A crise económica, que se começou a revelar
brutalmente com a explosão (crise de dívida) e
implosão (retirada do investimento, desaceleração
do crescimento económico e aumento do
desemprego) da bolha económica (crescimento
económico com base especulativa), combinada
com a “descoberta” da dívida pública ilegal,
contraída ou avalizada pelo governo moçambicano,
entre 2013 e 2014, despoletou um amplo debate
público em contraste com o silêncio que, até então,
dominava o governo, o parlamento, as
organizações internacionais e a maior parte dos
analistas nacionais. A crença que a negação dos
factos e o “assassinato do carácter” dos “críticos”
era a “solução” para os problemas foi substituída
por uma azáfama de desculpas, justificações,
acusações, incredulidade, vergonha, desânimo,
medidas punitivas por parte dos doadores, e
tentativas de reafirmar a validade das opções
económicas que conduziram à situação actual.
Com esta série de seis IDeIAS sobre a dívida
pública, que este inicia, vamos tentar esclarecer
(tanto quanto os dados disponíveis o permitam) e
situar a problemática da dívida pública no contexto
mais geral da crítica da economia política de
Moçambique. Este IDeIAS é, simultaneamente,
uma introdução e uma conclusão a esta análise,
contextualizando o que será discutido em mais
detalhe nos IDeIAS que se seguem e discutindo
questões imediatas que a crise actual levanta.
Estrutura e dinâmica da dívida pública
conhecida
Segundo dados do Governo de Moçambique, o
stock da dívida pública total, tanto quanto já foi
descoberto e divulgado, é de cerca de US$ 12 mil
milhões, ou, aproximadamente 80% do Produto
Interno Bruto (PIB) do País. Deste montante, cerca
de US$ 2 mil milhões são de dívida pública
doméstica. Dos restantes US$ 10 mil milhões,
dívida pública externa, cerca de metade é dívida
comercial, sendo a outra metade dívida oficial a
governos ou instituições multilaterais (dívida
concessional, com taxas de juro mais baixas e
prazos de reembolso mais amplos). Entre 2006 e
2015, o stock de dívida quadruplicou, expandindo a
uma taxa média anual de 15%, duas vezes maior
que a do crescimento do PIB. Na segunda metade
dessa década, a dívida pública cresceu mais
depressa do que na primeira, devido a vários
factores fundamentais: (i) a voracidade das elites
económicas nacionais por capital, de que as
dívidas ilegais (explicadas a seguir) o investimento
imobiliário são parte; (ii) a aceleração do
investimento na redução de custos e riscos para o
grande capital do complexo mineral-energético, em
especial nas infraestruturas gigantes e
especializadas, segurança e serviços vários e
avalização de empréstimos privados; (iii) o
afunilamento da economia, cada vez mais centrada
na produção de produtos primários e semiprimários
para exportação e dependente de
importações, o que a torna mais vulnerável à
volatilidade dos mercados financeiros e de
mercadorias internacionais e à inflação importada,
e mais incapaz de articular processos produtivos
domésticos e de gerar emprego decente; e (iv) as
dinâmicas da armadilha e vício da dívida, em que a
dívida se auto-reproduz por causa da sua
insustentabilidade, que força mais endividamento
para pagar e esconder a dívida e para manter as
expectativas que mobilizem mais capital.
A chamada “dívida ilegal”, que é parte
dos valores do stock acima mencionados, inclui a
avalização, pelo Estado, da dívida contraída pelas
empresas EMATUM (US$ 850 milhões), Proindicus
(US$ 622 milhões) e Mozambique Asset
Management, MAM (US$ 535 milhões), e pouco
mais de US$ 221 milhões para ordem e segurança,
totalizando cerca de US$ 2,2 mil milhões. Este
montante é equivalente a 15% do PIB, 19% do
stock de dívida pública total e cerca de 45% do
stock de dívida pública externa comercial. Esta
dívida é ilegal por, nos quatro casos, não ter sido
submetida à Assembleia da República para
avaliação, aprovação e monitoria, conforme manda
o artigo 179 da Constituição da República, e, nos
últimos três casos, por os empréstimos e o seu
serviço não estarem registados no orçamento do
Estado, como manda a lei.
Dada a sua ilegalidade, o Estado e os
cidadãos não são responsáveis por esta dívida,
pois ela cai na categoria de “odious debt” (dívida
assumida ilegalmente e não em benefício do País),
pelo que responsabilizados devem ser o governo
que a assumiu e nos seus legítimos representantes
na época (2005-2014). A sociedade e o Estado
podem exigir que o Conselho Constitucional
analise e conclua sobre a constitucionalidade da
dívida e, na sequência disso, caso se comprove a
sua inconstitucionalidade, recusar assumir a dívida,
desencadear os respectivos procedimentos legais
e obrigar os responsáveis a devolver os fundos.
A magnitude real da dívida é dada pelo
seu stock, pelo seu peso na economia, pelas suas
condições de reembolso e pelas consequências
financeiras e macroeconómicas que a dívida pode
causar. Por exemplo, quando o actual governo
decidiu renegociar a dívida da EMATUM, avalizada
pelo Estado, informou o parlamento que pretendia
alcançar a redução das taxas de juro e o
alargamento do período de reembolso, para reduzir
o peso do seu serviço no orçamento do Estado. A
redução do serviço da dívida foi conseguida por via
do adiamento do reembolso do capital para 2023,
mas à custa do aumento das taxas de juro em três
pontos percentuais. Com o reescalonamento desta
dívida, o governo terá de pagar: US$ 78 milhões
por ano em juros, nos próximos sete anos, e o
capital em dívida numa única prestação, em 2023,
no valor de US$ 731 milhões. Antes do
reescalonamento, haviam sido pagos US$ 132
milhões. Logo, este empréstimo. de US$ 850
milhões custará, ao Estado, cerca de US$ 1,4 mil
milhões – excluindo os prejuízos operacionais da
empresa que, só em 2015, foram de US$ 20
milhões, e os custos de mobilização e
remuneração de parcerias para viabilizar o
projecto. Os custos poderão ser ainda maiores se
os investidores, que aceitaram a reestruturação da
dívida, exigirem e conseguirem uma renegociação
dos termos de reestruturação, alegando que o
governo e aos bancos intermediários mentiram e
que a dívida ilegal reduz as expectativas, a
credibilidade e os retornos dos seus títulos de
divida.
A credibilidade financeira da economia
moçambicana nos mercados internacionais foi
reduzida drasticamente, ao mesmo tempo que
aumentaram os riscos para os investidores, por
causa da velocidade e insustentabilidade do
endividamento, dos termos comerciais da nova
dívida, da ilegalidade de parte da dívida, do peso
que o serviço de dívida exerce sobre a economia e
da reavaliação das expectativas sobre as
probabilidades de a economia conseguir honrar os
compromissos de dívida. As agências
internacionais de rating, como a Standard & Poor’s,
a Moody’s e a Fitch, que informam mercados
financeiros sobre risco financeiro, reduziram o
rating de Moçambique de B+ para CCC, em pouco
mais de dois anos, resultando no aumento das
taxas de juro da dívida e de futuros empréstimos,
tornando a economia mais cara e a dívida mais
insustentável. O acesso ao sistema financeiro
internacional tornou-se mais difícil, mais caro e
mais discriminatório a favor do grande capital
multinacional focado no investimento de alto
retorno, como, por exemplo, a especulação com
recursos energéticos estratégicos.
A dívida pública doméstica, que é
apenas um sexto da dívida pública total e um
oitavo do PIB, sextuplicou na última década,
expandindo a uma média anual de 20%, ou três
vezes mais depressa que o PIB. No entanto, o
serviço da dívida pública doméstica é 50% do
serviço de dívida total anual do Estado, quer
porque as taxas de juro da dívida pública
doméstica são altas, quer porque metade da dívida
pública externa ainda é concessional (baixo custo).
A dívida pública doméstica é essencialmente
financiada pela venda de títulos de dívida no
Carlos Castel-Branco e Fernanda Massarongo
com a colaboração de Rosimina Ali, Oksana Mandlate, Nelsa Massingue e Carlos Muianga
IESE - Instituto de Estudos Sociais e Económicos; Av. Tomas Nduda Nº1375, Maputo, Moçambique
Tel: +258 21 486043; Email: iese@iese.ac.mz; http://www.iese.ac.mz
Isento de Registo nos termos do artigo 24 da Lei nº 18/91 de 10 de Agosto
mercado doméstico de capitais, o que contribui para
formar um sistema financeiro doméstico
especulativo e pouco preocupado com a produção
que não seja associada a mega projectos, por
causa dos elevados retornos financeiros que a
compra e venda de títulos de dívida proporciona e
do impacto deste negócio no encarecimento e na
escassez de capital. Nos últimos cinco anos, a
compra e venda de títulos de dívida pública tornouse
no principal negócio do sistema financeiro
doméstico, tanto da banca (cerca de 30% das suas
aplicações financeiras, o que é idêntico à soma total
dos empréstimos bancários à agricultura, à
indústria, ao turismo, às pescas e aos transportes e
comunicações), como da bolsa de valores (cerca de
80% das suas transacções financeiras). As
tendências especulativas do sistema financeiro
doméstico, exacerbadas pela dívida pública, são
determinantes para manter as taxas de juro
comerciais altas e inacessíveis às pequenas e
médias empresas produtivas, para reduzir a eficácia
de políticas monetárias expansionistas, para
aumentar os efeitos negativos das políticas antiinflacionárias,
e para desestabilizar o metical.
Endividamento acelerado como opção de
acumulação
A dívida pública foi largamente utilizada para apoiar
o complexo mineral-energético, as suas
infraestruturas e sistemas de defesa e segurança,
bem como para o financiamento e o envolvimento
das oligarquias nacionais emergentes no controlo e
exploração das riquezas energéticas e minerais do
País, em conjunto com o grande capital
multinacional. Esta foi, apenas, uma opção de
classe, e não uma necessidade imperiosa da
nação, e nunca foi o único caminho ou opção
disponíveis e/ou possíveis, tendo sido escolhida por
ser a que mais rapidamente atrairia capital
multinacional em larga escala para financiar a
emergência de oligarquias nacionais.
As consequências desta opção são
profundas e estruturantes: a economia tornou-se
mais afunilada e desarticulada e menos variada,
mais vulnerável aos mercados financeiros e de
mercadorias e aos seus choques cíclicos, mais
dependente de dívida, mais cara, menos capaz de
crescer sustentavelmente e mais especulativa. No
período 2010-2014, a economia viveu numa bolha
especulativa que expandiu e implodiu (retracção do
investimento, desaceleração do crescimento e
redução do emprego), depois de ter explodido (crise
de dívida). As capacidades físicas criadas com
recurso à dívida não podem facilmente ser
reorientadas para outras dinâmicas económicas e
sociais, porque a dívida foi usada para financiar
projectos caros e pouco úteis para a economia
como um todo (como a ponte da Ka Tembe, o
aeroporto de Nacala, os jogos Africanos, o estádio
nacional do Zimpeto), projectos ligados ao
complexo mineral-energético (infraestruturas,
segurança, serviços especializados e financiamento
directo de oligarcas nacionais), entre outros. O
futuro macroeconómico do País, incluindo a sua
capacidade de honrar a dívida, foi colocado na
dependência das expectativas sobre o complexo
mineral-energético, ou dos termos da
reestruturação e cancelamento da dívida. Quais
serão as condições dos mercados na segunda
metade da década de 2020, e que quantidade de
excedente será, de facto gerada? Quanto desse
excedente ficará, de facto, na economia nacional, e
quanto sobrará para alargar a base social do
desenvolvimento e garantir uma vida digna aos
moçambicanos? Mesmo que os projectos do carvão
e gás atinjam pleno funcionamento em 2023, a
competição pelo rendimento (incerto) será enorme:
(i) entre os custos e retornos dos investidores e as
necessidades fiscais da economia; (ii) entre
diferentes aplicações das receitas fiscais, desde o
reembolso da dívida até ao financiamento de mais
infraestruturas e logística para o complexo mineralenergético;
desde e necessidade de criar fundos
soberanos até às demandas sociais e económicas
mais urgentes.
Apesar do rápido crescimento
económico, da expansão do investimento e da
duplicação do número de multimilionários,
registados na década de 2005-2014, a pobreza não
diminuiu, a des igualdade aumentou
significativamente e as condições de trabalho
tendem a tornar-se mais precárias. Portanto, as
demandas e pressões económicas, políticas e
sociais para transformação da economia e dos
padrões de produção e distribuição vão aumentar
significativamente. Que respostas serão possíveis
num cenário pós-bolha económica, com um
possível programa de austeridade social imposto
como mecanismo de ajustamento e uma
infraestrutura e base produtivas que não servem as
necessidades da economia e dos cidadãos
comuns?
Questões imediatas
Como começar a tratar deste problema? Primeiro, é
preciso contextualizá-lo adequadamente. No debate
actual, alguns analistas põem a ênfase na
corrupção, outros relatam, longamente, o cenário
internacional, enfatizando a queda dos preços das
mercadorias primárias e, um pequeno grupo, está
em campanha contra o FMI e os doadores. A
contextualização adequada requer, no entanto, ligar
a questão da dívida à lógica do processo de
reprodução e acumulação económica em
Moçambique. A nossa economia expôs-se
abertamente aos mercados financeiros
internacionais na busca de capital e corporações
multinacionais vitais para o processo de reprodução
e acumulação primitiva, privada, de capital. Esta
estratégia conduziu ao maior afunilamento da
economia, à perda de diversidade e de capacidade
de articulação doméstica e de substituição de
importações, bem como à marginalização da
produção de bens e serviços básicos a baixo custo,
em especial produtos alimentares e serviços
públicos vitais. O endividamento público funcionou
como “recurso natural”, explorado até ao
esgotamento, dado o espaço de dívida que havia
sido criado por duas décadas de austeridade
financeira acordada com o FMI. Este “recurso” foi
usado para atrair capital externo – reduzindo os
seus custos e riscos – e para financiar a ligação
entre esse capital e as classes capitalistas
emergentes em Moçambique, em fase de
acumulação primitiva. Ao contrário do que é
apregoado, a dívida não é o produto de
consumimos mais do que produzimos, porque a
maioria da população e das unidades económicas
não beneficia desse tipo de endividamento. O
grosso da dívida é o produto das opções de
desenvolvimento assentes no grande capital
corporativo multinacional e no financiamento de
oligarcas nacionais. Se pensarmos na dívida como
excesso de consumo sobre a produção, vamos
definir a austeridade social e o aumento da
produção, mesmo dentro do actual modelo de
reprodução e acumulação, como prioridades, dando
destaque à contínua privatização de activos e
serviços públicos. Se pensarmos na dívida como
resultado de um modelo económico específico, a
preocupação central será a mudança desse
modelo, e não a sua expansão. Portanto, a
contextualização da problemática da dívida é
central para a entender e para definir as estratégias
de acção.
Segundo, é necessária uma auditoria
exaustiva, transparente, rigorosa e pública da
dívida, incluindo os avales a empresas privadas,
tornando claro: os tipos de dívida (doméstica,
externa, comercial, concessional, empréstimos do
Estado e avales do Estado a empresas privadas),
as condições de reembolso (incluindo períodos de
graça e maturidade e os juros), com quem a dívida
foi contraída (a quem devemos), a utilização dada
aos empréstimos (em detalhe), quem deles
beneficiou, onde estão os fundos e se podem ser
recuperados, a dívida registada e não registada no
orçamento, os mecanismos que permitiram a
ocorrência da dívida ilegal, a projecção do serviço
da dívida, entre outros factores.
Terceiro, a auditoria permitirá
estabelecer uma estratégia de gestão,
reestruturação e cancelamento parcial da dívida
(especialmente, da dívida ilegal), definindo os
limites de sustentabilidade com referência às
necessidades de diversificação, alargamento e
articulação da capacidade produtiva, de produção
de bens básicos de qualidade e a baixo custo e de
prestação dos serviços públicos vitais, em vez de,
apenas, ajustar a dívida aos limites (semi
arbitrários) de sustentabilidade fiscal, os quais são
politicamente definidos em função da capacidade
política de intensificar medidas de austeridade
social. É pouco provável que seja possível avançar
com a reestruturação e cancelamento da dívida
sem que se proceda a auditoria e sem que as
instituições de justiça façam a investigação criminal
e eventual julgamento dos responsáveis pela dívida
ilegal. As instituições públicas têm de se demarcar
da governação desastrosa do erário e do bem
público, do período 2005-2014, e dar claras
indicações de que este cenário não será repetido. É
preciso credibilizar a governação antes de negociar
o que quer que seja, ou a renegociação vai ser
sempre em favor dos credores.
Quarto, é necessário renegociar os
contratos com os mega projectos que já produzem
lucros há quatro ou mais anos, como são os casos
da Mozal, Sazol, Kenmare e outros, e rever o
pacote de incentivos ao investimento de modo a
eliminar incentivos redundantes, aumentar a receita
fiscal, travar o aumento da dívida pública doméstica
sem cortes na despesa social e reorientar o
investimento para além do complexo extractivo da
economia. Esta medida poderia contribuir para
tornar o sistema financeiro doméstico menos
especulativo e mais interessado no alargamento da
base produtiva e comercial da economia.
Quinto, é necessário reestruturar o
portfólio de investimento público, incluindo a
reavaliação da racionalidade económica e dos
custos dos projectos que fazem parte desse
portfólio, o cancelamento dos projectos menos
relevantes para a economia (mesmo que sejam
grandes), a adequação do investimento público às
prioridades económicas e sociais nacionais e,
finalmente, o aperfeiçoamento dos sistemas de
planificação, de avaliação e de monitoria de
projectos e de decisões públicas, reforçando o
escrutínio público e democrático, constitucional,
sobre as acções do executivo.
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