Não falo, neste
momento, dos quatro morticínios de Mokumbura, largamente documentados pelos
corajosos padres de Burgos. Falarei mais adiante. Por ora, limito-me ao
episódio de Wiriyamu que tanto escandalizou a opinião pública mundial, em Julho
do passado ano (1973).
Wiriyamu é um outro
caso típico de morticínio premeditado e ordenado superiormente. Não é o mais
importante, nem sequer o mais recente; talvez seja apenas um dos mais documentados
e dos mais conhecidos. Saiu à ribalta das crónicas por circunstâncias
especiais, por ter sido explorado como chave política aquando da visita do
presidente do conselho português a Londres, por ocasião do aniversário da
pluri-secular aliança de Portugal com a Inglaterra.
A descrição do morticínio feita pelo padre
Adriano Hastings, no «Times», em Julho de 1973, não constituía sequer uma
novidade, porque eu próprio pelos serviços da «Cable Press» de Roma, traduzira
e fizera publicar o relato completo, em 4 de Junho precedente. Recebera-o de
Tete, por portas e travessas, no mês de Abril e traduzira-o imediatamente.
Servira-me em Kamen, na Alemanha, para desmascarar a duplicidade de Bonifácio
de Miranda que, numa reunião organizada pelo pastor luterano Lothar Kuhl, em 12
e 13 de Maio, sob o tema «Informação ou Manipulação» tentava, com a ajuda de
alguns jornalistas e operadores da televisão, influenciar a opinião pública da
Alemanha Federal, donde provinham para Portugal substanciais ajudas em vários
campos. Do mesmo relato e do de Mokumbura, me servi para a defesa do soldado
americano Larry Johnson (a tradução inglesa ficou nas actas do julgamento).
Este soldado negro rebelara-se porque lera na revista «Ebony» que os Estados
Unidos estavam implicados na repressão levada a cabo nas colónias portuguesas.10
O relato do
morticínio efectuado a 16 de Dezembro de 1972 foi estabelecido com base nos
testemunhos de alguns sobreviventes de Cahola e de Wiriyamu, escapados
miraculosamente à carnificina. Não interessa aqui dar a lista dos nomes nem os
pormenores horripilantes de algumas execuções; interessa muito mais revelar
quem foram os ordenadores do morticínio e a quem foram atribuídas as
responsabilidades. É quanto contém o documento n.° 506 do meu arquivo pessoal
do qual apenas referirei o conteúdo.
Em Setembro de 1972, a base aérea AB 7 de
Matundo (que é também aeroporto civil) fora atacada por elementos da FRELIMO
com alguns mísseis 122; acções de flagelação tinham sido feitas pêlos mesmo contra
a cidade de Tete em várias ocasiões. Nos princípios de Dezembro um destacamento
do exército caíra numa emboscada na zona de Wiriyamu, a vila que, com Chaola e
Juwáu opunha uma certa relutância à categoria de «aldeamento». (As três vilas
encontram-se a 25 quilómetros ao sul de Tete, no triângulo entre a estrada
internacional n.° 2, o Zambeze e o Luenha.) Aproximavam-se as festas do Natal
e fim do ano, a população de Tete estava muito inquieta e o mesmo sucedia com o pessoal de Cabora
Bassa que, por turnos, em helicóptero ia a Tete passar o fim-de-semana. Era
preciso, a todo o custo, aniquilar a acção dos guerrilheiros limpando a zona
da sua presença e das minas colocadas nas vias de comunicação, a começar nas
vilas renitentes à categoria de «aldeamento».
O comando da ZOT11
com o consentimento do governador (civil-militar) de Tete, o coronel
pára-quedista Martins Videira, deu ordem ao comandante da Base Aérea AB7 de
bombardear as três vilas. O comandante recusou-se, depois de ter sobrevoado em
helicóptero, repetidamente, as três vilas e ter verificado que eram vilas de
todo tradicionais (casas espaçosas com tectos cobertos de palha velha, em
espaços controláveis, e gado abundante) e não refúgios provisórios dos
guerrilheiros em contínuas deslocações. A ordem foi repetida e o comandante, em
16 de Dezembro, mandou, com relutância, três G Fiat 91 com ordens para os
pilotos bombardearem apenas as imediações das vilas. Os mortos nos
bombardeamentos foram pouquíssimos; mas os «comandos» da sexta companhia, com
oficiais europeus, acompanhados por elementos negros dos GE,12
vestidos de «comandos», transportados em cinco helicópteros cercaram as vilas
arrebanhando os fugitivos e liquidando-os inexoravelmente pelas várias formas
descritas no relato do morticínio.
Em Juwáu não houve sobreviventes. Em
Chaola escaparam seis quase por milagre, depois de serem gravemente feridos.
Foram: António Mixoni, de quinze anos, que reconheceu alguns dos autores do
morticínio e que viu cair a seu lado os pais, irmãs e irmãos; Serina Irisani,
Tembo e Podista que se encontravam no «aldeamento» de Mphádue; Manuel que se
encontrava algures no Zobué. Dos sobreviventes de Wiriyamu não posso dizer
quantos são nem onde estão, porque ainda correm sério perigo. Atrás deles, anda
ainda o chefe Wiriyamu de cujo povoado tomou o nome.
O relatório secreto do Padre
Sangalo, meu caríssimo amigo, faz notar várias coisas interessantes:
1. A ordem para
eliminar todos, repetida em voz alta pelo agente da DGS, Chico, até ao oficial
dos «comandos» que se inclinava para a clemência. Deixar sobreviventes era
muito perigoso. O mesmo Chico foi morto por uma granada, a 11 de Agosto de
1973, quando tomava banho em sua casa. Quem atirou a granada?
2. Parece que os
agentes da DGS eram todos africanos: os «comandos», pelo contrário, eram
prevalentemente africanos com oficiais brancos; de um deles (A) foi escutado
este comentário: «não há maior sadismo que este: obrigar os negros a espancar
os seus irmãos negros para se poder dizer que se batem entre eles».
3. Dois oficiais
portugueses pára-quedistas (B e C) que passaram nos lugares do morticínio
confirmaram-nos aos autores do relatório, acrescentando: «Já vimos muitas
carnificinas, mas nenhuma como esta. Nunca mais a poderemos esquecer.»
4. D e E que
encontraram alguns feridos em fuga, avisaram a autoridade administrativa que,
porém, não se quis interessar. Os feridos conseguem, no entanto, atingir o
hospital de Tete, onde foram tratados pelas Irmãs Marta, Milagros, Angélica e
Lúcia. Os médicos militares do hospital ficaram fortemente impressionados e
preocupados porque aqueles feridos poderiam ter criado problemas. De facto
criaram-nos.
5. António Mixoni,
logo depois de curado, foi recebido na missão de S. Pedro, a 3 quilómetros de
Tete, para que pudesse estudar. Tendo falado de mais, a DGS procurou-o. O padre
Sangalo conseguiu pô-lo a salvo (...) mas foi expulso de Moçambique repentinamente:
«Por ter subtraído à protecção da DGS um cidadão português». António Mixoni, ao
saber que era procurado, suplicou ao padre, tremendo de medo: «Não me mande
para a DGS, não quero morrer como morreram os meus pais; se me quer realmente
bem, não me faça uma coisa dessas».
6. Algumas pessoas
que conseguiram chegar ao lugar do morticínio alguns dias depois (F, G, H,
etc.) testemunharam que o cheiro dos cadáveres não completamente queimados era
insuportável e que o posto estava infestado de chacais e cães vadios.
7. O comunicado
oficial de guerra da operação de Wiriyamu, para justificar o número elevado de
mortos, falou de infiltração de uma centena de «turras» que, confundindo-se com
a população, tinham tornado necessário, para os eliminar, fazer algumas vítimas
entre os civis.
8. Depois do morticínio, as
outras vilas compreendidas no triângulo formado no cruzamento da estrada n.° 2
com o rio Luenha e com o Zambeze e deste com o Luenha tiveram a ordem de
«aldeamento». No «aldeamento» de Gama concentraram-se os habitantes de Rego,
Cebola e Raisse; no de Mphádue os de Guzinho, Malangwe, Gandali, Mikombo,
Nyanthumba, Capimbi, Nhauterre. O primeiro a 30 e o segundo a 4 quilómetros de
Tete. Muitos fugiram (calculam-se em cerca de 200), mas surpreendidos pela
tropa, foram eliminados pouco depois.
«Seja bem claro»
escreveu o padre Sangala em conclusão do seu relatório secreto «que a matar
estiveram por toda a parte os «comandos» e os africanos dos GE ou «flechas».
Os organizadores do morticínio, porém, foram os comandantes da ZOT com o
consentimento do governador de Tete. Este foi castigado por ter deixado
circular a notícia do morticínio e perdeu o seu posto para se juntar ao
comandante--chefe Kaúlza de Arriaga, chamado a Lisboa, pouco antes dele, por
não ter conseguido liquidar a guerrilha».
A carnificina de
Wiriyamu, Juwáu e Chaola, mais documentada que tantas outras pela experiência
(triste experiência) adquirida pêlos missionários e pela coragem que cada vez
mais vão conquistando, é um exemplo típico das responsabilidades graves do
exército de repressão. Que reservará ainda o sucessor de Kaúlza de Arriaga? A
sua fama não é certamente de clemência! Mas o sangue dos inocentes (foram mais
de cem as crianças ao longo de dez anos nas três vilas) recairá sobre os seus
assassinos!
In A Cruz e a Espada em
Moçambique(1974), de Cesare Bertulli, pág. 89 e seguintes
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