A candidatura do magnata deixou de ser uma piada alimentada durante anos a fio e tornou-se no sonho de milhões de desiludidos. E no pesadelo de muitos outros, em especial no Partido Republicano.
Donald J. Trump, o magnata do imobiliáro e estrela da televisão transformado em candidato político que deixa meio mundo ansioso pela sua próxima granada verbal ou twitteira, já teve mais declarações polémicas dissecadas nos jornais e nas televisões nos últimos seis meses do que Silvio Berlusconi durante os nove anos em que liderou o Governo italiano, mesmo com festas “bunga bunga”, fraude fiscal e suspeitas de abuso de poder, difamação, extorsão, perjúrio, acordos com a Máfia, lavagem de dinheiro, corrupção activa e passiva. Por algum motivo, a entrada em cena aos pontapés de Donald J. Trump (o J. é de John, mas o seu sentido de marketing disse-lhe que o efeito não seria o mesmo) deixou milhões em estado de choque – como pode um homem que quer construir um muro, fechar a porta a todos os muçulmanos e devolver a grandeza à América com pouco mais do que chapéus e t-shirts como prova, sair do casulo como uma “big and beautiful” borboleta idolatrada por uma parte considerável do eleitorado americano?
Há muito por onde escolher para se encontrar uma declaração de Trump que resuma a sua ambição e o seu sucesso junto de tanta gente, mas poucas são tão reveladoras como a que marcou o seu discurso de vitória na votação na Carolina do Sul. Era a segunda vitória consecutiva nas primárias para a nomeação dos candidatos que vão concorrer à Casa Branca, e bastou uma única palavra, antecedida de um curto silêncio, para Donald Trump deixar clara a vantagem que tem sobre os seus adversários: “Posso garantir-vos que não é nada fácil concorrer a Presidente. É duro, é sujo, é mesquinho, é perverso!” Breve pausa, e depois, já com os braços abertos à espera dos aplausos da audiência: “É maravilhoso.”
A ideia de que a candidatura de Donald Trump começou por ser apenas uma viagem a alta velocidade do seu inesgotável ego é defendida por John Zogby, fundador da empresa de sondagens Zogby Analytics e comentador político na revista Forbes.
“Acho que tudo começou como uma campanha assente na vaidade. É como se ele tivesse pensado: ‘Eu já fiz tudo, tive sucesso em tudo, então posso concorrer à Presidência e também ter sucesso. Vamos divertir-nos durante alguns meses’. O que acabou por descobrir é que muitas pessoas gostaram do que ele tinha para dizer”, disse ao PÚBLICO John Zogby numa conversa telefónica.
“Uma parte de mim acha que ele encontrou uma mensagem que acredita estar a funcionar, e que tudo isto talvez tenha ido muito mais longe do que ele próprio previa”, considera o analista.
Ronald e Donald
A grande força do actual Super-Trump (à parte do trocadilho com a banda britânica que fez sucessos com canções como The Logical Song e Ain't Nobody But Me) começou por ser aquilo que muitos achavam ser a sua kryptonite: o total desprezo pelas elites partidárias e por tudo o que cheira a Washington aos narizes da multidão de americanos que se sentem atirados para o fim da fila daquela longa-metragem de fantasia chamada sonho americano.
Trump não é, nem de perto nem de longe, o primeiro a concorrer pelo partido e contra o partido. Em 1964, o que se escreveu sobre a corrida à nomeação pelo Partido Republicano não foi muito diferente daquilo que agora se escreve sobre Donald Trump.
O então senador do Arizona, Barry Goldwater, representava a direita conservadora do Partido Republicano contra uma ala mais liberal, representada pelo milionário e governador de Nova Iorque, Nelson Rockefeller. Apesar de ter sido triturado nas eleições gerais pelo candidato do Partido Democrata, Lyndon B. Johnson, numa América profundamente traumatizada pelo assassinato de John F. Kennedy, o senador do Arizona abriu as portas a uma série de nomes ligados a uma ala mais conservadora, que se foi endurecendo cada vez mais de quatro em quatro anos.
É difícil imaginar hoje, a quase 40 anos de distância, mas em 1980 Ronald Reagan também esteve numa posição semelhante à de Donald Trump. A História resolveu colar a sua carreira de actor à de candidato presidencial, mas Reagan já levava quase dez anos de governador da Califórnia quando se lançou na corrida à Casa Branca – a sua incursão na política deveu-se muito a Barry Goldwater, de quem foi apoiante em 1964. Nesse mesmo ano, num discurso proferido em Los Angeles que é ainda hoje conhecido como “o discurso”, Reagan denunciou o que via como o caminho dos EUA para uma desgraça inevitável.
“É isto que está em causa nesta eleição: se acreditamos na nossa capacidade para nos auto-governarmos, ou se abandonamos a revolução americana e admitimos que uma pequena elite intelectual, num capitólio distante, pode planear as nossas vidas em nosso nome melhor do que nós próprios podemos planear.”
“Se continuarmos a acomodar-nos, se continuarmos a recuar e a bater em retirada, um dia teremos de enfrentar a última exigência – o ultimato. E o que acontecerá então – quando Nikita Khrushchev disser ao seu povo que sabe qual será a nossa resposta? Ele dirá que estamos a bater em retirada sob a pressão da Guerra Fria, e um dia, quando chegar a altura de eles fazerem o ultimato, a nossa rendição será voluntária, porque nessa altura estaremos fracos por dentro, espiritualmente, moralmente e economicamente.”
A eloquência de Ronald Reagan em 1964 não deixa de fazer lembrar partes do discurso de Donald Trump em 2016, numa versão wrecking ball preparada para o curto tempo de atenção dos vídeos do YouTube e das mensagens no Twitter: “A América já não está a ganhar”, “Vamos voltar a ganhar”, “Eu sei ganhar”, “Ganhar”, “O Ted é um maluquinho” e “O Marco parece uma criança cheia de medo”.
Não se trata de comparar Ronald Reagan e a sua influência no redesenho do mundo na década de 1980 com Donald Trump e a sua influência no sector imobliário, especialmente na construção de casinos. Mas, por incrível que possa parecer a quem tem medo que o magnata chegue à Casa Branca, há quem acredite que ele também pode mudar assim que lá chegar.
“Ronald Reagan, que concorreu contra o establishment do partido, era uma figura muito conhecida em termos políticos. Era o governador conservador da Califórnia, mas não deitou fora o bebé com a água do banho. Tornou-se parte do establishment quando foi eleito governador e também quando foi eleito Presidente. Quando olhamos para o seu passado, vemos que muitas coisas que ele fez não foram ultraconservadoras”, lembra John Zogby.
E depois, a bomba: “É razoável assumir que é isso que vai acontecer com Donald Trump. Ele é um homem pragmático. Tem um ego enorme, e para além de ser um homem de negócios bem-sucedido, será que ele quer mesmo ser recordado como o homem que destruiu tudo?”
Fiel à sensação de que o magnata é impulsionado pelo ego e pelo desejo de ser admirado, o analista duvida mesmo que a quantidade de declarações racistas, xenófobas e simplesmente grosseiras que Trump tem feito desfilar durante a campanha é algo em que ele acredite.
“É difícil acreditar que ele tenha tido sucesso nos negócios a nível global, como teve, acreditando em tudo o que diz. É difícil imaginar que alguém possa ter escondido esses pontos de vista durante todos estes anos, com a presença que ele tem no Dubai, no mundo muçulmano, na América Latina”, disse Zogby ao PÚBLICO.
Já venceu
O maior problema de Trump, considera o analista, é que nunca na história dos EUA um candidato tão forte à Casa Branca chegou a esta fase da corrida sem uma equipa, sem nomes que possam tranquilizar mesmo os que olham para ele como um perigo se for deixado sozinho a brincar com botões sensíveis. “Mesmo Ross Perot, no início dos anos 1990, tinha muitos conselheiros políticos. Não lhes dava ouvidos, é verdade, mas pelo menos sabíamos de quem ele estava rodeado. Se Trump for eleito, vai ter de montar uma equipa, e geralmente essas equipas são formadas por uma elite, por diplomatas experientes, analistas, conselheiros.”
Mesmo com três vitórias em quatro possíveis até agora nas primárias (New Hampshire, Carolina do Sul e Nevada), é tão certo afirmar hoje que Donald Trump tem a nomeação no bolso como era em Junho do ano passado, quando a sua entrada na corrida não passava de uma anedota que estava a ser preparada há muitos anos e que finalmente tivera a sua “punch line”.
Dentro de 48 horas, quando os eleitores de 12 estados começarem a escolher os seus candidatos preferidos na chamada “Super Terça-feira”, é provável que os dois nomes menos populares, Ben Carson e John Kasich, deixem o que falta da corrida para Donald Trump, Marco Rubio e Ted Cruz. Mas para que o magnata não fique ainda mais perto da coroação, é preciso que Cruz vença pelo menos no seu Texas esta terça-feira e que Rubio conquiste a sua Florida no dia 15 de Março.
“Ele está em melhor posição, e sem dúvida que pode vir a ser nomeado, mas já aprendi que tudo pode acontecer. Neste momento é difícil ver como é que se poderá travá-lo, mas tudo pode acontecer”, diz John Zogby. E mesmo numa possível corrida com Hillary Clinton, não é assim tão certo que Trump seja o bombo da festa, como o establishment do Partido Republicano teme: “Estamos a viver um período de mudanças. Muitas coisas estão a mudar – a natureza da nossa economia, da nossa tecnologia. Há uma necessidade de que as instituições sejam mudadas de forma fundamental. O mesmo se aplica à política, ao governo. É por isso que metade dos democratas apoia alguém que combate o establishment democrata (Bernie Sanders), e o mesmo se passa em relação a Donald Trump. Mas sim, estamos claramente num momento em que é possível uma corrida entre Trump e Clinton. Clinton está a concorrer como uma candidata do establishment, e que reviravolta interessante seria – um multimilionário anti-establishment contra uma representante política do establishment. Muita gente aposta que ela o derrotaria. Não sei, ela tem muitos problemas. E Donald Trump iria atirar tudo contra ela numa eleição a dois.”
Se nem Marco Rubio nem Ted Cruz conseguirem derrotar Donald Trump nas primárias, há ainda duas hipóteses, mas nenhuma parece ser boa para o Partido Republicano.
Num dos cenários, o multimilionário Michael Bloomberg entraria na corridaapenas nas eleições gerais (não nas primárias de qualquer partido) como independente, mas a sua eventual vitória seria histórica e teria consequências imprevisíveis para o futuro dos dois partidos: nunca nenhum candidato independente venceu nas presidenciais dos EUA.
Como último recurso, o Partido Republicano poderia contestar a nomeação de Donald Trump na sua convenção, em Julho, propondo um nome mais próximo do establishment. Mas o resultado poderia ser ainda mais catastrófico para o partido, como sublinha o analista: “O problema dessa estratégia é que iria ao encontro de tudo o que Donald Trump tem representado até agora. Iria sublinhar a injustiça do sistema e o alheamento do establishment do Partido Republicano. Se eles tentarem essa jogada, Trump também pode quebrar a sua promessa de não se candidatar como independente. E se ainda por cima Bloomberg concorrer, teríamos dois multimilionários na corrida, para além de Hillary Clinton ou Bernie Sanders. E se for esse o cenário, faltaria ainda o candidato oficial do Partido Republicano.
Conclusão: se alguém acha que percebe o que está a acontecer nestas eleições presidenciais nos EUA, é porque não percebe nada do que está a acontecer nestas eleições presidenciais dos EUA. E, por esta altura, não haverá ninguém mais confuso e em pânico do que o establishment do Partido Republicano. Para todos os efeitos, Trump ainda não está na Casa Branca e pode nunca chegar lá. Mas já venceu.
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