sábado, 18 de junho de 2016

“Please don’t go!”


Paris e Berlim não se entendem sobre como responder a um “Brexit”. A grande maioria dos Estados-membros da União já tomou consciência do revés irreparável que essa decisão pode trazer à Europa. Entre a angústia e o pânico, a Europa assiste impotente a uma decisão sobre o seu destino.
AFP PHOTO / LOUISA GOULIAMAKI
De um momento para o outro, um pesado silêncio abateu-se sobre o Reino Unido, exactamente no momento em que a campanha para o referendo de dia 23 atingia, porventura, a sua tensão máxima. As sondagens teimavam em dar uma pequena vitória para o “Brexit”. Os mercados mundiais entravam em agitação, antecipando uma saída britânica. A Europa descobria a sua total impotência perante um acontecimento do qual poderá sofrer duras consequências. Em Berlim, cada vez mais preocupada, Angela Merkel abstinha-se de qualquer comentário que pudesse ser interpretado pelos britânicos como uma ameaça velada. Ontem, mais uma vez, usou da prudência para falar do brutal assassinato de Jo Cox, a deputada do Labour que lutava incansavelmente para que o seu país se mantivesse na União Europeia, para apelar a um rápido esclarecimento sobre as circunstâncias da sua morte. Não resistiu a lembrar que o Reino Unido passaria a ser um “país terceiro” na sua relação com a Europa. “Não consigo acreditar que a saída seja uma vantagem”.
Mesmo assim, é fácil de imaginar a chanceler calcorreando de um lado para o outro o seu gabinete da chancelaria, a pensar o que fazer, caso o cenário negativo venha a realizar-se. A chanceler não tem quaisquer ilusões sobre o que significaria para a Alemanha e para a Europa ficar sem o Reino Unido. Aliás, em poucos países da União se viu tamanha unanimidade quanto à eventual saída dos britânicos. A Spiegel deu-se ao trabalho de publicar um número especial, escrito metade em inglês e outra metade em alemão, com a bandeira britânica em fundo e apenas uma frase: “Please don’t go”. Para a Alemanha não se trata apenas daquilo que é óbvio para toda a gente. Sem a segunda maior economia europeia (a quinta mundial), com lugar permanente no Conselho de Segurança, uma capacidade nuclear autónoma, forças armadas que correspondem a 40 por cento da capacidade militar europeia, é fácil de perceber até que ponto a presença do Reino Unido é fundamental. Mas não é só isso. Merkel continua a ver a integração europeia como uma opção estratégica fundamental do seu país. Não se resume tudo à economia. Num artigo publicado no Monde, Stefan Kornelius, do Suddeutsche Zeitung, explica porquê. “Merkel tem razões para se preocupar, porque a saída britânica da União causaria sem dúvida à Alemanha mais estragos do que a qualquer outro país”. “Poria pura e simplesmente tudo em causa”. Enumera três razões fundamentais. “As forças centrífugas que se movimentam na União teriam uma aceleração considerável, levando outros países a pensar na ideia de abandonar a Europa ou pedir condições especiais”. A Europa daria de si própria ao mundo uma imagem de fraqueza e de declínio, “no caminho da autodestruição”. Finalmente, recorda uma outra dimensão que tem andado um pouco arredada: “Para um país que associa à União nada mais, nada menos do que a sua própria existência, a sua razão de Estado e a sua concepção da História, a saída seria um golpe fatal”.
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Clement Fuest, presidente de um dos institutos económicos mais prestigiados da Alemanha, resume o dilema: “Só eles é que votam, mas o impacte político e económico do seu voto sentir-se-á em toda a Europa, se não mesmo em todo o mundo.” Há outras razões de natureza mais pragmática. Merkel não querer ficar sozinha diante da França no Conselho Europeu. A presença britânica permite-lhe gerir a tensão permanente entre a visão anglo-saxónica da abertura e da liberalização dos mercados e o instinto proteccionista da França, incluindo as parcerias de comércio livre já negociadas ou em negociação, desde o TTIP ao Canadá, passando pela Índia e o Japão. Com uma relação em crescente desequilíbrio com uma França enfraquecida, a chanceler também teme, sem o Reino Unido, os seus parceiros europeus sintam ainda mais o poder da Alemanha.

França: risco na Defesa

Para a França, com uma cultura tradicionalmente antiamericana (que já está a passar de moda, mas pode sempre voltar), que se alastra à pérfida Albion, a questão não é menos importante, mas surge num momento em que François Hollande quer tudo menos incomodar os franceses. Está refém da sua impopularidade mas não desiste de lutar por um segundo mandato. As suas declarações sobre o risco de um “Brexit” são muito menos veementes. Há ainda uma parte da esquerda francesa que continua a pensar o mundo sem sair das fronteiras da França e que ainda teima em ver vantagem na saída da pátria do liberalismo feroz e do eurocepticismo. A realidade é outra. De Jacques Chirac a François Hollande, passando por Nicolas Sarkozy, Paris tem procurado sempre uma aproximação ao Reino Unido assente na cooperação militar, muito facilitada a partir do momento em que o anterior Presidente decidiu o regresso da França à estrutura militar da NATO, de onde Charles De Gaulle a tinha retirado em 1966. Ainda com Sarkozy mas já com David Cameron, os dois países assinaram em 2012 um Tratado de Defesa englobando uma forte cooperação. Está hoje um pouco esquecido mas existe. Mesmo com as particularidades francesas, a saída do Reino Unido contribuirá para o seu enfraquecimento precisamente do domínio onde é mais forte. “Os dois países que podem tomar a iniciativa, mobilizando outros parceiros, são a França e a Alemanha”, diz Dominique David do IFRI (Instituto Francês de Relações Internacionais). Para concluir: “A França está enfraquecida pelos seus problemas económicos, a Alemanha tem um poder com o qual ainda não sabe lidar”.

O eixo franco-alemão

Mesmo assim, é do eixo franco-alemão que ainda se espera uma iniciativa, caso o resultado do referendo seja o pior. Os dois líderes andam às voltas com o que poderá ser essa iniciativa. Os resultados não são os melhores, pondo em evidência o que os separa. No Monde, Arnaud Leparmentier resumia da melhor forma possível essa dificuldade. “No dia seguinte a um “Brexit”, Paris e Berlim vão propor um relançamento europeu de tudo… menos do euro”. Os dois vão querer mostrar que a Europa não ficará paralisada. Como, é a pergunta que ainda não tem resposta. Em Bruxelas fala-se, à falta de melhor, de uma iniciativa comum em matéria de segurança e defesa, à qual a opinião pública europeia é particularmente favorável, pelo menos em teoria. A chanceler, depois dos atentados de Novembro em Paris, chegou a afirmar recentemente a sua disponibilidade para um “exército europeu”, uma velha ideia que já provou não ter pés para andar. Fala-se de um entendimento sobre a criação de um Quartel-General autónomo da NATO em Bruxelas, outra velha ideia francesa que a própria França já tinha, aparentemente, deixado cair.
O problema é que a realidade não poderia ser mais adversa à credibilidade desta iniciativa. Em primeiro lugar, a saída do Reino Unido tiraria à União uma fatia enorme da sua capacidade militar (incluindo a vontade política de a utilizar, que compartilha com a França. Mas talvez o mais penoso seja o facto de esta iniciativa poder surgir no preciso momento em que a NATO está a reforçar a sua capacidade dissuasora, para mostrar aos países que fazem fronteira com a Rússia que está em condições de os proteger. Ainda ontem, os ministros da Defesa da Aliança, acordaram na necessidade de reforçar a defesa colectiva e a dissuasão. “A NATO vai colocar em regime de rotação quatro batalhões multinacionais na Estónia, Letónia, Lituânia e Polónia”, informou o secretário-geral da organização depois do encontro. Esta decisão, acrescentou, “envia uma mensagem clara de que, no caso de um aliado ser atacado, a Aliança responderá como uma só”. Será este o tema central da cimeira da NATO que se realiza em Varsóvia no próximo mês de Julho.
Ontem, sinal dos tempos, a Suécia e a Finlândia, que se mantêm neutrais, anunciaram a sua intenção de participar no jantar dos líderes. O nacionalismo agressivo que Putin passou a praticar, reclamando o domínio sobre o seu “estrangeiro próximo” e ignorando a lei internacional, alterou completamente o ambiente de segurança na Europa. Não é um Quartel-General em Bruxelas que pode dar aos países de Leste directamente visados por Moscovo a garantia de segurança que reclamam.

Reflexos inevitáveis

A saída do Reino Unido, retirando ao eixo franco-alemão o seu “terceiro pilar” terá reflexos inevitáveis nos países europeus de pequena e média dimensão. E ainda mais naqueles que conservam uma forte componente atlântica na sua inserção europeia. Portugal e a Holanda fazem parte deste grupo, mas são também membros a união monetária. O caso de que mais se fala em Bruxelas é a Dinamarca, que já realizou 8 referendos desde o Tratado de Maastricht, que conseguiu um opt-out em matéria de segurança e defesa e que sempre privilegiou a sua relação com a NATO e com o Reino Unido. Christine Nissen escreve no European Council on Foreign Relation que será praticamente inevitável que Copenhaga venha a convocar um referendo sobre o lugar da Dinamarca na Europa. “A sua política de segurança e defesa é conduzida através da NATO e do Reino Unido”, diz Nissen. A ausência dos britânicos teria ainda outra consequência política que Copenhaga vê com maus olhos e que é uma preocupação comum à maioria dos países que estão fora do euro. A ausência de um peso pesado no grupo reduziria substancialmente a sua capacidade de influenciar as decisões dos países da moeda única, eventualmente lesivas dos seus interesses.

Alento aos populismos

Mas talvez a questão mais dramática para uma Europa mergulhada em múltiplas crises acabe por ser o alento que uma saída britânica daria aos movimentos nacionalistas e populistas que ganham cada vez mais terreno na paisagem política europeia. Marine Le Pen teria razões se sobra para abrir uma garrafa de champanhe, fazendo companhia a Putin ou a Donald Trump, dois entusiastas do “Brexit”. Mesmo que o abandono britânico não destrua a Europa, os seus efeitos sobre os movimentos populistas encarregar-se-ão de ajudar a acabar com ela. Que rumo seguiria a União, é a questão à qual ninguém ousa responder. Muitas Europas? Um “núcleo duro” em redor da Alemanha e da França, mais integrado e mais homogéneo (é caso para perguntar onde seria aí o nosso lugar), como alguns sectores políticos alemães admitem? Uma Europa à la carte? A várias velocidades? Com uma agravante que o debate sobre o Reino Unido revelou, trazendo à luz do dia realidades que andavam demasiado escondidas. Timothy Garton Ash punha o dedo na ferida. Hoje, escreve o historiador de Oxford, todos os países são “britânicos” no que diz respeito ao seu apoio à União Europeia. As sondagens mais recentes mostram que uma visão favorável à Europa está em queda livre em toda a parte, incluindo em alguns países fundadores ou tradicionalmente europeístas. É o caso da França ou da Holanda, de Espanha ou da Itália. Nesses países o sentimento favorável à União não é superior ao britânico. Os europeus não estão preparados para grandes aventuras europeias. O mundo olha estarrecido para a capacidade de autodestruição de um conjunto de países que uniu o seu destino para preservar a paz e a prosperidade e que teve um enorme sucesso. Pode ser que a morte de Jo Cox não tenha sido totalmente em vão.

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