam a mostrar debilidades, não porque a política estava errada.
Como foi para ele aceitar e assumir que este modelo político podia não ser a opção correcta?
Aí é que está o valor estratégico do presidente Samora Machel, ele acompanha a evolução do mundo e, portanto, foi um dos primeiros a ver que era preciso fazer as coisas de outra maneira, porque aquele modelo só havia de servir se houvesse outros países. Aliás, o próprio Marx já tinha dito que o socialismo científico só triunfaria se tivesse uma base alargada, se os outros países também o fossem, se agarrassem as mãos e fossem juntos, porque o imperialismo não estava a dormir, estava a sabotar o que aqueles países estavam a fazer. A União Soviética não é um fruto que caiu porque estava podre, não. foi destruída, porque havia um trabalho bem direccionado para atacar e atacavam, portanto, um país e um modelo de desenvolvimento que ainda estava em desenvolvimento, daí as fraquezas. Alguma parte da tecnologia, os países ocidentais desenvolviam em colaboração com os países socialistas, mas, depois, sabotavam o que os socialistas iriam fazer. portanto, o Presidente Samora já sabia que era preciso mudar, não foi apanhado assim de surpresa. E era a própria dialética em que ele acreditava muito e, portanto, seguiu.
Numa entrevista à STV, em 2010, Graça Machel disse que não gostava da ideia de se isolar o presidente e fazer dele o único responsável dos problemas do país, não gostava da ideia de se concentrar todas as responsabilidades numa única pessoa, e afirmava que isso tinha acontecido com o Presidente Samora. Lembra-se desse momento?
Bom, não sei se devo generalizar, mas sei que há pessoas que pensavam que o Presidente Samora não podia ser abordado de uma boa maneira e ser convencido de qualquer coisa. Eu não tinha essa impressão. Mas compreendia que nem todos podemos alcançar a compreensão dos problemas ao mesmo tempo. Portanto, é preciso esperar o momento em que as visões se juntam e, então, criar a mesma visão. e eu tive questões muito concretas que conversei, não eram posições fixas, nem assuntos tão importantes, mas que passados alguns anos vieram a ser aplicadas aquelas ideias que tinham sido rejeitadas... Há camaradas que podem ter pensado que o Presidente Samora não se deixa abordar porque não dá espaço. Dava muito espaço e, como eu já disse, até provocava. quando alguém assumia que o chefe é que sabe, ele provocava a discussão para que chegassem a uma visão comum.
Há quem diga que o Presidente Samora já pressentia a morte. Em algum momento lhe confidenciou alguma coisa?
Não sei se era por pressentir a morte, mas houve atitudes que, pensando em retrospectiva, podíamos dizer sim, talvez ele sentia, quando era muito rigoroso na organização das coisas, forças armadas, porque ele dizia “bom, quando nós formos embora, isto tem que continuar”. Quando alguém fala assim quando conversamos, não tomamos conta de que a pessoa pode desaparecer de um momento para o outro. Uma vez ele disse “nós já lutámos, libertámos o país, qualquer dia temos que ir descansar”.
O presidente Samora já sabia quem o devia suceder e partilhou essa ideia com alguns camaradas. Fê-lo também com o presidente Chissano?
Não.
Mas soube que já o havia indicado para o suceder em caso de morte?
Não.
Com a morte trágica do Presidente Samora, em 1986, Joaquim Chissano assume a liderança do país como Presidente da República de Moçambique e, no primeiro aniversário da sua morte, não houve nenhuma comemoração oficial, era como se fosse um ano de “dessamorização”. havia alguma razão para isso?
No primeiro ano... penso que pode ter sido uma percepção, porque eu, como Presidente da República, até tinha receio de criar algumas mudanças, com medo de ser mal entendido, mas eu preferi seguir os passos que o Presidente Samora já tinha iniciado e não senti nenhuma “dessamorização”, porque eu conhecia a análise estratégica do Presidente Samora Machel.
E por que razão, a 19 de Outubro de 1987, não houve uma cerimónia oficial?
Não sei se não houve nenhuma cerimónia oficial, a 19 de outubro de 1987, não estou recordado, mas pode ser porque nós ainda não tínhamos instituído essa forma de agir, fracamente não estou recordado.
Graça Machel fala de valores e princípios de Samora que foram descontinuados pelas gerações posteriores. recorda-se de princípios e valores de Samora que perdemos e que hoje seriam extremamente necessários e úteis para o país?
Eu não estou a ver nenhum valor que perdemos, talvez o que perdemos é o próprio Samora Machel, a maneira dele de fazer, com o carisma dele. talvez fosse isso que fazia com que o que fazíamos no nosso tempo não fosse notado como continuidade daquilo que ele fazia.
Sente que hoje o país preserva devidamente o legado de Samora Machel?
Devo dizer que há maneiras de fazer que eram típicas do Presidente Samora Machel e, num tempo determinado, Samora Machel era um estratega político também. Se estivesse vivo, creio que também teria seguido uma certa evolução, como o fez naquilo que acabámos de discutir em outras circunstâncias, de maneira que essa intensidade, esse tom, talvez é o que não se verifica. Mas nós outros tentámos fazer exactamente na mesma senda do Presidente Samora Machel, talvez de outras maneiras, procurando alcançar o mesmo objectivo. Digamos, na luta contra a corrupção, nós chegamos a um ponto em que não era somente falar, exaltar, correr de um lado para o outro para resolver o problema, era necessário criar instituições e preparar as forças que pudessem levar a cabo esta luta. A luta contra a corrupção é uma luta, por exemplo, que o Presidente Samora vinha levando, mesmo durante a luta de libertação nacional, mas não havia instituições, antes de eu entrar para o Governo. não havia nenhuma Procuradoria-Geral da República, havia procuradoria, uma coisa pequena, não quero dizer que Samora não iria instituir, não iria criar, mas as condições não estavam ainda lá. Eu entro como Presidente da República e uma das primeiras preocupações foi ter este instrumento e criámos...
Se o Presidente Samora ressuscitasse hoje, o que aplaudiria e o que repudiaria?
O que haveria de repudiar, talvez nem teria de repudiar, porque não haveria de existir, se tivesse continuado vivo, talvez ele teria conseguido disciplinar a nossa sociedade para fazermos essas mudanças com maior disciplina, com maior regra. Mas isso são coisas de que não gosto muito, dizer coisas que alguém que morreu haveria de fazer hoje, porque esse alguém haveria de viver hoje, haveria de raciocinar como um homem de hoje e não daqueles tempos que conhecemos. se Mondlane esteve vivo hoje, não sei como ele seria.
Qual foi o maior contributo do Presidente Samora para a sociedade moçambicana?
Primeiro, o seu grande contributo de que já falamos, na direcção da luta de libertação nacional em todas as suas vertentes. Segundo, a contribuição na luta contra os regimes minoritários na África Austral, que foi benéfica para Moçambique e para esses países também. Terceiro, vou falar mesmo anteriormente, a sua contribuição na definição do inimigo foi importante, é uma coisa que ele começou na Argélia, contra quem lutamos; essas discussões fortes, a questão da unidade nacional foi uma continuidade daquilo que Presidente Eduardo Mondlane já tinha iniciado, projecto ao qual nós todos aderimos, participámos, e o Presidente Samora põe um acento tónico sempre na luta pela unidade nacional, contra o tribalismo, o regionalismo e contra o racismo, portanto, esse foi um grande contributo e há ainda muita coisa que se pode dizer.
E a nível pessoal, qual foi o grande contributo de Samora Machel na sua vida? qual é a memória viva que tem de Samora até hoje a qual diz isto foi o presente de Samora para mim?
É difícil, eu vivi com o Presidente Samora por muito tempo quase que colado. Tudo o que nós falámos eu encontro-me lá dentro. Devo dizer-lhe uma coisa. Há vezes em que eu estou a dormir e vem me assim: “vou perguntar ao Presidente Samora”, mas estou a dormir. Há uma preocupação qualquer, digo que vou ver isto com o Presidente Samora. Agora já é menos frequente, mas nos tempos em que eu era Presidente vinham-me sempre, porque em todos os aspectos da vida eu estive sempre com o presidente Samora.
O PAÍS – 19.10.2016

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