Tropas governamentais incendiaram palhotas da população em Morrumbala, alegando que foram traídas. Muxúnguè volta a ser palco de grande movimentação militar.
Intensificam-se os confrontos militares na região centro do país, com o Governo a expedir mais tanques de guerra e armamento pesado, incluindo de longo alcance. Já se fala em mais um plano de assalto final à Serra da Gorongosa, onde se supõe acredita que esteja Afonso Dhlakama.
As tropas governamentais e da Renamo voltaram a confrontar-se na madrugada da passada sexta-feira, 12 de Fevereiro, numa região próximo de Sabe, distrito de Morrumbala, na província da Zambézia.
Existem relatos de fontes não oficiais segundo os quais os confrontos se prolongaram até ao amanhecer de sexta-feira, tendo havido pelo menos cinco mortos.
Segundo os mesmos relatos, os homens armados da Renamo atacaram uma unidade das forças governamentais que se aproximavam duma posição sua.
Ainda segundo as mesmas fontes, no ataque os homens da Renamo apoderaram-se de armamento em quantidades não especificadas.
Na sexta-feira, as tropas governamentais voltaram à povoação onde perderam armamento e incendiaram palhotas da população acusando-a de albergar e colaborar com homens da Renamo.
A Renamo, através de uma fonte superior na Zambézia, que pediu o anonimato, confirmou o ataque pelos homens daquele partido a uma unidade das tropas governamentais que se aproximavam duma posição.
Confirmou também que as tropas do Governo estavam a incendiar palhotas da população em retaliação pelo ataque da Renamo.
Contactado telefonicamente pelo CANALMOZ , o comandante provincial da PRM na Zambézia, João Manguele, não desmentiu nem confirmou a ocorrência, tendo-se limitado a dizer que não tinha conhecimento e que a situação estava calma.
No domingo, a situação era descrita como calma, mas com a população ainda refugiada.
Entretanto, diversas unidades das Forças Armadas de Defesa de Moçambique saíram, na noite de quinta-feira, do Comando do Exército em Maputo com destino à região centro do país, concretamente as províncias de Sofala, Manica, Tete e Zambézia.
CANALMOZ – 15.02.2016
Xingufucracia
Sou muito suspeito para falar de certos assuntos, um dos quais é a corrupção. Tenho muitas dúvidas sobre a centralidade que é dada a este fenómeno no processo de desenvolvimento. Devo ser o único (se não contarmos os corruptos, claro), mas não importa. Na verdade, sou de opinião que a luta anti-corrupção tem sido um dos maiores entraves ao desenvolvimento por várias razões. Primeiro, promove um mau diagnóstico dos nossos problemas confundindo a causa com o efeito, o que leva a um grande desperdício de recursos e energias. Segundo, cimenta uma abordagem dos nossos problemas que não tem necessariamente o objectivo de os resolver, mas sim de criar as condições para a reprodução da indústria do desenvolvimento. Terceiro, promove um tipo de cidadania nocivo, cuja principal característica é a denúncia, não a crítica construtiva. Enfim, a luta anti-corrupção é um daqueles fenómenos que, socorrendo-me duma sociologia organizacional bem telúrica, gostaria de chamar de “xingufucracia”.
“Xingufu” é o nome que se dá a uma bola de futebol feita de trapos, borracha, capim, plásticos, enfim, tudo que a miudagem sem bola de verdade apanha por aí para jogar com os pés. Parece óptima solução para um problema pontual. O problema do “xingufo” é que não dura muito tempo. E pior, por causa das suas características bem particulares o futebol que ele produz não é necessariamente o futebol, mas uma versão aproximada em resultado de todos os ajustes que temos de fazer para nos adaptarmos às características bem específicas da bola artesanal: não salta, não rola bem, não dói quando bate o corpo, não corta bem o ar, pode se desfazer a qualquer momento, etc.
O termo “xingufucracia” refere-se a um conjunto de pessoas (no aparelho de estado e nas organizações da sociedade civil) que alimentam toda uma máquina de gestão dum país baseada na proliferação de “xingufus” que (acham que) resolvem problemas específicos tipo corrupção, desigualdade de gênero, crianças da rua, pobreza, vulnerabilidade, conflitos, etc. Para tudo que é problema existe uma “solução” artesanal, cuja principal motivação é dar a impressão de que aborda o problema ao mesmo tempo que justifica o nascimento e proliferação de agências (ou indivíduos) cuja razão de existência é a disponibilização dessas “soluções”. Governar passa a ser ter agências ou estratégias especialmente vocacionadas para essas coisas. Os problemas que resultam da aplicação de soluções “xingufu” não são vistos como manifestação dessas soluções, mas sim como problemas típicos do desenvolvimento, o que justifica mais soluções “xingufu”. O problema da “xingufucracia”, porém, é que ela a curto e médio prazo torna o processo de gestão de relações sociais mais complexo pela proliferação de soluções simples para tudo que consegue se impor como problema. E não só. Os “xingufu” obedecem a uma economia política própria que exige a sua constante reprodução por meio da tendência natural de exagerar o problema para justificar a existência da instituição que com ele lida.
Há muito que venho pensando nisto. A recente leitura da edição n°45/2016 do boletim “a Transparência” do Centro de Integridade Pública Moçambique com o título “Gabinetes de Combate à Corrupção: ‘Máquinas’ Dispendiosas para Resultados Insignificantes”, da autoria de Anastácio Bibiane e de Baltazar Fael reforçou a minha convicção sobre a perniciosidade da “xingufucracia”. O texto sugere a extinção destes gabinetes a favor da criação de unidades especiais dentro da Procuradoria-Geral da República. A sugestão surge da constatação segundo a qual (a) os níveis de corrupção continuariam altos (apesar da existência destes gabinetes), (b) o desempenho destes gabinetes seria mau se medido na base do número de casos tramitados (e em comparação com o desempenho dos magistrados afectos às procuradorias) e (c) o aumento paulatino do orçamento destes gabinetes (sem melhoria correspondente no desempenho sempre medido de acordo com o número de casos tramitados).
Qualquer um destes três argumentos pode ser refutado com relativa facilidade. Assim, podíamos dizer, por exemplo, que é ingênuo esperar que a simples criação de gabinetes vá resolver o problema da corrupção ou mesmo que o aumento signifique necessariamente que os gabinetes não estão a funcionar bem. Podíamos também dizer que a diferença no desempenho pode se explicar pela complexidade do assunto tratado. Afinal, casos de corrupção são bem mais complexos (e arriscados). Finalmente, o aumento orçamental explica-se também pela inflação, por um melhor apetrechamento dos gabinetes, etc. A questão central para mim é se mesmo que estas razões fossem correctas se justificaria uma mudança de estratégia que implicasse a transferência destes gabinetes para as Procuradorias e, já agora, se ao se fazer isso a luta contra a corrupção seria melhor. Duvido. E duvido porque nem as razões dadas para o título bombástico, nem a solução sugerida abordam o principal problema. E esse é o sentido que toda esta cruzada moral anti-corrupção faz e os estragos que ela causa à gestão racional do país. Sintomaticamente, o texto não põe em causa a luta contra a corrupção, mas eu acho que se houver mesmo seriedade nisto a primeira coisa a fazer seria mesmo pôr essa luta em causa.
Sei que, como no passado quando disse as mesmas coisas, vou ser acusado de defender a corrupção. E pela forte presença deste fenómeno na Pérola do Índico é difícil entabular conversa sobre isto sem que as pessoas ergam barreiras defensivas que resistem a toda a tentativa de introduzir maior racionalidade na forma como as causalidades são discutidas. Sem bem-estar para todos, mas com um punhado de indivíduos que vivem à grande (muitas vezes à custa do estado e de roubos) é difícil meter na cabeça de alguém que não haja necessariamente nenhuma relação entre o mal-estar de muitos e a afluência de poucos. É simplesmente contra intuitivo. E uma mente preguiçosa odeia tudo o que parece ferir as suas intuições. Por essa razão, tudo o que parece “solução” é bem-vindo, nem que não seja solução. É a lógica da “xingufucracia”. Várias soluções simples em concorrência produzem complexidade ao mesmo tempo que a necessidade que a indústria do desenvolvimento tem de intervir a todo o custo acaba comprometendo a sua própria capacidade analítica, pois uma análise só está completa quando legitima a intervenção, seja ela qual for.
E só para ser maldoso: é curioso que apesar de termos um Centro de Integridade Pública há muitos anos a corrupção continua. Pedir aos doadores para extinguirem esse centro através da sua integração no tribunal administrativo? Claro que não. Eu até acho que a solução ideal, se é que podemos falar de solução neste caso, seria de termos estes centros em todas as províncias sem financiamento de doadores a quem prestam contas, mas sim com financiamentos de associações locais de contribuintes para que a sua lógica de acção esteja mais virada para dentro e seja menos motivada pelo espírito de denúncia, mas sim de crítica. Não resolveria o problema da “xingufucracia”, aliás, contribuiria para o seu crescimento, só que seria a partir de dentro, tendo em conta as prioridades reais dos contribuintes e não dos doadores que esses fazem o que fazem no espírito de se tornarem indispensáveis ao nosso “desenvolvimento”.
Um dia, daqui a meio século, vamos lamentar o tempo que perdemos apostados a mostrar que somos capazes de analisar os nossos problemas e formular os desafios que eles nos impõem a partir das lentes que a indústria do desenvolvimento nos faculta para que ela se reproduza no nosso seio. Teremos gente com muita competência para falar de corrupção, boa governação, igualdade de gênero, transparência, mitigação de tudo, etc., o que em si já terá sido um grande progresso. E mais: vamos mesmo precisar, pois os problemas que essas palavras bonitas evocam vão continuar entre nós uma vez que para além da sua existência real o que mais precisam para existirem é dum discurso que os torna reais.
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