Afinal, os computadores não eram como a mini-saia
Dois ex-alunos contam como foi integrar a turma inaugural da primeira licenciatura de Engenharia Informática do país. Foi há 40 anos.
Na primeira metade da década de 70, quando um banco comprava um computador, “isso era notícia de jornal”, recorda Pedro Guerreiro, 62 anos, presidente do Departamento de Informática da Universidade do Algarve. Até nos meios mais esclarecidos havia quem achasse que “essa história dos computadores” era “como a mini-saia”. Ou seja, “uma moda” que ia passar. Nos jornais, contudo, já abundavam os anúncios de emprego para quem soubesse lidar com tais máquinas — aprendia-se essencialmente com a prática, as empresas que forneciam os equipamentos também davam alguma formação. Mas só em 1975 foi criada a primeira licenciatura em Engenharia Informática em Portugal. Foi há 40 anos, na Universidade Nova de Lisboa.
Pedro Guerreiro fez parte da primeira turma de 31 alunos. José Alegria, hoje com 61 anos, director de Cibersegurança e Privacidade da Portugal Telecom, também: “Era uma espécie de hacker”, conta José Alegria. Ri-se.
As aulas aconteciam nas instalações do Seminário dos Olivais — o campus da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Nova, na Caparica, estava longe de começar a ser construído, era apenas um projecto, diz Pedro Guerreiro. Nas salas frias, de paredes grossas, do seminário os futuros engenheiros informáticos trabalhavam com computadores Data General Nova 2, “ainda com fita de papel perfurada”, recorda José Alegria. “Íamos de samarra para as aulas, depois puseram lá uns aquecedores.” À saída cruzavam-se com os padres, conta.
Havia outros computadores bem mais cobiçados do que os Nova 2. No Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), por exemplo, havia um Dec System 10 de que os alunos de Informática da Nova desse tempo falam bastante, com algum carinho, já se verá porquê. Essa turma inaugural, ou parte dela, reencontrou-se esta semana na Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT), da Nova, numa palestra sobre “Pensamento Computacional” de Jeannette M. Wing, vice-presidente da Microsoft Research, destinada a assinalar os 40 anos da licenciatura portuguesa.
Ouvindo Wing a falar (e um auditório cheio de jovens e antigos estudantes assistiu) da aplicação das ciências computacionais à saúde, à meteorologia, às ciências sociais, a pergunta parece óbvia: o que se aprendeu de Informática em 1975/76 serve de alguma coisa hoje? “Os princípios fundamentais são muito do mesmo, o que mudou radicalmente foram as abstracções e a sua aplicação aos vários domínios da ciência”, responde ao PÚBLICO o responsável pela cibersegurança da PT, no final da palestra. “Aquele raciocínio computacional de que a Jeannette Wing falava há pouco, quem o interiorizou naquela altura foi depurando, a bagagem de subespecialidades aumentou, no sentido da sua aplicação a múltiplas áreas, mas os fundamentos são os mesmos.”
Como a mini-saia
Com o 25 de Abril e a confusão académica que se seguiu, todas as propostas de licenciatura e de iniciativas das novas universidades ficaram temporariamente suspensas.
A ideia do curso de informática não era nova. Mas só acabaria por ser desbloqueada pelo segundo ministro da Educação no pós 25 de Abril, Vitorino Magalhães Godinho, explica um texto de 2004 de José J. Delgado Domingos, professor do Instituto Superior Técnico (IST), membro da comissão instaladora da Universidade Nova, um dos impulsionadores do novo curso.
A licenciatura “levantou quase de imediato muitas reacções e obstruções no meio académico e profissional”, explica esse texto de Delgado Domingos, que morreu no ano passado. “No meio académico era esperável, e vinha dos puristas que a entendiam como um ramo da matemática, ou dos electrotécnicos, que a entendiam como um ramo da electrónica. Do meio profissional a reacção era eminentemente corporativa porque a maioria dos dirigentes do sector, não sendo licenciados, sentia o seu poder e o seu prestígio ameaçados pelo aparecimento de licenciados na sua área.”
Delgado Domingos conta também a célebre história da mini-saia. Foi numa reunião no ministério de Veiga Simão (ministro da Educação entre 1970 e 1974) onde se debatia a reforma do ensino da engenharia. Quando se falou da introdução dos computadores no ensino da engenharia, lembra Delgado Domingos, um “influente” docente de Matemática declarou: “Vocês, no IST, se quiserem entrar nessas brincadeiras entrem, mas à vossa responsabilidade. Nós não entramos.” Afinal, "essa história dos computadores é como a mini-saia, são modas".
Apesar de se manter no IST, foi para a nova universidade que Delgado Domingos propôs a criação do curso de Engenharia Informática. Madalena Quirino, até então investigadora no Centro de Cálculo do LNEC, coadjuvou-o. E a licenciatura na FCT, da Nova, nasceu com uma característica especial: era uma licenciatura terminal, de dois anos, ou seja, quem se candidatava devia ter formação superior, pelo menos de três anos.
Pedro Guerreiro vinha de Engenharia Eletrotécnica do IST. “Foi uma decisão de um momento para o outro, candidatei-me. Quando entrei para o Técnico, em 1971 já havia cadeiras de programação. Fiz logo no 1.º ano, devo ter gostado. Programava-se na altura em Fortran. Havia um IBM 360, no IST, que era uma máquina poderosa na altura. Usávamos cartões... ainda se vê nos filmes de época os cartões que eram perfurados. Era assim que submetíamos os nossos programas.”
A ideia que se tinha então da informática, "era que servia para fazer cálculos científicos, calcular barragens e pontes, por exemplo". Ou então, "para os bancos, para as companhias de seguros e de viação, para gestão dos bilhetes e assim... eram estes os tipos de utilização dos computadores, e havia muitas empresas que precisavam de gente”. Daí os anúncios nos jornais a pedir funcionários.
Ninguém da família de Pedro Guerreiro estranhou por isso a escolha do jovem naquele “ano muito animado” de 1975. “Quando acabar isto vou para uma grande empresa de electricidade, ou de telecomunicações”, pensava. Mas depois de um estágio de fim de curso na TAP, acabou por ser convidado a ficar como professor na FCT onde durante os 30 anos seguintes deu aulas. “Os primeiros professores eram pessoas que não eram propriamente de informática. Trabalhavam com computadores”, recorda. Havia falta de diplomados para formar novos diplomados.
O retornado
Já José Alegria tinha em 1975 acabado de aterrar em Lisboa, vindo de Luanda, onde nascera e onde, desde os 16 anos, fazia programação — “O meu pai era director dos Caminhos de Ferro em Angola e eu aos 16 anos fiz um programa para simular a construção dos caminhos de ferro Luanda-Malange, duas vias, para testar qual era a linha com menos desgaste de ferro e a mais rápida”, recorda. Usou o computador dos Caminhos de Ferro. “Mas na Universidade de Luanda já havia um IBM 1130 que era um computador muito usado em laboratórios norte-americanos, que já tinha teclado com interface gráfica.” Foi, ainda muito jovem, instrutor da IBM em Angola.
Depois do 25 de Abril veio para Portugal, com um bacharelato em Electrotecnia recém concluído com 18 valores e candidatou-se à primeira turma de Informática da Nova. Ri-se a contar como foi: “No processo de selecção havia uma estratégia. Numerus clausus: 30 alunos, 10 de engenharia, 10 de economia, 10 de gestão, não sei quantos rapazes, não sei quantas raparigas. Também havia um militar, um da polícia, um da Marinha. Aquelas coisas do pós-25 de Abril... E eu entrei como o 31.º aluno porque vinha de Angola, era o retornado, e para além disso achavam que eu vinha da IBM e do MPLA e era giríssimo ter no curso alguém de Angola, do MPLA, da IBM. Quando percebi isso, na entrevista, não desmenti nada, apesar de já não ser nem da IBM nem do MPLA. Fui o retornado do curso.”
Uma vez inscrito, passou a usar o computador do LNEC. “Um Dec System 10, já com subsistema gráfico. De dia era usado pelos engenheiros, à noite deixavam-me ir. Eu era um miúdo. Também fazia coisas para eles. Chegava às nove da noite e saía às 5 da manhã. Conhecia a radionovela Maria porque passava na rádio à hora a que eu regressava a casa, no cacilheiro para a margem Sul onde morava, e as pessoas ouviam aquilo.”
No 2.º ano do curso, conta, já os restantes estudantes da turma iam para o LNEC à noite, também, usar o Dec System 10. “Metia-me com eles, roubava-lhes as passwords, entretinha-me a mandar-lhes mensagens a gozar: ‘O sistema vai fazer shutdown em 10 minutos’ e eles à pressa a fazer save dos programas...’.” O hacker, cá está.
“Trabalhávamos até de madrugada”, contra Pedro Guerreiro. “Hoje seria impensável deixar um grupo de alunos à noite, com todas as questões da segurança...”
“Sempre quis trabalhar com computadores”, prossegue Alegria. Diz que sempre achou que neles estava o futuro. Dois anos depois do curso foi para os Estados Unidos. Foi durante anos docente e investigador da The Ohio State University.
1400 diplomados
“O primeiro departamento académico, autónomo, de computing science, aparece nos EUA em meados dos anos 60”, nota Luís Caires, actual presidente do Departamento de Informática da FCT. Mas é natural, diz, que tenha levado tempo a acontecer em Portugal e aconteceu em ambiente revolucionário.
Das turmas inaugurais de Informática, da FCT, saíram pessoas que “estão nos mais diversos sectores”, como José Legatheaux Martins, aluno do segundo curso e que seria responsável pelo grupo de trabalho que ligou Portugal à Internet, prossegue Luís Caires. “Os primeiros doutoramentos de Informática também foram feitos aqui. Os primeiros computadores Macintosh (lançados em 1984) a chegar a Portugal também chegaram aqui. Foi há 30 anos e foram oferecidos pela Apple ao nosso Departamento, no âmbito de um projecto de investigação na área da inteligência artificial. Ainda me lembro de os ver quando aqui cheguei em 1986.”
Nos últimos dois anos, houve uma reestruturação profunda do curso. “E foi lançado um mestrado integrado” que aborda “uma série de áreas — jogos, análise de grandes volumes de dados, cloud computing, enfim, todas as matérias de que agora mais se fala” e que beneficiam da “capacidade da FCT gerar conhecimento” no seu NOVA Laboratory for Computer Science and Informatics, diz Luís Caires.
Os alunos de hoje, esses, têm um perfil bem diferente dos de há 40 anos. Desde logo, vêm directamente do ensino secundário. Mais de um terço têm 19 ou menos anos. A média de candidatura ronda os 14 valores. Querem essencialmente seguir uma carreira em empresas associadas a produtos informáticos e consultoras. “Temos alunos nossos a trabalhar na Google, na Microsoft, no Facebook, quer na Europa quer nos Estados Unidos”, orgulha-se Luís Caires.
Em 40 anos, o departamento produziu mais de 1400 graduados. A taxa de desemprego registado no Instituto de Emprego e Formação Profissional dos diplomados deste curso é de 2,4%.
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