quinta-feira, 1 de novembro de 2012

“Mia Couto em combate”

 

“Mia Couto em combate”
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– Por Schneider Carpeggiani –
Meu primeiro – e único – encontro com Mia Couto aconteceu numa sala minúscula, totalmente despida de qualquer exagero: apenas duas cadeiras, uma mesa e, se não me engano, uma garrafa de água mineral. Ele vestia uma camisa polo branca e parecia, ainda mais, o médico que um dia fora. Isso foi há 8 ou 7 anos, durante um evento literário em Fortaleza. Depois de passar quase três dias perseguindo assessores em busca de uma entrevista com o escritor, consegui 10 minutos no cubículo que o quatro estrelas cearense apelidava de sala de imprensa.
Eu preciso começar falando da “nudez” excessiva dessa sala, porque Mia Couto para mim sempre havia sido riqueza de linguagem, profusão de elementos em contrastes e uma prosa tão rica em seus labirintos que, por pouco, não nos tirava o ar por completo. Nunca o imaginara tendo apenas como pano de fundo uma parede bege e um litro de água mineral. O enorme contraste entre o que estava à minha frente e o que havia lido era quase uma obra de ficção por si só. Naquele momento estava ainda sob o efeito da leitura de Terra sonâmbula, sua obra em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o livro-pesadelo desperto sobre o horror moçambicano perante uma guerra que, de certa forma, preencheu parte da sua identidade.
Terra sonâmbula é uma declaração sobre perdas, danos e (novas) caminhadas e também uma boa síntese do que entendemos por literatura: a linguagem como elemento de entendimento e apreensão da vida. O escritor precisa encontrar sua linguagem; o escritor de uma Nação em ruínas precisa assassinar a linguagem antes de começar algum admirável novo mundo. Terra sonâmbula não é pacífico: suas palavras estão em guerrilha.
“Mas guerrilha seria a função do escritor africano, após décadas de guerra marcando a história recente do continente?” – Foi mais ou menos assim minha primeira pergunta para Mia Couto, primeira pergunta e também um primeiro engano movido pelas generalizações típicas do jornalismo. “Não gosto da expressão ‘escritor africano’. Não existe uma África apenas, existem várias, vários países, várias culturas… Meu continente está criando ainda uma identidade, são nações recentes. Como escritor moçambicano, e esse é o lugar de onde posso falar, minha função é também escrever a história do meu país”, respondeu, demarcando a função da sua escrita.
Naqueles 10 minutos e naquele cubículo bege, Mia Couto elaborou melhor lição sobre o que implica essa gasta contradição ambulante que é a expressão “realismo mágico”. Ele se sentiria próximo do universo mítico criado por nomes como o colombiano Gabriel García Márquez? “Mágico não é uma palavra de literatura para mim; mas é a forma como o meu povo muitas vezes vê a realidade ao seu redor. O sobrenatural faz parte do nosso cotidiano, não é estranho”.
O sobrenatural como parte do dia a dia – Essa sua perspectiva nos faz entender o porquê da linguagem de Terra sonâmbula, apesar dos neologismos e do forte teor poético para nomear cada coisa, nos assombrar pouco (nos maravilhar seria o termo mais adequado aqui). Aquela história não podia ser contada de outra forma. O caos só é compreendido a partir dos seus elementos próprios. O genocídio típico de uma guerra é sobrenatural para quem está no campo de batalha, seja em combate ou em fuga. Todos estão igualmente expatriados. São refugiados da vida, vivem em condição sobrenatural sobre um solo (pátrio) que não consegue se definir. A batalha, seja lá qual for, é um realismo mágico por excelência.
Mia Couto chega à Fliporto 2012 num momento especial: seu último livro lançado no Brasil, os contos de Estórias abensonhadas (Companhia das Letras) é uma espécie de continuação fragmentária (e não poderia ser de outra forma) de Terra sonâmbula. Seus textos são o “depois”, a etapa de reconstrução após 16 anos de uma guerra civil que só teve fim em 1992, com a assinatura de um acordo de paz. Mas a palavra “fim” aqui merece aspas, porque nenhuma reconstrução é pacífica. Não há reconstrução sem algum trauma em perspectiva. O escritor define essa obra como um apanhado de textos que querem se “fingir de verdade”. Ele sabe que a literatura, assim como a vida, é encenação.
Continuamente encenamos uma necessidade de prosseguir, apesar da força destrutiva que nos fez ir até àquele ponto, como se essa força não existisse mais, como se houvesse sido extinta por um acordo de paz burocrático, pela “mágica” de um acordo de paz burocrático. Mas é justamente por conta de um “apesar” que prosseguimos. Encenamos a paz, porque reconstruir é uma estratégia de guerrilha. A paz é a ficção por excelência.
Cada palavra em cada um dos textos de Estórias abensonhadas é inserida para encenar uma etapa de reconstrução, negando o passado, mas dependendo dele como uma muleta, a “terceira perna” de que nos fala Clarice Lispector em A paixão segundo G.H., que nos mantém em pé, mas nos aprisiona. Lembro em particular de uma frase do conto “O cachimbo de Felizbento”, espécie de síntese “teórica” do que Mia Couto procura em sua literatura: “Toda a verdade aspira ser estória. Os factos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na mentira do encantamento a verdade se casa à estória. O que aqui vou relatar se passou em terra sossegada, dessa que recebe mais domingos que dias de semana”. É nessa terra (artificialmente) sossegada que o escritor arma seu campo de batalha.
Leia um trecho de Estórias abensonhadas. Clique aqui!

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