Do livro: RENAMO, EM DEFESA DA DEMOCRACIA
EM MOÇAMBIQUE. por
Sibyl W. Cline, pp. 43-64
A RENAMO tem muitas críticas verbais, mas
nenhumas tão grandes como as de Chissano. Em 1987
estive sentada com Chissano, durante três horas e, nesse
encontro, ele deve ter usado a expressão «bandido», ao
referir-se à RENAMO, mais de 500 vezes.
Seguidamente, uma semana mais tarde, enviou o seu
chefe do estado-maior para nos informar acerca da
RENAMO. Mostrou-nos as informações dos serviços
secretos sobre as forças militares da RENAMO, a sua
estrutura civil, os nomes dos seus comandantes
provinciais e mesmo os números de série das suas
armas. E tudo isto, mesmo depois de ele ter tão
energicamente negado que a RENAMO nem sequer
existia como uma organização séria. Porquê?
Sem dúvida que, durante a entrevista, Chissano se
apercebera da nossa descrença em relação à sua
descrição da RENAMO e queria afastar a ideia que não
tinha sido honesto connosco...
A mofa favorita de Chissano contra a RENAMO é
que a mesma foi criada pelos brancos da Rodésia e depois preservada pelos sul-africanos brancos. Os
membros não são nada a não ser, supostamente,
marionetas que se movem numa guerra racista contra os
legítimos dirigentes africanos.
A visão mais comum da RENAMO descrita pela
campanha de propaganda de Chissano é que se trata de
um banho de «anti-Robins dos Bosques» que tiram aos
pobres para darem a eles próprios e que não têm conta
os danos físicos que têm infligido no processo. Trata-se
de um quadro que tem sido aceite, na sua maior parte,
pelos meios de comunicação.
O segundo ponto favorito de Chissano na sua
guerra de propaganda é que a RENAMO não tem
capacidade civil administrativa. Se se insistir mais
População civil local — homens, mulheres e crianças —
encontram-se com administradores políticos da RENAMO numa
clareira perto da sua aldeia.
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um pouco, Chissano admite que a RENAMO pode ter
algum talento e estruturas militares, mas volta sempre
ao refrão de que possivelmente a organização não
poderia formar governo e governar um país. Chissano
tem conseguido com muito êxito insinuar este conceito
distorcido na opinião pública mundial.
A experiência que obtive no meu passeio de 320 km
não comporta este quadro. Muito pelo contrário, foi-me
dado ver algumas escolas, diversas clínicas e reuniões
políticas civis realizadas em plena liberdade. Existem
cartazes de Afonso Dhlakama por toda a parte — é
evidente que ele começou a fazer a sua campanha para
as eleições que há tanto ambicionava. As pessoas
comportam-se de uma forma muito amigável com os
nossos acompanhantes da RENAMO que nos escoltam.
Deram-nos livremente alimentos e instruções. Recebi
grande número de olhares curiosos, porquanto os
nativos tinham muito poucas mulheres brancas, mas
nenhum expressou medo ou antipatia.
Na Gorongosa entrevistei diversas entidades civis
da RENAMO que me descreveram a sua organização
corrente e os objectivos que tinham para o seu país.
Consegui entrevistar os chefes dos Departamentos de
Ideologia, Educação e Cultura, Agricultura, Saúde e
Administração Interna.
Cada um dos departamentos encontra-se organizado
em níveis provinciais, regionais, distritais, locais e
de zona, e, a nível de distrito para baixo, existe uma
organização paralela tradicional, que consiste num
chefe principal, a nível distrital, e abaixo dele chefes
locais, subchefes e chefes de zona. Cada um dos chefes
administra quatro ou cinco casas. Estas estruturas
encontram-se estabelecidas e trabalham
45
em todas as áreas libertadas pela RENAMO. (Diagramas
da administração civil da RENAMO, sua
estrutura militar e textos completos das minhas entrevistas
encontram-se indicados nos Apêndices.)
O tema geral destas histórias é que a RENAMO é
um conjunto de selvagens assassinos que estão interessados
apenas em violarem, pilharem e matarem,
«por dá cá aquela palha», e que nenhum governo deve
rebaixar-se a tratar com eles. Talvez algumas das
histórias sejam verdadeiras. As guerras africanas não
são propriamente consideradas pelo seu comportamento
humanitário e cavalheiresco e nada me custa a acreditar
que soldados primitivos e sem qualquer espécie de
educação, tanto da FRELIMO como da RENAMO,
tenham cometido alguns actos brutais.
Das minhas observações, porém, tudo indica que
Dhlakama disciplina os seus soldados severamente
pelos excessos cometidos e qualquer tipo de brutalidade
é certamente contra a sua política de Estado. A
RENAMO, como organização de guerilha, confia no
povo local como suporte. Não pode dar-se ao luxo de o
alienar.
Chissano parece pensar que, pelo facto de negar
legitimidade à RENAMO, não terá de tratar com a
oposição no que concerne ao seu governo de partido
único e pode fazer com que as potências ocidentais
evitem falar com Dhlakama também. Esta estratégia
tem, no entanto, sido notavelmente coroada de êxito. A
FRELIMO controla a agência noticiosa, AIM, e os
novos órgãos de comunicação dos países vizinhos, que
largamente simpatizam com Chissano, transmitem tudo
aquilo que a AIM refere sem se interrogarem. Estas
histórias são seguidamente pro-
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pagandeadas nos meios de comunicação internacionais
e foi assim que surgiu o mito sobre a RENAMO.
Poucos políticos estão dispostos a desafiar a imagem
monstruosa da RENAMO.
Posso dar três exemplos das histórias que, como
resultado da minha experiência, foram questionáveis ou
falsas e que, contudo, foram referidas como se se
tratasse do Evangelho no noticiário internacional.
(Apenas necessitamos de nos referir à cobertura das
últimas notícias oficiais do que se passou na República
Popular da China para verificar os padrões de exactidão
e verdade nas agências noticiosas controladas pelos
países marxistas.)
«Massacre da RENAMO.»
Em 1987, quando estive em África com os consultores
dos Negócios Estrangeiros para os candidatos
presidenciais republicanos, houve dois «massacres»
atribuídos à RENAMO. Um foi em Homoine e outro em
Manjacaze, ambos perto da costa sudeste, a menos de
320 km a norte de Maputo. Homoine foi o primeiro. Os
relatos do que aconteceu em Homoine foram divulgados
com inconsistência lógicas e continham referências, mas
a versão do Governo fez durante semanas um
empolamento do caso na imprensa internacional. O
Governo clamou que 300 a 600 soldados da RENAMO,
atacaram Homoine, dirigindo-se primeiro ao hospital,
onde fuzilaram os doentes. Em seguida, juntaram 386
civis e mataram-nos. Os atacantes escreveram nas
paredes do edifício frases e temas pró-RENAMO.
Depois, supostamente, enterraram todos os mortos numa
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vala comum. Nunca ficou bem esclarecido que os
corpos fossem alguma vez identificados ou contados.
Existem vários problemas relacionados com este
caso. Primeiro, as forças da RENAMO quase nunca
viajam em grupos tão grandes como 300 a 600. Não têm
botas ou uniformes novos. Segundo, seria difícil juntar
386 civis, a fim de os fuzilar. Os africanos desaparecem
no mato ao primeiro som de um disparo. Do mesmo
modo, vestir os uniformes do inimigo e cometer
atrocidades é uma táctica de guerra em África que o
tempo honrou. Além disso, apenas repórteres
situacionistas tiveram de imediato acesso ao local.
Todos os outros tiveram de esperar dez dias a duas
semanas. No entanto, a imprensa internacional levantou
um coro de gritos e protestos contra as atrocidades
provocadas pela RENAMO.
Algumas semanas mais tarde, aconteceu supostamente
um segundo «massacre» em Manjacaze. Fui
convidada pelo Governo a ir ao local do massacre;
acompanhada pelo ministro de Cultura, assim o fiz. À
medida que o dia passava, a história do acontecimento
sofria sempre alterações. Primeiro, havia 300 soldados
da RENAMO, mais tarde 1000. Supostamente 101 civis
tinham sido mortos, mas não se viam nenhuns vestígios
na cidade — nem sangue, nem orifícios de balas nas
casas, nenhuns corpos. O principal dano que vi tinha
sido feito ao gerador de energia que tinha ido pelos ares
e ao edifício da Administração que tinha sido pilhado.
Perguntei onde ê que as pessoas tinham sido mortas e
disseram-me, com um gesto vago, «fora da cidade». Os
meus guias levaram-me ao hospital, onde duas camas
tinham sido ligeiramente queimadas. Perguntei aos
auxiliares
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se alguém tinha sido morto e disseram-me: «Bem, não,
os doentes levaram consigo os mais doentes».
Finalmente perguntei se havia quaisquer frases ou
graffitis como tinha acontecido em Homoine. Os meus
guias olharam para mim com ar admirado e trocaram
impressões entre eles. Em seguida, 20 minutos mais
tarde aproximadamente, ao dobrarmos uma esquina
havia um muro com um grande sinal onde se lia: «Viva
a RENAMO». Aproximei-me e, por alguma razão,
passei o meu dedo pela pintura. Para minha surpresa e
choque, estava fresca. Pude apenas deduzir que, fosse o
que fosse que tivesse acontecido em Manjacaze, o
Governo tinha agarrado a oportunidade de fazer com
que se parecesse com o incidente de Homoine, descendo
mesmo ao ponto de se falar de ataque ao hospital.
Inicialmente, porém, tinha esquecido o graffiti.
O representante do Departamento de Estado dos
Estados Unidos que estava connosco em Manjacaze
ficou tão céptico quanto eu no que se refere a qualquer
«massacre» que tivesse ocorrido. Tinha visitado
Homoine — quando finalmente lhe deram autorização
para lá ir — duas semanas após o acontecimento. Disseme
que tinha, igualmente, sérias reservas sobre a versão
que tinha sido veiculada sobre aquele acontecimento.
Sem qualquer sombra de dúvida, enviou os relatórios
para Washington, mas parece que tiveram pouco ou
nenhum efeito. Entreguei o meu relatório sobre os
«massacres» à secretaria africana do Departamento de
Estado, mas nem sequer um vislumbre de interesse
chegou aos meus ouvidos.
Até agora, estes dois «massacres» foram incidentes
que permaneceram isolados. Não houve ne-
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nhum, antes da visita da delegação dos Negócios
Estrangeiros e, desde então, também nenhum outro foi
referido. Tudo leva a crer que foram orquestrados pela
FRELIMO para benefício da delegação.
«Ataque da FRELIMO»»
Mais recentemente, em 1989, na minha viagem
através de Moçambique e no meu caminho para a
Gorongosa, tinha o hábito de todas as noites escutar as
notícias na rádio. Às 8 horas costumávamos reunir em
volta da fogueira e sintonizávamos a «Voz da América»
da BBC. Uma noite ouvimos um relato de que a
FRELIMO tinha capturado cinco bases da RENAMO,
tinha morto mais ou menos 300 guerrilheiros e libertado
cerca de 400 civis. Tal era descrito como uma ofensiva
de grande porte e de êxito para as forças da FRELIMO.
Tentámos fazer uma ideia onde é que o ataque tinha
ocorrido e, à medida que a rádio referia nomes locais,
compreendemos que estávamos sentados no meio da
alegada zona de batalha e que tínhamos caminhado por
ela todo o dia. Tinha sido uma história completamente
fabricada. Fiquei horrorizada, mas os meus guias da
RENAMO limitaram-se a rir e disseram que a FRELIMO
publica histórias como essa a todo tempo. Tais
relatos constituem um triste testemunho de como um
governo decadente está disposto a distorcer a verdade
para permanecer no poder.
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Relatório Gersony
Outras vozes se juntaram à enfadonha litania de
Chissano. O denominado «Relatório Gersony»,
intitulado «Resumo dos Acontecimentos Relacionados
com os Refugiados Moçambicanos, principalmente no
que respeita à Experiência Relacionada com o Conflito
em Moçambique», foi escrito por Robert Gersony,
consultor junto da Secretaria de Programas para
Refugiados, Departamento de Estado, com a data de
Abril de 1988. Como é de imaginar, produziu um efeito
absolutamente desastroso na reputação da RENAMO,
nos círculos governamentais e da comunicação. Nele se
acusa a RENAMO de assassinar pelo menos 100 mil
civis, da destruição sistemática de áreas civis e da
violação institucionalizada, sevícias, roubos, sequestros
e mutilações. O relatório foi recebido como se tratasse
do Evangelho e boatos de «atrocidades no estilo do Pol
Pot» correram rapidamente em Washington. Porém,
podem colocar-se muitas questões respeitantes à
metodologia do relatório e sobre as conclusões
possivelmente falsas do autor.
Gersony escreveu sobre condições dentro do território
controlado pela RENAMO, tirando as suas
conclusões exclusivamente das informações que lhe
foram dadas por refugiados em campos, tanto dentro
como fora de Moçambique. O autor nunca pôs os pés no
território controlado pela RENAMO nem falou sequer
com qualquer dos representantes ou oficiais da
RENAMO. Muito provavelmente, de uma forma
rigorosa e hábil, apresentou as suas informações, mas o
problema são as informações em si.
O autor admite que durante a sua pesquisa se
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lhe depararam problemas de localização. Teve de falar
através de intérpretes, eram poucos os entrevistados que
sabiam contar acima de 10, a maior parte eram pessoas
primitivas, supersticiosas, absolutamente dependentes
das autoridades que dirigiam os campos onde viviam.
Gersony escreve:
«Não existem queixas contra os soldados do
Governo por parte dos refugiados no interior de
Moçambique. Todas as queixas contra estes
vêm dos refugiados que se encontram fora de
Moçambique. Tal pode reflectir uma hesitação
natural dos refugiados nas áreas controladas
pelo Governo para expressarem a sua crítica
sobre os soldados sob cuja protecção
dependem... As auscultações de opinião entre
as fontes religiosas independentes tenderam a
reforçar esta conclusão.»6
O autor parece não ter conhecimento que estas
restrições de expressão eram igualmente verdadeiras nos
campos de refugiados do Malawi, Tanzânia e
Zimbabwe. Fiz algumas visitas juntamente com várias
famílias de missionários que trabalhavam nos campos
do Malawi e todos afirmaram que os agentes da
FRELIMO tinham livre acesso aos campos e que neles
se infiltraram, pelo que os mesmos se passaram a reger,
ainda que não oficialmente, pela SNASP, a polícia
secreta da FRELIMO. Tais afirmações foram
confirmadas pelo oficial veterano de segurança do
Malawi. As mesmas condições prevalecem no
Zimbabwe e na Tanzânia, países que têm relações
amigáveis com a FRELIMO e violentamen-
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te se opõem à RENAMO. Dos 25 locais que o Sr.
Gersony menciona, 12 situavam-se em Moçambique,
três no Zimbabwe, cinco no Malawi e dois na Tanzânia.
Os três restantes ficavam na África do Sul.
O notável conteúdo e semelhanças nos relatórios
podem, em parte, atribuir-se a dois factos: a um desejo
simples de as pessoas agradarem àqueles que os
alimentam, e a sua exposição universal à propaganda da
FRELIMO contra a RENAMO. Mais do que provável,
seja o que for que eles ouçam na rádio, repetirão aos
seus benfeitores. Igualmente, uma vez nos campos, sem
dúvida absorvem a «linha do partido» dos agentes da
FRELIMO e primeiros refugiados e — por medo e
idêntica pressão — aderem ao mesmo.
Permito-me questionar o «elevado nível de credibilidade»
que Gersony atribui aos relatos dos refugiados.
Até mesmo a estatística que ele apresentou tem
o seu quê de fantasia. Declara: «Os 'negativos
associados' respeitantes à RENAMO foram de 96%,
contra 17% no que diz respeito à FRELIMO. Os
positivos associados mais 'nenhumas queixas'
respeitantes à FRELIMO foram de 83%, contra 4% no
que concerne à RENAMO.»7
Tanto a RENAMO como a FRELIMO retiraram as
suas tropas das mesmas águas — moçambicanos, na sua
maior parte sem educação, não sofisticados e nascidos
no mato. É uma coisa que desafia o senso comum que o
seu comportamento numa situação militar fosse tão
diferente que um dos lados cometesse todas as
atrocidades, enquanto o outro nenhuma. É, igualmente,
irracional presumir que a RENAMO treine as suas
tropas para serem bárbaras. Uma força de guerrilha tem
que confiar na boa
53
vontade do povo, entre o qual vive, a fim de sobreviver.
Não só têm sobrevivido, mas o seu número tem
crescido.
O Sr. Gersony afirma que a RENAMO divide todas
as áreas que controla em «áreas de impostos, áreas de
controlo e áreas de destruição»8
, em que a população é
regida por métodos que variam de graves a brutalmente
desumanos.
Em Maio de 1989 atravessei as províncias de Tete e
Sofala no meu caminho para a Gorongosa e, pelo menos
naquelas áreas, posso testemunhar que tal estrutura não
existe. Caminhámos durante todo o dia, durante 19 dias,
e muitas vezes os nossos acompanhantes não estavam
seguros do caminho. Frequentemente, paravam e
perguntavam ao povo local, a fim de receberem
instruções e novamente retomávamos o nosso destino.
Quando o nosso grupo pedia para parar ou para seguir
um local de paragem ou um caminho diferente, o nosso
guia concordava sempre. A rota não podia ter sido
planeada, a fim de esconder a destruição maciça, a fome
e brutalização do povo que Gersony descreve. (Fiquei
convencida de que a nossa rota não era de forma alguma
planeada. Os nossos guias não usavam bússolas e, em
alguns dias, tínhamos que caminhar em grandes curvas,
seguindo ao longo dos melhores caminhos possíveis.
Muitas vezes mudávamos de rumo, seguindo o conselho
local.)
De facto, a população era amiga, curiosa e sem
medo. Muitas vezes dormimos perto da cabana de um
chefe tribal e uma vez o nosso grupo, os soldados da
RENAMO e todos participaram numa festa de tambores
e dança. Ninguém morreu de fome, ninguém correu
para o mato á nossa aproximação.
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Aldeões, reunidos com as tropas da RENAMO para um encontro
político, disfrutam uma tarde de festividades. A esposa do chefe
encoraja todos a juntarem-se-lhes numa dança.
Parece-me que este não é o comportamento de um povo
que foi violado, mutilado e assassinado.
A minha evidência é corroborada pela de Nicholas
della Casa, o jornalista inglês que durante ano e meio
foi mantido como prisioneiro da RENAMO sob suspeita
de ser um espião e foi libertado no ano passado. Viajou
com os soldados da RENAMO por todo o Moçambique
durante a seca de 1987. Aquele jornalista refere que os
soldados que se encontravam com ele durante um mês
inteirinho viram-se, apenas, obrigados a comer nozes e
mais nada, mas que ele não viu que alguém extraísse
pela força alimentos ao povo. De facto, eles
organizavam as pessoas para trazerem comida das
províncias que a tinham para aquelas que nada tinham e
distribuíram essa comida pelo povo. A opinião de Della
Casa so-
55
bre a RENAMO é tão boa que, apesar da temporada que
passou como prisioneiro, regressou ao território da
RENAMO connosco, em Maio, a fim de fazer um
documentário.
Durante a nossa visita houve comida em abundância.
As forças da RENAMO têm um sistema de
recolha e fazem funcionar centros de armazenagem de
alimentos chamados «controlos». A quantidade a trazer
para as forças fica ao arbítrio dos lavradores e tudo
indica que os mesmos vêm de boa vontade. Num país
onde não existe refrigeração, onde há pouco
armazenamento e não há mercados onde vender, o seu
excedente é apenas isso — extra — e podem, portanto,
dar esse excedente.
Além disso, enquanto caminhávamos por áreas
cultivadas, os soldados nunca roubaram alimentos dos
campos. Se desejávamos cereais ou fruta, pediam
sempre ao proprietário dos campos autorização para os
colher. Os soldados da RENAMO são severamente
punidos, nem que seja por roubarem uma espiga de
trigo. Um dia caminhámos 12 horas sem que tivéssemos
qualquer alimento — nem pequeno-almoço, nem
almoço, nem lanche, absolutamente nada. Eu deitava
olhares cobiçosos para todas as papaias por que
passávamos. Todavia, ninguém tirou nada.
As forças da RENAMO utilizam, na verdade, tal
como Gersony refere, carregadores civis. A única forma
de transportar qualquer coisa é, em geral, à cabeça de
cada um. Existem muito poucos caminhos
suficientemente largos para permitirem a passagem de
um Land Rovers. Supostamente, a RENAMO possui
alguns motociclos funcionais, mas também nunca vi
quaisquer desses veículos. Quase todas as
56
coisas são transportadas a pé. Todos os soldados
transportam mercadoria e posso facilmente crer que
consigam civis para transportarem mercadorias também.
Todavia, não houve qualquer indicação de que passam
fome ou batam nos carregadores até os deixarem mortos,
tal como Gersony alega. Por três ocasiões, o nosso grupo
levou um civil connosco, duas vezes para nos indicar o
caminho e outra vez para transportar um pacote. Estes
civis, porém, apenas permaneceram connosco durante
algumas milhas e depois regressaram.
Finalmente, a precisão das declarações de Gersony
sobre o tratamento das mulheres é questionável. Diz:
«Uma outra função das raparigas e das adolescentes e
mulheres adultas é oferecer sexo aos combatentes. Dos
relatórios dos refugiados, tudo indica que estas
mulheres são requisitadas para se submeterem às
exigências sexuais, na verdade para serem violadas,
numa base frequente e mantida.»9
Isto implica que a RENAMO permite e institucionaliza
a violação, o que — dada a sua dependência
do suporte da população e das boas relações que
observei entre os civis e os soldados — é pouco provável.
Em 1986, Robert Mackenzie estava na província
da Zambézia, escoltando alguns missionários para fora
de Moçambique e testemunhou uma perseguição da
RENAMO sobre um caso de violação. Um comandante
miliar tinha violado uma rapariga e os pais tinham-se
queixado à RENAMO. O comandante foi arrastado
diante das tropas, despromovido e espancado. Tornou a
entrar na RENAMO destituído de todas as suas
insígnias. Se, como dizem, a RENAMO permite a
violação, é difícil crer que os pais desgostosos se
tivessem dirigido aos oficiais da RE-
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Guerrilheiros da RENAMO armados, alguns vestidos com os seus
melhores uniformes, recebem instruções do seu comandante
supremo.
NAMO para que administrassem justiça pelo crime
cometido.
Então, porque é que há tantos refugiados? —
perguntei a Dhlakama e ele respondeu-me que a
FRELIMO tem uma política consciente de criar refugiados.
Com o auxílio da Força Aérea do Zimbabwe,
as forças governamentais usam o bombardeamento e a
forma de intimidação para alienarem a população civil e
a afastarem da RENAMO. «O povo do Zimbabwe»,
acrescentou, «sabe pela sua própria experiência o que
foi a guerra de guerrilha na Rodésia e como os
guerrilheiros confiam na população.» Num dia do nosso
passeio ouvi aviões a jacto transportando bombas e não
me pareceram que se encontrassem perto de qualquer
alvo militar.
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Os meus amigos missionários analisaram o problema
dos refugiados de uma forma semelhante a
Dhlakama. O povo ouve o bombardeio ou passa por
qualquer incidente relacionado com a guerra e foge.
Vêm para os campos, onde são alojados e alimentados e
ali recebem mais cuidados médicos do que alguma vez
tiveram. Não têm que trabalhar. Assim, ali permanecem.
Um missionário argumentou que o auxílio internacional
estava a criar uma massa de preguiçosos que sobressaía
dos anteriormente grandes trabalhadores fazendeiros e
que o auxílio de alimentos devia ser cortado, de forma a
que pudessem regressar às suas herdades em Moçambique.
Todavia, a palavra de alimento de graça espalha-se
e surgem cada vez mais potenciais consumidores.
O Relatório Gersony tem sido largamente citado.
Efectivamente, proibiu qualquer contacto político com a
RENAMO, mesmo pessoalmente. Qual o homem de
Estado que gostaria de tratar com o moderno
equivalente de Átila, o Huno? O relatório fechou
imensas portas e fechou imensos espíritos.
O Departamento de Estado publicou o Relatório
Gersony em Abril de 1988, pouco depois de o mesmo
ter sido terminado. Naquela altura, Dhlakama estava a
fazer planos para visitar os Estados Unidos e o relatório
não deixou qualquer pergunta nos espíritos daqueles que
o receberam de que o representante da RENAMO não
seguiria, nem de perto nem de longe, a política
americana de «compromisso construtivo». O apoio dado
a Dhlakama para a sua proposta viagem foi considerado
pelo secretário aos desejos do Departamento de Estado.
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Filhos de Gersony
Dois outros relatórios que prejudicaram ainda mais
a imagem pública da Renamo seguiram-se ao Relatório
de Gersony. Se bem que não tenham sido directamente
atribuídos ao Departamento de Estado, usam, no
entanto, a mesma metodologia e citam o Relatório de
Gersony como fonte.
O primeiro, um relatório feito por William Minter
para a Fundação Ford, «A Resistência Nacional
Moçambicana — conforme Descrita por Ex--
Participantes», presumível entrevista a ex-soldados da
RENAMO que se entregaram à FRELIMO, a fim de
serem amnistiados. Para começar, trata-se de uma
amostra questionável e, além disso, está comprometida
pelo facto de que esses ex-soldados da RENAMO foram
apresentados pelo governo de Maputo e encontravam-se
sob o controlo do governo. Uma das conclusões do
Senhor Minter é que, pelo menos 90% dos soldados da
RENAMO, são recrutados à força.»10
Curiosamente perguntei a Dhalakama o que é que
ele pensava da alegação de Minter e ele limitou--se a rir.
Por sua vez, perguntou-me como é que ele conseguia
controlar um exército constituído por 90% de homens
que se mostravam relutantes em estarem ali? Bem, era
de querer que os pudesse atar e seguidamente dar-lhes
uma arma, mas não estava muito crente que eles
pudessem lutar muito daquela forma. Além disso,
durante a nossa caminhada o grupo de soldados, forma
muitas vezes, uma fila ao longo de diversos quilómetros
e os que vão descalços e transportando as cargas mais
pesadas ficam para trás e atrasam-se horas. Nada haveria
que os impe-
60
disse de fugirem como, certamente, teriam feito se,
como dizem, tivessem sido recrutados à força. Em vez
disso, cada noite todos aqueles que se atrasam, embora
extremamente cansados, apresentam-se, lealmente, no
acampamento.
O segundo, um estudo de Moçambique por William
Finnegan, publicado no New Yorker, fala também
sobre a RENAMO, dos boatos que se ouviram,
Finnegan nunca se aventurou, também, a entrar em
território da RENAMO11, e o seu artigo é uma estranha
colagem de opiniões controversas e contraditórias.
A certa altura declara que a «RENAMO surgiu do
Inferno»12. Repete alegações ridículas — que os
soldados da RENAMO decapitam as cabeças dos
velhos para as usarem como assentos e que comem
crianças — como se aceitasse tal como um facto
consumado13.
Finnegan cita Minter e as suas descobertas, nas
mais adiante discorda das conclusões de Minter de que
os soldados da RENAMO sejam, em grande parte,
obrigados pela força dizendo «na verdade, tal é um
desafio ao senso comum que um exército de cativos
lutasse tão encarniçadamente como muitas vezes se diz
a RENAMO faz»14. Cita, o Relatório de Gersony
muitíssimas vezes, mas nalgumas páginas mais adiante,
admite que «a tónica do Departamento do Estado, que
por encanto fez surgir grandes campos de escravos, lhe
parece errada»15.
O artigo do Sr. Finnegan constitui uma tentativa de
que todas as informações divergentes e controversas
que existem sobre Moçambique façam um certo
sentido. Pelo menos, admite que, na realidade ele não
tem capacidade de poder julgar entre as
61
verdades, as mentiras, os relatos sinistros, propaganda e
informações enganosas pelo que faz com que todas
pareçam uma espécie de amálgama. Se bem que,
entremeado de diversas imprecisões e inexactidões, o
arrigo tem um certo valor, uma vez que tenta explicar os
dois lados do problema.
Culpabilidade da RENAMO
É, na verdade, um facto triste que estes relatos
permaneçam isolados e conquistem a opinião pública
devido à omissão e negligência existentes. Os dirigentes
permanecem isolados no mato e não apresentam
qualquer boletim informativo oficial para o exterior. Os
seus representantes estrangeiros encontram-se distantes,
espalhados e desorganizados. A RENAMO, como
organização, parece também atrair marginais lunáticos
de «grupelhos que gostam de fazer a guerra de
guerrilha» e que se apresentam como voluntários para
patrocinar a sua causa, mas cujo resultado se traduz por
um infinito detrimento da sua credibilidade.
Por exemplo, em Washington D.C. tem havido duas
agências de informações noticiosas designadas
RENAMO e cada uma delas luta insistentemente com a
outra. Se alguém quiser falar com um representante
responsável da RENAMO encontrar-se-á em grande
dificuldade para encontrar alguém que seja tanto
acessível como racional. Evo Fernandez, ministro de
Investigação da RENAMO, foi assassinado o ano
passado em Lisboa e o seu mais conhecido porta-voz é
um refugiado que se encontra no Ca-
62
nada, a quem está interdita a prática de quaisquer
actividades politicas.
Resposta de Dhlakama
Como é evidente, Dhlakama está absolutamente a
par da guerra de propaganda que lhe promovem e no
final da minha entrevista, Dhlakama apressou-se de
livre vontade a prestar-me as seguintes declarações:
A RENAMO não é de forma alguma o retrato
daquilo que a «pintam» lá fora. Desde 1977 que
temos estado embrenhados na luta, jovens e
velhos, fracos e fortes, porque estamos lutando
por aquilo que o povo quer e deseja. Se
fôssemos como a FRELIMO nos descreve e
nos apresenta, há muito tempo que teríamos
desaparecido. A acusação de que a RENAMO
foi fundada por Smith na Rodésia não passa de
pura propaganda. Somos, na verdade, uma
organização genuinamente popular. Nas suas
fases preliminares a RENAMO teve alguma
ajuda proveniente da Rodésia, mas continua
ainda a ser moçambicana. Até mesmo a
FRELIMO foi formada na Tanzânia, mas
ninguém diz que pertença à Tanzânia. A
RENAMO tem os seus próprios objectivos
democráticos: um sistema de múltiplos
partidos, eleições livres e justas, um conjunto
que representa os interesses do povo, liberdade
de expressão e direitos humanos. E tudo isto
não
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existe na FRELIMO. O povo de Moçambique
foi quem criou a RENAMO e continuará a
apoiá-la.
Não somos essencialmente uma organização só
militar; somos uma organização política. No final da
guerra colonial, discutimos com a FRELIMO um
sistema para substituir o colonialismo. A FRELIMO
respondeu com violência e matou muitos dos nossos
políticos que não estavam de acordo com a política da
FRELIMO. Assim, a fim de não desaparecermos e
sermos eliminados fomos para uma luta armada. Somos,
todavia, um partido político com um exército. A força
militar foi criada para podermos alcançar os nossos
objectivos políticos. Não queremos destruir a
FRELIMO; esse não é o nosso objectivo. Queremos
uma mudança política; se a FRELIMO desejar falar
connosco seriamente sobre a paz, deporemos as nossas
armas.
A RENAMO constitui uma força central poderosa
implantada no país. A FRELIMO verificará que é
impossível destruir a RENAMO, uma organização que é
pela paz, mas uma paz verdadeira em que o povo pode
votar escolhendo o governo em que está interessado. O
poder em Moçambique deve estar com os 14 000 000 de
pessoas e não com uma minoria militar. O partido deve
pertencer ao povo e não vice-versa. Infelizmente, o
Ocidente não reconhece a RENAMO.
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