Porque também referido no livro de Sérgio Vieira "Participei, por isso testemunho" recordo:
Atentado no Maputo
MAPUTO (do nosso correspondeste Alves Gomes) — Tudo indica, no estado actual das investigações, que a encomenda-bomba que vitimou, terça-feira, Ruth First, do Centro de Estudos Africanos desta cidade, era dirigida contra Aquino de Bragança, o director do Centro.
Com efeito, o envelope fora enviado de Washington, em seu nome, através da mala diplomática dos Estados Unidos e metida no correio, nesta cidade, por um funcionário deita mesma embaixada. Em princípio, deveria conter uma publicação do Centro Bibliográfico de Washington sobre problemas da África Austral, publicação essa que costuma recolher os principais textos publicados sobre aquela zona.
Estas revistas são, regra geral, expedidas para as embaixadas americanas e estas limitam-se a colocar-lhe as franquias postais locais e metê-las no correio.
Envelope análogo, embora com conteúdo normal, destinava-se Ruth First.
Segundo nos foi relatado, Aquino de Bragança apercebeu-se de algo de anormal ao tentar rasgar o envelope tendo-o deixado cair imediatamente em cima da secretária junto da qual se encontrava Ruth First que morreu imediatamente, e ainda a professora americana Brigett O’Lauglin e Paul Jordan, cientista sul-africano, residente na Zâmbia, que ficaram feridos.
Aquino de Bragança, atingido nos olhos, foi internado no Hospital Central de Maputo, onde permanecerá, segundo as previsões dos médicos, até segunda-feira.
Ontem à tarde, quando lhe foram retiradas as vendas, o EXPRESSO contactou com ele que afirmou: «Os problemas políticos não se resolvem administrativamente, nem por acções terroristas. É no terreno do debate que devemos ganhar marxistas e não marxistas.»
«Estávamos a brincar sobre o conteúdo dos envelopes, quando ocorreu a explosão, que, de início, me pareceu um terramoto.» As palavras são de Aquino de Bragança, ainda na cama que ocupa numa das enfermarias do Hospital Central de Maputo, onde se recompõe das feridas que tem nas pálpebras e que foram provocadas pela explosão que vitimou Ruth First, a sua mais directa colaboradora.
Quando se lhe colocou a hipótese de criar o Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, no Maputo, Aquino de Bragança “procurou alguém com senso de organização e que, ao mesmo tempo pudesse viver na tensão da luta de ideias». Ruth First era a única pessoa que reconhecia com essas qualidades.
Ruth First, mãe de três filhos, militante do Conselho Nacional Africano (ANC) da África do Sul, casada com Joe Slovo, «o inimigo número um do regime sul-africano (conforme escreveu, no ano passado a revista americana «Newsweek»), considerado pelo «apartheid» o «cérebro das acções armadas» (embora tudo indique que essa importância lhe seja dada somente porque é branco e quadro do ANC, segundo nos disse um dirigente do movimento nacionalista da África do Sul), era uma intelectual com vários livros publicados.
Entre eles destacam-se «117 dias», sobre o tempo que passou na prisão, em finais dos anos 50, por ter pertencido ao Partido Comunista sul-africano, «Sudoeste Africano», o primeiro livro sobre o movimento nacionalista namibeano, “Pelo Cano da Pistola», sobre os regimes militares africanos, e «Líbia», sobre a tomada do poder de Khadafi na Líbia. Em Moçambique, fez um estudo sobre os mineiros moçambicanos que vão trabalhar para a África do Sul, além de ter dirigido investigações sobre o «algodão e trabalhos forçados» e «camponeses e formas colectivas de produção» esperando-se que em Outubro saia um livro seu, com fotografias de Moira Forjaz, sobre os «mineiros sul-africanos».
Para além de ser o «braço direito» de Aquino de Bragança no CEA, Ruth First era também vice-presidente do Tribunal dos Povos, tendo participado nos julgamentos sobre os problemas da Nicarágua, Eritreia e, no ano passado em Lisboa, sobre o caso de Timor Leste. Por isso a sua morte brutal provocou reacções internacionais. Para além do telegrama de Ramalho Eanes, da mensagem do gabinete de Mitterrand a Aquino de Bragança, que recebeu também a visita de muitos embaixadores acreditados em Maputo, o assassinato de Ruth First foi alvo de condenação por comités de apoio ao ANC em vários países ocidentais e africanos e por intelectuais de diversas origens.
Quem matou
Ainda a meio das investigações, as autoridades moçambicanas consideram que «tudo indica que o acto terá sido cometido pelos serviços secretos sul-africanos». Acrescentam que «o tipo de atentado é idêntico a muitos outros por eles praticados recentemente», recordando que, este ano, a rádio oficial sul-africana definira Ruth First como «perigosa comunista e inimiga do regime sul-africano». Era também a rádio de Pretória que, há dias, afirmava possuir «muito bons especialistas na utilização de engenhos explosivos».
A prática deste tipo de assassinatos tem sido frequente desde 1974, contando-te inúmeras vítimas entre os nacionalistas sul-africanos. Este ano, em 14 de Março, uma bomba destruiu os escritórios da ANC em Londres e, em Junho, o representante da ANC na Suazilândia e sua mulher foram mortos, quando uma bomba fez explodir o carro em que seguiam. Durante o ano passado, o regime sul-africano realizou um ataque armado numa cidade vizinha de Maputo, tendo morrido 13 militantes do ANC e raptado outros três. Depois, em Julho, foi morto o representante do ANC em Harare (Zimbabwe), quando seguia de carro para casa.
No acto terrorista., de que resultou a morte de Ruth First, ficaram feridos, além do professor Aquino de Bragança, director do CEA, a professora americana Brigett O’Laugin e Paul Jordan, cientista sul-africano residente na Zâmbia.
O facto de ter sido utilizado um envelope que «contém normalmente informações sobre a África Austral para futura investigação», constitui, para a embaixada dos EUA no Maputo uma situação «desgostante e aborrecida». O encarregado americano de negócios afirmou entretanto esperar que «nada, no que respeita a esta ocorrência possa vir a afectar as relações entre o seu país e Moçambique».
Segundo apurámos, as publicações do Centro Africano Bibliográfico de Washington são enviadas para Maputo pela mala diplomática dos EUA. Diversas personalidades da zona recebem estas edições e, pelo menos, quatro pessoas do CEA constam da lista de distribuição.
Colaboradores e investigadores do CEA consideram que «esta capa para o assassinato de Ruth First deverá ter sido considerada a via mais simples para a atingir pois se tratava de uma publicação que se recebe regularmente com o carimbo da embaixada americana em Maputo e que dificilmente se poderia desconfiar ser capa para um acto tão bárbaro como este».
Para Aquino de Bragança tratou-se de «um acto de terrorismo a que os intelectuais da África Austral não podem ficar alheios». Segundo ele, é preciso «alargar o debate a todos os intelectuais que queiram discutir este sistema». «É preciso sensibilizar todos para este fenómeno terrorista na nossa zona», afirma. É necessária uma resposta, em homenagem e Ruth First, que «não acreditava em jacobinos, queria sempre chegar ao fundo das questões» e considerava que o marxismo «não se devia impor como o catecismo».
EXPRESSO(Lisboa) - 21 de Agosto de 1982 pp 1,2
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