Escrito por Miguel Bruno Duarte
IntroduçãoOs trechos que doravante publicaremos encontram-se reunidos na obra Juízo Final, de Alberto Franco Nogueira. Consistem, mais particularmente, em excertos resumidos de várias entrevistas feitas por diferentes entrevistadores ao autor no exílio, o qual, tendo sido, ademais, um notável diplomata no consulado de Oliveira Salazar, foi talvez um dos poucos portugueses a poder formar uma perspectiva tão consciente quão fidedigna da problemática jurídico-política que Portugal enfrentara entre a crise da Índia e a revolução comuno-socialista de 74. São, pois, trechos marcantes para a compreensão não só dos tempos da campanha das Nações Unidas contra a política ultramarina portuguesa, mas também e, sobretudo, para um entendimento mais claro e consciente da maré socialista e socializante que marcou e continua marcando a actualidade económica, política e cultural dos Portugueses.
De facto, a visão de Franco Nogueira sobre Portugal e o mundo muito devia, como afirma Jaime Nogueira Pinto, ao nacionalismo romântico e mítico do século XIX («O que fica e o que muda», in Juízo Final, Livraria Civilização Editora, 2000). Daí a sua percepção do primado do Estado Nacional português sobre a Realpolitik na ordem internacionalista ontem como hoje triunfante. Percepção essa, aliás, tão menos atendida e compreendida quanto maior tem sido o silêncio psicologicamente assente no processo cultural, a um tempo universitário e gramsciano, de total branqueamento ante aquela que foi, para todos os efeitos, a premeditada ofensiva mundialista contra o Portugal multirracial e pluri-continental de sempre.
Mas olhemos, a título de exemplo, pela janela que Franco Nogueira nos proporciona:
«Entretanto, em Nova Iorque, na segunda quinzena de Julho de 1963 efectua-se a reunião do Conselho de Segurança, imposta pela Organização da Unidade Africana. Esta escolhe quatro países para a representar: Tunísia, Libéria, Serra Leoa, Madagáscar. Por sua vez, os governos destes quatro estados fazem-se representar nos debates em Conselho pelos seus ministros dos Estrangeiros; e Portugal também. Pelos afro-asiáticos, é criada, em torno da sessão do Conselho, uma atmosfera de expectativa, de gravidade, de nervosismo, de drama: afluem jornalistas e operadores de cinema africanos e do bloco comunista, transborda a sala do Conselho de delegações afro-asiáticas e latino-americanas, e estão repletas as galerias do público: e todos se diriam preparados para assistir a um acontecimento que marque o desabar de uma época. Pelo secretariado da ONU, foram poderosamente reforçadas as medidas de segurança, e os seus guardas privativos patrulham os corredores. Oferece o Conselho o espectáculo dos dias memoráveis (1). Abrem os debates com violência maior que a do uso. Cabe a presidência, por rotação, ao delegado marroquino, e o delegado do Ghana dirige-se-lhe, marcando o tom moral e político em que os africanos querem manter a reunião: «V. Ex.ª está a presidir à liquidação do Império Português. A África espera que cumpra o seu dever». Depois, durante uma semana, são trocados entre os ministros africanos e o de Portugal os mais ásperos argumentos. Para os delegados de África, a política portuguesa é de agressão, de genocídio, de afronta à Carta da ONU, de ameaça à paz do mundo, e constitui já um estado de agressão e de guerra. Portugal tem de conceder de pronto a independência aos seus territórios ultramarinos. Replica com extrema aspereza de linguagem o delegado português: não existem as condições que se alegam; todos os factos citados são falsos; tudo quanto se tem passado é preparado, instigado, sustentado e apoiado de fora; é absurdo falar de ameaça à paz do mundo, ou de um estado de guerra; e quem viola a Carta são os países africanos. De um lado e outro, são lançados ao debate todos os pormenores: como foi bombardeada uma aldeia senegalesa; como data de 1613 a designação de províncias ultramarinas dada aos territórios portugueses; quem vota nas eleições portuguesas; quantos representantes tem o Ultramar nos orgãos centrais de administração e de governo. Em final de debate, e como acto espectacular de política, Portugal convida os quatro ministros dos Estrangeiros africanos para visitarem imediatamente Angola e Moçambique, com liberdade total de movimentos. De permeio, intervêm também membros efectivos do Conselho. Por parte da União Soviética, os ataques incidem na NATO e no Mercado Comum; a França, a Inglaterra, os Estados Unidos pronunciam-se em favor da autodeterminação, mas contra quaisquer medidas radicais ou precipitadas. É particularmente favorável o delegado francês: declara que Portugal não constitui ameaça à paz. Condenam a política portuguesa os demais membros do Conselho: é arrogante a Noruega, que dá conselhos e promete subsídios se Portugal abandonar África; é branda a Venezuela; é corajosa a China, que aplaude a política multirracial portuguesa; são agressivas as Filipinas, que acusam de racismo a política portuguesa; é de extrema violência o Ghana, que usa palavras de guerra; e o Brasil pratica uma demagogia fácil contra Portugal. Mas através de tudo sabe-se que em causa está um ponto, e um ponto só: vota o Conselho sanções contra Portugal ou não? Neste particular, os três membros ocidentais – Estados Unidos, França e Inglaterra – são categóricos e não ocultam que oporiam o seu veto a qualquer resolução que tentasse aplicar a Portugal sanções políticas, económicas, ou outras. Está assim bem marcado o limite da política consentida aos afro-asiáticos. E em 31 de Julho de 1963 é posto à votação um projecto de resolução apresentado pelo Ghana: confirma resoluções anteriores contra Portugal; deplora a atitude do governo de Lisboa; verifica que a situação nos territórios portugueses constitui ameaça à paz e à segurança em África; convida Portugal a reconhecer o direito à independência, a retirar as forças militares, a promulgar uma amnistia política e permitir em África o funcionamento de partidos políticos, a empreender negociações com os representantes desses partidos tanto no interior como no exterior, e a conceder imediatamente a independência; e pede a todos os Estados membros da ONU que cessem qualquer ajuda ao governo português, designadamente de natureza militar. Estados Unidos, Inglaterra e França abstêm-se na votação, e os demais países votam afirmativamente: o texto transforma-se em resolução do Conselho de Segurança (2). Declara o delegado português: «Pura e simplesmente, rejeito esta resolução: é um texto moralmente errado: e o que está moralmente errado não pode estar politicamente certo»» (in Salazar, Livraria Civilização Editora, 1984, Vol. V, pp. 501-503).
(1) São nesta altura membros do Conselho, além dos cinco permanentes (Estados Unidos, França, Inglaterra, China e Rússia), os seguintes países: Marrocos, Ghana, Filipinas, Venezuela, Noruega e Brasil. A Organização da Unidade Africana também solicitara, para data ulterior, uma reunião do Conselho contra a África do Sul, por causa da política de apartheid. O governo sul-africano declinou participar. O facto de o governo de Lisboa se ter antecipado a aceitar a participação nos debates causou boa impressão nos africanos moderados e desarmou os extremistas. Tunísia, Libéria, Serra Leoa, Madagáscar e Portugal, não sendo membros do Conselho, participavam como convidados. Tinham liberdade absoluta de debate e intervenção, mas sem direito a voto, como é óbvio.
(2) Esta resolução recebeu o n.º S/5380.
Continua
IntroduçãoOs trechos que doravante publicaremos encontram-se reunidos na obra Juízo Final, de Alberto Franco Nogueira. Consistem, mais particularmente, em excertos resumidos de várias entrevistas feitas por diferentes entrevistadores ao autor no exílio, o qual, tendo sido, ademais, um notável diplomata no consulado de Oliveira Salazar, foi talvez um dos poucos portugueses a poder formar uma perspectiva tão consciente quão fidedigna da problemática jurídico-política que Portugal enfrentara entre a crise da Índia e a revolução comuno-socialista de 74. São, pois, trechos marcantes para a compreensão não só dos tempos da campanha das Nações Unidas contra a política ultramarina portuguesa, mas também e, sobretudo, para um entendimento mais claro e consciente da maré socialista e socializante que marcou e continua marcando a actualidade económica, política e cultural dos Portugueses.
De facto, a visão de Franco Nogueira sobre Portugal e o mundo muito devia, como afirma Jaime Nogueira Pinto, ao nacionalismo romântico e mítico do século XIX («O que fica e o que muda», in Juízo Final, Livraria Civilização Editora, 2000). Daí a sua percepção do primado do Estado Nacional português sobre a Realpolitik na ordem internacionalista ontem como hoje triunfante. Percepção essa, aliás, tão menos atendida e compreendida quanto maior tem sido o silêncio psicologicamente assente no processo cultural, a um tempo universitário e gramsciano, de total branqueamento ante aquela que foi, para todos os efeitos, a premeditada ofensiva mundialista contra o Portugal multirracial e pluri-continental de sempre.
Mas olhemos, a título de exemplo, pela janela que Franco Nogueira nos proporciona:
«Entretanto, em Nova Iorque, na segunda quinzena de Julho de 1963 efectua-se a reunião do Conselho de Segurança, imposta pela Organização da Unidade Africana. Esta escolhe quatro países para a representar: Tunísia, Libéria, Serra Leoa, Madagáscar. Por sua vez, os governos destes quatro estados fazem-se representar nos debates em Conselho pelos seus ministros dos Estrangeiros; e Portugal também. Pelos afro-asiáticos, é criada, em torno da sessão do Conselho, uma atmosfera de expectativa, de gravidade, de nervosismo, de drama: afluem jornalistas e operadores de cinema africanos e do bloco comunista, transborda a sala do Conselho de delegações afro-asiáticas e latino-americanas, e estão repletas as galerias do público: e todos se diriam preparados para assistir a um acontecimento que marque o desabar de uma época. Pelo secretariado da ONU, foram poderosamente reforçadas as medidas de segurança, e os seus guardas privativos patrulham os corredores. Oferece o Conselho o espectáculo dos dias memoráveis (1). Abrem os debates com violência maior que a do uso. Cabe a presidência, por rotação, ao delegado marroquino, e o delegado do Ghana dirige-se-lhe, marcando o tom moral e político em que os africanos querem manter a reunião: «V. Ex.ª está a presidir à liquidação do Império Português. A África espera que cumpra o seu dever». Depois, durante uma semana, são trocados entre os ministros africanos e o de Portugal os mais ásperos argumentos. Para os delegados de África, a política portuguesa é de agressão, de genocídio, de afronta à Carta da ONU, de ameaça à paz do mundo, e constitui já um estado de agressão e de guerra. Portugal tem de conceder de pronto a independência aos seus territórios ultramarinos. Replica com extrema aspereza de linguagem o delegado português: não existem as condições que se alegam; todos os factos citados são falsos; tudo quanto se tem passado é preparado, instigado, sustentado e apoiado de fora; é absurdo falar de ameaça à paz do mundo, ou de um estado de guerra; e quem viola a Carta são os países africanos. De um lado e outro, são lançados ao debate todos os pormenores: como foi bombardeada uma aldeia senegalesa; como data de 1613 a designação de províncias ultramarinas dada aos territórios portugueses; quem vota nas eleições portuguesas; quantos representantes tem o Ultramar nos orgãos centrais de administração e de governo. Em final de debate, e como acto espectacular de política, Portugal convida os quatro ministros dos Estrangeiros africanos para visitarem imediatamente Angola e Moçambique, com liberdade total de movimentos. De permeio, intervêm também membros efectivos do Conselho. Por parte da União Soviética, os ataques incidem na NATO e no Mercado Comum; a França, a Inglaterra, os Estados Unidos pronunciam-se em favor da autodeterminação, mas contra quaisquer medidas radicais ou precipitadas. É particularmente favorável o delegado francês: declara que Portugal não constitui ameaça à paz. Condenam a política portuguesa os demais membros do Conselho: é arrogante a Noruega, que dá conselhos e promete subsídios se Portugal abandonar África; é branda a Venezuela; é corajosa a China, que aplaude a política multirracial portuguesa; são agressivas as Filipinas, que acusam de racismo a política portuguesa; é de extrema violência o Ghana, que usa palavras de guerra; e o Brasil pratica uma demagogia fácil contra Portugal. Mas através de tudo sabe-se que em causa está um ponto, e um ponto só: vota o Conselho sanções contra Portugal ou não? Neste particular, os três membros ocidentais – Estados Unidos, França e Inglaterra – são categóricos e não ocultam que oporiam o seu veto a qualquer resolução que tentasse aplicar a Portugal sanções políticas, económicas, ou outras. Está assim bem marcado o limite da política consentida aos afro-asiáticos. E em 31 de Julho de 1963 é posto à votação um projecto de resolução apresentado pelo Ghana: confirma resoluções anteriores contra Portugal; deplora a atitude do governo de Lisboa; verifica que a situação nos territórios portugueses constitui ameaça à paz e à segurança em África; convida Portugal a reconhecer o direito à independência, a retirar as forças militares, a promulgar uma amnistia política e permitir em África o funcionamento de partidos políticos, a empreender negociações com os representantes desses partidos tanto no interior como no exterior, e a conceder imediatamente a independência; e pede a todos os Estados membros da ONU que cessem qualquer ajuda ao governo português, designadamente de natureza militar. Estados Unidos, Inglaterra e França abstêm-se na votação, e os demais países votam afirmativamente: o texto transforma-se em resolução do Conselho de Segurança (2). Declara o delegado português: «Pura e simplesmente, rejeito esta resolução: é um texto moralmente errado: e o que está moralmente errado não pode estar politicamente certo»» (in Salazar, Livraria Civilização Editora, 1984, Vol. V, pp. 501-503).
(1) São nesta altura membros do Conselho, além dos cinco permanentes (Estados Unidos, França, Inglaterra, China e Rússia), os seguintes países: Marrocos, Ghana, Filipinas, Venezuela, Noruega e Brasil. A Organização da Unidade Africana também solicitara, para data ulterior, uma reunião do Conselho contra a África do Sul, por causa da política de apartheid. O governo sul-africano declinou participar. O facto de o governo de Lisboa se ter antecipado a aceitar a participação nos debates causou boa impressão nos africanos moderados e desarmou os extremistas. Tunísia, Libéria, Serra Leoa, Madagáscar e Portugal, não sendo membros do Conselho, participavam como convidados. Tinham liberdade absoluta de debate e intervenção, mas sem direito a voto, como é óbvio.
(2) Esta resolução recebeu o n.º S/5380.
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