segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Uma revolução espiritual (i)

 

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Escrito por Mircea Eliade


«Dentro das linhas gerais da nossa ordem constitucional está este pensamento: juntar-se ao progresso económico indispensável a restauração e desenvolvimento de valores espirituais.

Durante longas décadas, que abrangem as primeiras do presente século [XX], o materialismo teórico ou prático pôs a política, a administração, a ciência, os inventos, a escola, a vida individual e colectiva preferentemente ao serviço das preocupações ligadas às riquezas e às sensações. Se não pôde eliminar toda a influência das preocupações que tradicionalmente prendiam a evolução do indivíduo, da família e da sociedade aos bens do espírito e à solidariedade de fins superiores, não foi porque não tendesse à sua destruição, hostilizando-as e desviando todas as atenções para o que exclusivamente se refere à existência física. Mostrou a experiência, dolorosamente, ser esse caminho o melhor para fazer surgir multidões de egoísmos mais fortes que a providência de governos normais, para desencadear lutas internas e externas, convulsões de violência nunca vista, que ameaçam sepultar os homens em nova barbaria.

(..) Temos de trabalhar e de favorecer a acção dos que trabalham para a justa compreensão da vida humana com os deveres, sentimentos e esperanças derivados dos seus fins superiores, com todas as forças de coesão e de progresso que nascem do sacrifício, da dedicação desinteressada, da fraternidade, da arte, da ciência, da moral, libertando-nos definitivamente duma filosofia materialista condenada pelos próprios males que desencadeou. É aí que está a verdade, o belo e o bem - vida do espírito. Não só isso: está aí a garantia suprema da ordem política, do equilíbrio social e do progresso digno deste nome» (26 de Maio de 1934).

«Não nos seduz nem satisfaz a riqueza, nem o luxo da técnica, nem a aparelhagem que diminua o homem, nem o delírio da mecânica, nem o colossal, o imenso, o único, a força bruta, se a asa do espírito os não toca e submete ao serviço de uma vida cada vez mais bela, mais elevada e nobre. Sem nos distrair da actividade que a todos proporcione maior porção de bens e com eles mais conforto material, o ideal é fugir ao materialismo do tempo: levar a ser mais fecundo o campo, sem emudecer nele as alegres canções das raparigas; tecer o algodão ou a lã no mais moderno tear, sem entrelaçar no fio o ódio das classes nem expulsar da oficina ou da fábrica o nosso velho espírito patriarcal.

Duma civilização que regressa cientificamente à selva separa-nos sem remissão o espiritualismo - fonte, alma, vida da nossa História. Fugimos a alimentar os pobres de ilusões, mas queremos a todo o transe preservar da onda que cresce no mundo a simplicidade da vida, a pureza dos costumes, a doçura dos sentimentos, o equilíbrio das relações sociais, esse ar familiar, modesto mas digno da vida portuguesa - e, através dessas conquistas ou reconquistas das nossas tradições, a paz social» (15 de Abril de 1937).

Oliveira Salazar


«Não podiam já ser disfarçados os sintomas de desagregação geral. Era exacerbado o descontentamento de todas as classes sociais. A grande burguesia, a alta finança, os homens de negócios, as pequenas e médias empresas, não confiavam nas instituições e nos políticos. Retraíam-se os investimentos; fechavam-se os circuitos económicos; e os capitais procuravam salvar-se na fuga para o estrangeiro. Estava também em crise a classe média. Multiplicavam-se as falências; a constante quebra da ordem pública e os assaltos a estabelecimentos constituíam pesadelo permanente; e a paralisia do comércio afectava todos os sectores. Clamavam de insatisfação o operário, o camponês, o modesto funcionalismo. Era generalizada a escassez de subsistências; subiam os preços; novas doutrinas sociais alimentavam a revolta dos espíritos; muitas indústrias limitavam a sua laboração a 2 ou 3 dias por semana; e a administração, de emperrada e inepta e corrupta, era impotente para resolver os problemas individuais e gerais. Parecia que se presenciava o desfazer de uma sociedade.

No plano político, estava desautorizado o parlamento. Além de morosos, dir-se-ia serem incompetentes os deputados; degradavam-se os debates até ao insulto pessoal, ao pugilato, ao bater das carteiras; e grupos revolucionários enchiam as galerias para coagir os representantes do povo. Em plena câmara, um deputado dizia para outro: «V. Ex.ª está a berrar mais do que eu!» Ramada Curto, espírito chistoso e bem-humorado, lançou um aparte expressivo aos colegas: «Os senhores não executam as partes cantantes. Fazem o acompanhamento! Aqui não se admite o rabecão grande. Acabou-se a brincadeira!». E noutro momento, numa síntese séria: «é necessário que se faça a urgente revisão da constituição para que se não continue na esterilidade que tem caracterizado estes 15 anos de República, que se não recomendam nem pela obra administrativa nem pela obra legislativa». Estavam desprestigiados os homens públicos. Era vasta a distância a que se encontravam, no plano moral e no plano intelectual, daqueles que haviam feito a República; e achavam-se continuamente envoltos em escândalos financeiros, caciquismo político, compadrios, ódios pessoais. E estavam desmanteladas as estruturas básicas da sociedade: a polícia, amedrontada; a imprensa, segundo Ribeiro de Carvalho, encontrava-se sujeita ao «regime vexatório de censura prévia e da apreensão»; e, pelo que respeitava à magistratura, afirmava Cunha Leal em Março de 1926 que «os juízes eram mortos a tiro e à bomba». E resumia: «a sociedade estava aterrada».

Na imagem: Oliveira Salazar, Gomes da Costa e Óscar Carmona em primeiro plano, da esquerda para a direita.

Reflectia-se muito particularmente no Exército a situação crítica. Sinel de Cordes, vulto prestigioso, em sucessivos artigos no Século analisava o estado de carência das instituições militares. Nestas, grassava a indisciplina, a impreparação, o aviltamento, a miséria do material e do pessoal. Jorge Botelho Moniz escrevia um volume documentando as acusações. Mas o ponto alto dos clamores do Exército foi atingido pelo discurso que Gomes da Costa proferiu perante Vieira da Rocha, ministro da Guerra, no acto de posse deste. Começou o antigo comandante do CEP por dizer: «Impõe-me a minha graduação o dever de dirigir a V. Ex.ª algumas palavras em nome dos oficiais aqui presentes e se presume representarem todo o Exército. Não tendo, porém, conversado previamente com eles eu desconheço o que eles pensam acerca desta convocação que a repartição do gabinete se não esquece de fazer sempre que um novo ministro toma posse do cargo e que pela sua frequência e imposição não tem outro significado mais que o simples cumprimento duma ordem banal. Creio bem que, por isso mesmo, deve V. Ex.ª, que sempre tem sido um soldado, sentir como todos nós a inutilidade e até mesmo o ridículo de uma cerimónia que só se justificaria pelo entusiasmo suscitado após um alto feito militar, mas que em circunstâncias normais tão vexatória é para V. Ex.ª como para nós». Ao sarcasmo fez Gomes da Costa seguir a dureza. «V. Ex.ª, que não é a primeira vez que exerce o cargo de ministro da Guerra, deve saber do miserável estado do Exército, desprovido de organização, desprovido de instrução, desprovido de material, absolutamente incapaz de oferecer uma resistência séria». E continuava cauterizando a ferida: «Poderá parecer estranho que tendo nós recebido ordem para apresentar cumprimentos a V. Ex.ª, cumprimentos que a tradição impôs como afirmação de passividade imbecil e conformação com o estado de inércia mental a que nos têm reduzido, eu quebre essa norma chamando a atenção de V. Ex.ª para a falta de preparação militar do país; mas, senhor ministro, eu entendo que o meu dever como soldado, que me orgulho de o ser, consiste precisamente em dizer o que penso, para que ao derrocar-se esta nacionalidade se não diga que tendo uma oportunidade de chamar a atenção do governo para a miséria militar da Nação eu a deixei escapar por comodidade ou cobardia». E, clamando por reformas, concluía lançando ao ministro um repto: «Tem V. Ex.ª o coração colocado bem no seu lugar e de forma a poder encarregar-se dum tal papel? É o que resta ver»».

Franco Nogueira («Salazar» I).


Uma revolução espiritual

"O mal vem de longe!..." teria podido dizer Salazar, exactamente como tinha exclamado outrora Dom Carlos. Mas era um mal que, pelo menos, já não exercia qualquer fascinação. Oitenta anos de liberalismo e vinte anos de demagogia republicana promoveram uma série de conceitos e criaram uma porção de instituições que, pela sua simples duração, tinham esgotado a própria essência e tinham gasto o seu prestígio. O movimento de 28 de Maio, assim como a investidura de Salazar com poderes ditatoriais, foram revoluções acontecidas depois de quase todas as formas históricas geradas pelo liberalismo e pelo republicanismo se acharem esvaziadas.("Quase todas", porque a última etapa, o comunismo, não se tinha conseguido realizar em Portugal). A felicidade de Salazar foi ter sido chamado bastante tarde para o governo, depois de todas as ideologias do século XIX haverem tido tempo bastante para dar os seus frutos, depois de o ciclo demoliberal quase ter chegado ao fim das suas últimas etapas.

O momento era propício para uma reintegração da política portuguesa no espírito da sua tradição e da sua história. Naturalmente, para as pessoas da extrema esquerda, o momento era também propício para integrar a política portuguesa noutro ciclo, supra-histórico, e não há dúvida que, se não tivesse acontecido o movimento de 28 de Maio e não tivesse aparecido Salazar, Portugal teria conhecido - com resultados e duração imprevisíveis - uma revolução comunista. Era a consequência lógica, necessária, da revolução começada no século XIX - e que se tinha desenvolvido numa contínua oposição em relação às instituições tradicionais. A revolução comunista que se teria seguido, sem dúvida, à anarquia demagógica do regime de António Maria da Silva, não teria sido outra coisa senão uma forma apocalíptica do processo de europeização a qualquer preço e de deslusitanização de Portugal, ideal sonhado pela geração de Coimbra e por todos os líderes da vida pública dos últimos anos de monarquia.

Como Salazar era católico e nacionalista, e como o movimento de 28 de Maio foi, pela sua essência, um movimento de resistência nacional - o momento histórico só podia conduzir à reintegração da política portuguesa na linha da tradição. Isto significava, naturalmente, não só uma oposição firme em relação ao comunismo - mas, especialmente, uma acção de eliminação gradual mas eficaz das últimas formas que sobreviviam, fossilizadas ou degeneradas, do espírito demoliberal. Falando em 28 de Abril de 1934 sobre o "espírito da revolução", Salazar confessou aquilo que poderia ser encontrado implícito já nas suas primeiras reformas económicas e sociais: "A ditadura nacional, atacando pela base todos os elementos doutrinários de desagregação e criando o equilíbrio financeiro que tem de estar nos fundamentos da restauração geral, veio dar condições de um amplo desenvolvimento do espírito inerente da tradição, que fez Portugal nascer, crescer, brilhar e tem a virtude de lhe dar solidez e perpetuidade". E mais adiante fala sobre a continuação da tradição histórica e sobre o novo vigor que devia insuflar às ideias e às instituições que estão nas suas bases ancestrais. Eis a revolução que se tinha proposto o movimento de 28 de Maio.

Na imagem: o Presidente-Rei Sidónio Pais.

Revolução, evidentemente, difícil de realizar. E isso devido não tanto aos elementos de oposição demoliberais e de extrema esquerda - na sua maioria comprometidos com os governos anteriores - mas especialmente aos elementos de direita, a saber, os grupos monárquicos. O paradoxo da ditadura militar era ter realizado uma revolução "reaccionária", suspendendo a Constituição republicana e anulando todas as liberdades e costumes instaurados pela República . permanecendo porém republicana. Nesta situação paradoxal encontrava-se também Salazar, começando a sua obra de restauração do espírito eminente da tradição portuguesa. Exactamente a mesma restauração tinha sido reivindicada pelo movimento integralista também, restauração esta que culminaria com a abolição da república e o regresso à monarquia. Salazar era forçado, para a realização da revolução nacional, a usar as ideias-força do integralismo, sem aderir, porém, àquela fórmula do monarquismo lusitano. "Era forçado" é, naturalmente, um modo de falar. Salazar não precisou directamente das concepções integralistas; pois tinha chegado às mesmas conclusões que António Sardinha, excepto quanto à necessidade absoluta da restauração da monarquia. A reacção contra o espírito demoliberal não começou em Portugal com Salazar, nem com o movimento de 28 de Maio. Como já vimos, só alguns anos depois da instauração da república a oposição moral e política contra o novo regime começou a manifestar-se. A diferença entre o movimento de 28 de Maio e as tentativas anteriores de derrubar o regime, é que o movimento de 28 de Maio saiu vencedor, enquanto todas as outras tentativas falharam ou se mantiveram no poder de modo efémero (o caso de Sidónio Pais). A diferença entre Salazar e todos aqueles que o antecederam, na crítica das instituições demoliberais, foi que só Salazar teve a oportunidade de realizar as suas ideias sociais e políticas. Como orientação ideológica geral, ele encontrava-se ao lado de tantos "reaccionários" que tinham criticado o espírito das instituições demoliberais.

A revolução que Salazar visava não se podia realizar com homens dos grupos monárquicos, a não ser na medida em que estes renunciassem a considerar-se homens pertencentes a um certo agrupamento. Por outras palavras, Salazar aplica, no governo e em benefício do movimento de 28 de Maio, aquilo a que se tinha proposto alguns anos antes no Congresso do Centro Católico, dirigindo-se aos monárquicos, em benefício do Centro. Nem podia ser de outra maneira. Se não podia colaborar com os homens do velho regime porque os separavam abismos ideológicos - não podia, por outro lado, colaborar com os nacionalistas monárquicos como tais, porque isso implicaria pôr em perigo a unidade da nação. Os monárquicos constitucionalistas ou integralistas eram, ou tendiam a ser, partidos - e Salazar não permitia que se dividisse novamente a família portuguesa. O seu instinto político advertia-o, desta vez também, que uma colaboração com os elementos dos partidos de direita,
constitucionalistas ou integralistas - com os quais tinha tantos pontos ideológicos comuns - teria comprometido desde o início a vitória de uma revolução autoritária. E deste modo partiu sozinho, tendo somente o apoio do exército e a confiança na fertilidade política da revolução que tinha inaugurado em 28 de Maio. Consciente de que o momento histórico que Portugal estava a viver lhe permitia uma transformação radical dos seus hábitos e das suas instituições sociais e políticas - Salazar pereparava as etapas necessárias a esta transformação sem apelar aos partidos que a tinham previsto, a tinham antecipado e tinham construído os seus programas baseados nesta transformação integral da vida portuguesa. Individualmente, aceitava e mesmo encorajava a colaboração de qualquer membro destes grupos, mas não aceitava o grupo, não aceitava o passado de um colectivo político qualquer que fosse. Naturalmente, além desta razão profunda, Salazar tinha outros motivos mais para evitar a colaboração com os grupos que o tinham precedido ideologicamente. Não queria, por um lado, assumir os seus erros políticos, as suas paixões pessoais, as antipatias partidárias. E, por outro lado, esperava absorver-lhes os elementos valiosos, esgotando-lhes desta maneira a substância espiritual, anulando-os. Tomava, talvez, as suas medidas de precaução também contra uma oposição por parte da direita nacionalista-monárquica.

Paradoxal à primeira vista, a atitude de Salazar de não cooperar com os grupos que tinham elaborado programas similares de reintegração de Portugal na linha do seu destino histórico, era, porém, uma atitude normal. Salazar queria fazer realmente uma revolução, e como tal devia começar as coisas desde o início. Os apoiantes do velho regime e seus adversários - eram todos homens velhos. Tinham tomado uma atitude em relação a um estado de coisas que agora estava em dissolução. Pró ou contra - eram, porém, ligados entre eles, por paixões, por uma conformação mental similar, por um passado comum. Essas pessoas tinham vivido; revolucionários ou contra-revolucionários, mas tinham vivido, tinham-se cristalizado numa certa estrutura, guardavam na sua alma, na sua atitude, na sua linguagem, a marca de uma época que devia ser ultrapassada a qualquer preço. Individualmente, eram pessoas de valor, que o regime dificilmente podia dispensar. Era necessário, então, serem aproveitadas e usadas. Nunca como membros de um grupo político, mas como pessoas, pessoas que deviam ser educadas no espírito da nova revolução, libertas da sua primeira formação política, integradas numa nação histórica, e não numa classe ou num partido.

Era este o problema político da revolução nacional, um processo complexo de reintegração - do indivíduo na sua unidade social, do colectivo no seu destino histórico, do espírito no seu campo próprio de manifestação. Mas isso significava fazer política, e Salazar sentia de modo tão imperioso a necessidade de esclarecer os seus colaboradores e chefes de exército para a obrigatoriedade de fazer política, que, poucas semanas depois do discurso da Sala do Risco, falou novamente, a 30 de Julho de 1930, perante os membros do Governo e os representantes de todos os distritos do País, sobre "Princípios Fundamentais da Revolução Política". O processo de reintegração acima mencionado não podia ser cumprido de um dia para o outro. Ninguém melhor que Salazar se dava conta da fatal obsolescência de uma revolução apressada e formal. Ele via, porém, sempre mais à frente, sabia o que queria e para onde ia, intuía as necessidades do momento histórico, e se nem sempre se antecipava, deixando que as realidades se tornassem evidentes para todos, nunca se cansava de as ajudar no seu processo de manifestação. Mas tudo isso era válido somente sob uma condição: que o movimento de 28 de Maio se tornasse uma revolução nacional. "Reduzir, como se tem visto, o movimento que implantou a Ditadura a uma "consideração de caserna" para que a classe militar viesse a usufruir o Poder é desconhecer as razões profundas do mal-estar geral, as tendências do nosso tempo, todas as fraquezas, abdicações, insuficiências do poder público, que estão na base daquilo a que pode chamar-se a crise do Estado moderno". Uma nova ordem está em curso em todo o mundo. Para Portugal, os princípios fundamentais da nova ordem são: a nação; o estado, que deve ser tão forte que não mais precise de ser violento; o poder executivo, exercido pelo chefe do Estado, com os ministros nomeados livremente por ele e sem depender de qualquer indicação parlamentar; e, a família, a verdadeira unidade orgânica. "O liberalismo político do século XIX criou-nos "o cidadão", indivíduo desmembrado da família, da classe, da profissão, do meio cultural, da agremiação económica, e deu-lhe, para que o exercesse facultativamente, o direito de intervir na constituição do Estado". Mas esse "cidadão" é uma abstracção. A verdadeira realidade é a família, "célula social irredutível, núcleo originário da vila, do município e, portanto, da Nação". O indivíduo valoriza-se e é criador no quadro da família e da associação profissional. "Mais uma vez se abandona uma ficção - o partido -, para aproveitar uma realidade - a associação". Pela primeira vez desde que se lhe confiou o Ministério das Finanças, Salazar falou sobre corporações, confessando desta forma a consistência do seu pensamento político, pois, como já vimos, em várias conferências feitas nos círculos católicos, Salazar tinha afirmado muitos anos antes a necessidade de construir um Estado social e corporativo em estreita correspondência com a constituição natural da sociedade. As famílias, as freguesias, os municípios, as corporações onde se encontram todos os cidadãos, com as suas liberdades jurídicas fundamentais, são os organismos componentes da Nação, e devem ter, como tais, intervenção directa na constituição dos corpos supremos do Estado: eis uma expressão, mais fiel que qualquer outra, do sistema representativo".

Esta é a primeira formulação dos princípios que ficarão na base da nova Constituição portuguesa, de 1933. Princípios, como se pode ver, revolucionários, porque não tomam em consideração qualquer dos conceitos políticos e morais do antigo regime: cidadão, liberdade, partido, parlamentarismo, etc. "Nós aprendemos pelo raciocínio e vimos pela experiência que não é possível erguer sobre este conceito - a liberdade - um sistema político que efectivamente garanta as legítimas liberdades individuais e colectivas, antes em seu nome se puderam defender - e com alguma lógica, Senhores! - todas as opressões e todos os despotismos. Nós temos visto que a adulação das massas pelas criação do "povo soberano" não deu ao povo, como agregado nacional, nem influência na marcha dos negócios públicos, nem aquilo de que o povo mais precisa - soberano ou não - que é ser bem governado". (...) "Ora nós queremos ser mais positivos - tanto é, mais verdadeiros na nossa política". Mais verdadeiros, ou seja, mais pertos das realidades da vida social, desembaraçados dos mitos demoliberais, libertados dos sistemas politicos criados em cima do nada e construídos sobre abstracções. Mas isso só se pode cumprir tendo o poder, mantendo-o e usando-o com sabedoria como o único instrumento da revolução nacional. "Arrancar o poder às clientelas partidárias; sobrepor a todos os interesses o interesse de todos - o interesse nacional; tornar o Estado inacessível à conquista de minorias audaciosas, mas mantê-lo em permanente contacto com as necessidades e aspirações do País; organizar a Nação, de alto a baixo, com as diferentes manifestações da vida colectiva, desde a família aos corpos administrativos e às corporações morais e económicas, e integrar este todo no Estado, que será assim a sua expressão viva - isto é dar realidade à soberania nacional".

Todas estas coisas ficariam mortas se não correspondessem a uma necessidade histórica e se não fossem vividas por aqueles que participaram na criação da nova ordem. Não é suficiente serem aceites pela nossa inteligência, dizia Salazar, mas devem ser "sentidas, vividas, executadas". Agir politicamente significa, para Salazar, viver conscientemente e executar as indicações do momento histórico. Mas a adesão a este momento histórico não pode ser somente intelectual: para frutificar, é necessário uma participação total do ser humano. Dificilmente se poderia construir alguma coisa sem "uma revolução mental e moral que aconteça aos portugueses de hoje, e sem uma atenta preparação das gerações de amanhã".

Na imagem: Salazar com um grupo de banqueiros por ocasião da assinatura do contrato de consolidação da dívida flutuante.

Nestes dois desideratos - a revolução mental e moral dos contemporâneos, a preparação das jovens gerações - encontram-se formuladas as condições do sucesso da revolução salazarista. Em que podia basear-se para as pôr em prática? De maneira nenhuma no exército, cuja missão era garantir a ordem interna e a continuidade do regime. Salazar também não podia esperar algo de efectivo por parte do pessoal dos antigos partidos políticos. A sua conversão à revolução nacional era possível, e mesmo desejada, mas o número dos realmente convertidos só podia ser muito modesto. Ao refundar a vida pública portuguesa, Salazar esperava ver juntar-se a ele homens novos, homens que até aí não tinham tido a ocasião de confessar a sua vontade de participar da história. Uma massa considerável, representando até há pouco tempo a maioria amorfa do País, vivendo à margem da vida política, aceitando as reformas e as contra-reformas com a mesma indiferença e passividade - podia transformar-se no mais autêntico exército revolucionário. Ela devia, porém, ser ajudada a dizer a sua palavra. Pois, desde a primeira constituição liberal de Portugal, essa massa tinha-se mantido à margem da história. A história recente de Portugal fora feita por certos grupos políticos e intelectuais, nutridos por ideais estrangeiros obcecados por transformações quiméricas. Desde que um punhado de doutrinadores e revolucionários portugueses tinham decidido a homogeneização de Portugal, a maioria do povo tinha-se contentado em suportar as suas experiências, os seus êxtases. Portugal tornou-se uma monarquia constitucional, tornou-se depois república, e poderia ter-se tornado república soviética, sem que essa massa amorfa soubesse e participasse em qualquer dessas revoluções. Há um século, a história tinha sido confiscada por um punhado de pessoas que queriam a qualquer preço ser diferentes do que eram. Salazar - como antes dele os integralistas - deu conta da esterilidade dessa imitação. "Cada vez que intentámos ser nós, e não outros, fomos construtivos e criadores, não só dentro das fronteiras, mas no mundo", confessou ele mais tarde (27 de Abril de 1935). Essa imitação não só tinha esterilizado o génio criativo português, mas manteve à margem da história quase toda a totalidade da Nação. Voltando agora às origens, restaurando as instituições tradicionais, criadas e validadas por oito séculos de história - Salazar esperava que a nação inteira pudesse mostrar a cara e pudesse manifestar a sua vontade na vida pública (in «Salazar sem Máscaras», Nova Arrancada, 1998, pp. 161-166).

Continua

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