OPINIÃO
Sauditas eram Bin-Laden e os suicidas do 11 de Setembro; sauditas e qataris pagam aos jihadistas sírios as armas que estes compram aos EUA ou à França. As mesmas que chegaram às mãos do EI, que permitiram que ele se consolidasse.
“Estamos em guerra”, repete, uma e outra vez, François Hollande. “Contra a barbárie”. Já no 11 de Setembro de 2001, Bush Jr. encenara o mesmo discurso. Em 2006, depois de perceber a série de “erros cometidos no Iraque” (pelos quais nunca pagou o cristão renascido que ele próprio julgava ser), disse aos americanos que a “guerra contra o terrorismo”, que ele desencadeou depois de “a nossa nação ter visto o rosto do Diabo” e que o levara a invadir o Iraque (deixando-o devastado provavelmente por várias gerações), era o “combate ideológico decisivo deste século XXI. (…) Chamou-se-lhe o ‘choque de civilizações’”, em referência à famosa tese de Samuel Huntington tão popular (de tão medíocre e simplista) entre as elites e os media ocidentais. “mas, de facto, trata-se de um combate pela civilização. Nós batemo-nos pela preservação do modo de vida dos países livres” (The Washington Post, 11.9.2006).
Mas estamos mesmo em guerra? É que declarar uma guerra não é coisa pouca. Para começar, para as vítimas e as suas famílias. Os 130 mortos e os 300 feridos em Paris, todos eles cidadãos comuns, como qualquer um de nós, foram transformados em combatentes involuntários de uma guerra que o Estado Islâmico (EI) declarou, é verdade, mas que já havia sido antecipada pelas inúmeras intervenções militares francesas através da ampla geografia das suas antigas colónias (o Mali, a República Centro-africana, a Síria). Quando Hollande mandou bombardear cidades ocupadas pelo EI na Síria, as mesmas de onde fogem tantos dos refugiados que hoje afluem às fronteiras europeias, ficámos sem saber quantas outras vítimas foram feitas entre outra gente comum que não declarou guerra a ninguém... “O senhor caiu na armadilha”, escreveu o historiador David Van Reybrouck em carta aberta ao presidente francês, “porque sente a queimar-lhe a nuca o hálito quente de falcões como Nicolas Sarkozy e Marine Le Pen. E o senhor tem desde há muito tempo a reputação de ser um fraco (…) [e,] cabisbaixo, caiu na armadilha, pronunciando, palavra por palavra, o que os terroristas esperavam de si: uma declaração de guerra. O senhor aceitou com entusiasmo o convite deles para a jihad.” (Le Monde, 16.11.2015) Ao fazê-lo arrastou-nos a todos nós, europeus, e a todas as mulheres e homens representados por governos que se têm envolvido desde há décadas na menos clara e mais mal explicada (sucessão de) guerra(s) que tem devastado o Médio Oriente.
Muitos dirão que já não vale a pena discutir como aqui chegámos. Pelo contrário: nesta acumulação de ressentimento sem fim de árabes contra ocidentais, é cada dia mais importante perceber os 120 anos de ocupação colonial francesa (Argélia, Marrocos, Tunísia, Síria, Líbano), britânica (Egito, Jordânia, Palestina, Iraque, Arábia) e italiana (Líbia) que só cessou anos depois da II Guerra Mundial. A partir desse momento, um território sob o qual se estende o mais vasto lençol de petróleo do planeta tornou-se pasto de uma interminável guerra de colonização judaica na Palestina, acompanhada de uma estratégia incendiária por parte das antigas potências coloniais e do seu aliado norte-americano. Foram eles que, como recorda o veterano Robert Fisk, “impuseram reis aos árabes, cozinharam referendos (...), e depois lhes deram generais e ditadores. Para os árabes, a 'democracia' não significou liberdade de expressão e de escolha dos seus líderes; ela referia-se às nações 'democráticas' do Ocidente que continuaram a apoiar ditadores cruéis que os oprimiam” (Independent, 19.11.2015). Aliados contra os movimentos emancipalistas laicos, como os de Nasser, no Egito, ou de Arafat na Palestina, ou da FLN argelina na guerra contra a França, aos ocidentais pouco importava (e pouco importa hoje ainda) que todos eles fossem ultra-religiosos e se opusessem ao socialismo árabe em nome de Alá. Desde a guerra do Afeganistão, contra os soviéticos, e a da Bósnia, que os ocidentais têm vindo a armar em cada fase os mesmos jihadistas (Al-Qaeda, EI) contra os quais têm de lutar na fase seguinte. Quinze anos depois do 11 de Setembro, os sauditas e os emiratos petrolíferos do Golfo, ditaduras terríveis que se sustentam sobre um misto de modernidade ultracapitalista e de violência e opressão em nome dos mesmos valores religiosos do Estado Islâmico, continuam a ser aliados de Washington, primeiro na luta contra Saddam, hoje contra Assad e o Irão. Sauditas eram Bin-Laden e os suicidas do 11 de Setembro; sauditas e qataris pagam aos jihadistas sírios as armas que estes compram aos EUA ou à França. As mesmas que chegaram às mãos do EI, que permitiram que ele se consolidasse.
Que estranha guerra esta... “Sem o crime que foi a guerra de agressão contra o Iraque” e o milhão de mortos que terá provocado, “não haveria EI nem 'Al-Qaeda no Iraque'. Sem o financiamento e o armamento fornecido pela Arábia Saudita e o Ocidente a um agregado de grupos sunitas extremistas no Médio Oriente, utilizados para atacar por procuração o Irão e os seus aliados, não haveria EI (...) – e não teria havido ataques terroristas em Paris” (Chris Floyd, in Arrêt sur Info, 19.11.2015).
Guerra na Síria, e guerra civil em França? “Os franceses deixaram de estar em segurança”, diz Marine Le Pen, que pede “medidas de urgência” para “esmagar o fundamentalismo islamista” e para “rearmar o país”. E Hollande caiu na armadilha: apressou-se a propor uma revisão da Constituição e a impor o estado de emergência que permite à polícia e aos serviços de informação operarem sem controlo judiciário: durante três meses (pelo menos...) podem proibir manifestações, dissolver associações, revistar e deter nas ruas, entrar à força em residências a qualquer hora do dia ou da noite, interrogar sem custódia judicial... Num clima destes, a grande maioria dos franceses estará de acordo com estas medidas. Mas também os norte-americanos terão apoiado o Patriot Act e todo o 1984 que se lhe seguiu – e daí resultou Abu Ghraib e Guantánamo (que Obama continua sem fechar), prisões secretas da CIA e voos ilegais que as enchiam de milhares de detidos sem acusação, tortura como método generalizado, assassinatos ditosextrajudiciais, escutas impostas ao planeta inteiro. É em contextos destes que gente como o eurodeputado Nuno Melo se atreve a dizer que “o terrorismo não se combate de forma romântica” (Antena 1, 20.11.2015). Acompanha-o o truculento Donald Trump, que adverte desde já que “vamos ter de fazer coisas que eram impensáveis há um ano atrás”, como impor um registo especial para os muçulmanos (Guardian, 19.11.2015).
“Há outras formas de firmeza diferentes da linguagem da guerra”, lembrou Van Reybrouck a Hollande. “Logo depois dos atentados na Noruega”, quando Breivik matou a tiro uma centena de jovens por estarem “contaminados” pelo “marxismo” e pelo “multiculturalismo”, “o Primeiro-Ministro Jens Stoltenberg pediu 'mais democracia, mais abertura, mais participação'. O seu discurso, senhor presidente, faz referência à liberdade. Poderia ter falado também dos dois outros valores da República francesa: a igualdade e a fraternidade. Parece-me que precisamos deles bem mais do que da sua duvidosa retórica de guerra.”
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