quinta-feira, 1 de novembro de 2012
Escrito por Joseph Ratzinger
«A terceira parte do segredo revelado a 13 de Julho de 1917 na Cova da Iria-Fátima (Na transcrição, respeitou-se o texto original mesmo quando havia erros e imprecisões de escrita e pontuação, os quais, aliás, não impedem a compreensão daquilo que a vidente quis dizer).
Escrevo em acto de obediência a Vós Deus meu, que mo mandais por meio de sua Ex.cia. Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e da Vossa e minha Santíssima Mãe.
Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fogo em a mão esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam incendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: o Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n'uma luz emensa que é Deus: "algo semelhante a como se vêem as pessoas n'um espelho quando lhe passam por diante" um Bispo vestido de Branco "tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre". Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz e troncos toscos como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dôr e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns atrás outros os Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n'êles recolhiam o sangue dos Martires e com êle regavam as almas que se aproximavam de Deus.
Tuy-3-1-1944».
COMENTÁRIO TEOLÓGICO
Quem lê com atenção o texto chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século que está para findar, representada através duma cena descrita numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto que a Mãe do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultanemanete assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas - o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal Sodano pronunciou, no 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns esclarecimentos básicos sobre o modo como, segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja distingue «revelação pública» e «revelações privadas»; entre as duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de grau. A noção «revelação pública» designa a acção reveladora de Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento. Chama-se "revelação", porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se tornar homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto, de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo da Igreja Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da Revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: «Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra - e não tem outra -, Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d'Ele outra realidade ou novidade» (CIC, n.º 65; S. João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os povos ter ficado concluída com Cristo e o testemunho que d'Ele nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o acontecimento único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia, que garante e interpreta tal acontecimento, não significa que agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da Igreja Católica: «No entanto, apesar de a Revelação ter acabado, não quer dizer que esteja completamente explicitada, E está reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance no decorrer dos séculos» (n.º 66). Estes dois aspectos - o vínculo com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua compreensão - estão optimamente ilustrados nos discursos de despedida do Senhor, quando Ele declara aos discípulos: «Ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar» (Jo 16, 12-14). Por um lado, o Espírito serve de guia, desvendando assim um conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade da fé cristã, e que é tal que não estará concluída jamais. Por outro lado, esse acto de guiar é «receber» do tesouro do próprio Jesus Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução por obra do Espírito. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa frase do Papa
Gregório Magno: «As palavras divinas crescem com quem as lê» (CIC, n.º 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel 1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais, através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e, consequentemente, o «crescimento da Palavra»: realiza-se por meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação daqueles «que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade» (Dei Verbum, n.º 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que se aplica a todas as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica sobre isto também: «No decurso dos séculos tem havido revelações ditas "privadas", algumas das quais foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) "completar" a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente numa determinada época da história» (n.º 67). Isto deixa claro duas coisas:
1. A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto, nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-se credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV, afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo a propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações aprovadas não é devida uma adesão de fé catolica; nem por isso é possível. Estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo flamengo E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a suas adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, não se deve transcurar. É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se afasta d'Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo, que nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui que uma revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente da salvação. Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como o demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se afirmar que, na relação entre liturgia e piedade popular, está delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas: a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimentada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é a primeira e fundamental forma de «inculturação» da fé, que deve continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia, mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas, e que eram primariamente necessárias, à definição positiva das revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias. Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que embora tenha de ser examinado, não pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não significa predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de Deus enquanto exigência e indicação para o presente. Neste caso, a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial é a actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação, ou então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se relacionar o carisma da profecia com a noção «sinais do tempo», redescoberta pelo Vaticano II: «Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?» (Lc. 12, 56). Por «sinais do tempo», nesta palavra de Jesus, deve-se entender o seu próprio caminho. Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de Cristo em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja - e portanto na de Fátima -, trata-se disto mesmo: ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a justa resposta para os mesmos (in Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, Paulinas, 2000, pp. 26-27 e 39-45).
Continua
«A terceira parte do segredo revelado a 13 de Julho de 1917 na Cova da Iria-Fátima (Na transcrição, respeitou-se o texto original mesmo quando havia erros e imprecisões de escrita e pontuação, os quais, aliás, não impedem a compreensão daquilo que a vidente quis dizer).
Escrevo em acto de obediência a Vós Deus meu, que mo mandais por meio de sua Ex.cia. Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e da Vossa e minha Santíssima Mãe.
Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fogo em a mão esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam incendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: o Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n'uma luz emensa que é Deus: "algo semelhante a como se vêem as pessoas n'um espelho quando lhe passam por diante" um Bispo vestido de Branco "tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre". Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz e troncos toscos como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dôr e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns atrás outros os Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n'êles recolhiam o sangue dos Martires e com êle regavam as almas que se aproximavam de Deus.
Tuy-3-1-1944».
COMENTÁRIO TEOLÓGICO
Quem lê com atenção o texto chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século que está para findar, representada através duma cena descrita numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto que a Mãe do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultanemanete assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas - o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal Sodano pronunciou, no 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns esclarecimentos básicos sobre o modo como, segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja distingue «revelação pública» e «revelações privadas»; entre as duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de grau. A noção «revelação pública» designa a acção reveladora de Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento. Chama-se "revelação", porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se tornar homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto, de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo da Igreja Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da Revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: «Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra - e não tem outra -, Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d'Ele outra realidade ou novidade» (CIC, n.º 65; S. João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
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Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que se aplica a todas as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica sobre isto também: «No decurso dos séculos tem havido revelações ditas "privadas", algumas das quais foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) "completar" a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente numa determinada época da história» (n.º 67). Isto deixa claro duas coisas:
1. A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto, nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-se credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV, afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo a propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações aprovadas não é devida uma adesão de fé catolica; nem por isso é possível. Estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo flamengo E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a suas adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, não se deve transcurar. É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se afasta d'Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo, que nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui que uma revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente da salvação. Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como o demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se afirmar que, na relação entre liturgia e piedade popular, está delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas: a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimentada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é a primeira e fundamental forma de «inculturação» da fé, que deve continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia, mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas, e que eram primariamente necessárias, à definição positiva das revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias. Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que embora tenha de ser examinado, não pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não significa predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de Deus enquanto exigência e indicação para o presente. Neste caso, a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial é a actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação, ou então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se relacionar o carisma da profecia com a noção «sinais do tempo», redescoberta pelo Vaticano II: «Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?» (Lc. 12, 56). Por «sinais do tempo», nesta palavra de Jesus, deve-se entender o seu próprio caminho. Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de Cristo em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja - e portanto na de Fátima -, trata-se disto mesmo: ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a justa resposta para os mesmos (in Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, Paulinas, 2000, pp. 26-27 e 39-45).
Continua
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