O "Moçambique para Todos" continua a receber depoimentos sobre a realidade vivida pelos que passaram por "campos de reeducação" instituídos pelo governo da Frelimo. Hoje divulgo um documento dramático datado de 23 de Agosto de 1981, de autoria do Reverendo Diácono Daniel José Sithole, intitulado "The Mozambique Tragedy". Fala da experiência dele no campo de reeducação conhecido por "Moçambique D", na Província de Cabo Delgado. Menciona também o campo de reeducação de Chaimite, na mesma província. À semelhança de outros campos, tratavam-se de antigas bases da Frelimo, criadas durante a luta armada.
O testemunho do Reverendo Sithole foi, na altura, amplamente divulgado através de missões diplomáticas em África e no resto do Mundo e junto de organizações como a Amnistia Internacional, Caritas Internacional. Como resultado disso, intensificaram-se as pressões sobre o governo da Frelimo, então dirigido pelo Presidente Samora Machel, para que pusesse cobro aos flagrantes abusos dos direitos humanos que vinham ocorrendo desde o governo da transição liderado pela Frente de Libertação de Moçambique. Insistiam essas chancelarias e organizações internacionais que fossem restituídos à liberdade os presos políticos, incluindo as vítimas do chamado Processo de Nachingwea, para além dos milhares de cidadãos que haviam sido ao longo dos anos desterrados para esses campos que uns insistem em rotular de "Campos da Morte da Frelimo”, por analogia com os “Killing Fields” dos Khmer Vermelhos no Camboja.
Cronologia
1974 -1979 Familiares de pessoas enviadas para campos de reeducação lançam apelos através de embaixadas e organizações, incluindo o Comité Internacional da Cruz Vermelha.
1980 O SNASP, pelo punho do respectivo ministro, publica a 29 de Julho a "Ordem de Acção 5/80" em preparação para uma encenação jurídica para tentar justificar as execuções sumárias de várias personalidades políticas.
1981 A 23 de Agosto o Reverendo Diácono Daniel José Sithole distribui o
documento, "The Mozambique Tragedy" junto de missões diplomática e
organizações humanitárias internacionais.
A 28 de Setembro o jornal Notícias informa que "o Presidente Samora Machel libertou ontem 684 reeducandos do centro de Chaimite em Cabo Delgado." Estava em curso a chamada "Ofensiva na Frente da Legalidade", em que o regime da Frelimo tenta lavar a imagem de que si próprio havia criado.
1982 Apesar da "Ofensiva na Frente da Legalidade", que culminou num
gigantesco comício em Maputo a 5 de Novembro de 1981, uma espécie
de mea culpa a dois tempos, o regime da Frelimo ordena a execução
sumária de Celina Simango e de Lúcia Casal Ribeiro, esposa de Raul
Casal Ribeiro, que se encontravam internadas no reduto de M'telela.
Leia aqui o depoimento: Download Tragedia_mocambicana_shitole
Obs:
Para melhor leitura, devido à fraca qualidade do original que me foi entregue, embora recuperado, aconselho a sua impressão.
NOTA:
Será que os historiadores moçambicanos se esquecerão deste documento e dos factos nele relatados? E a Fundação 25 de Junho?
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE
O documento esta datado aos 23 de Agosto de 1981. Nao foi feito em Outubro como afirmei no resumo anterior.
Sithole, D. J., "The Mozambique Tragedy/A Tragedia mocambicana," traduzido por F. N. Moises, (lugar nao indicado), 23 Agosto 1981.
Traduzir o documento de Sithole nao reproduzira as palavras exactas de Sithole, mas é uma boa coisa para ajudar os historiadores que se engajam em pesquisas historicas para dados que nunca obterao da Frelimo que nao revelera os seus malfeitos a quem quer que seja. A informaçao contida no depoimento faz parte da nossa herença historia, mesmo que a tal herança nos choque. O cidadao tem o direito de saber o que o seu governo, neste caso o governo da Frelimo, fez e tem feito. Dado o facto que a traduçao do depoimento pode levar muito tempo, por eu andar muito ocupado com tarefas de varias ordens principalmente as académicas, pensei que seria genial fornecer alguns pontos salientes deste documento para o leitor da expressao portuguesa e para aqueles que nao podem ler em ingles.
O documento por mim nao passado a maquina professionalmente esta num bom ingles -- num ingles de alto nivel que nao precisa de ser editado, quando tiver quer clarificar re-escrever as palavras que agora ja nao se lem bem. Fui capaz de ler tudo, mesmo as palavras que nao aparecem bem. Uma grande parte documento contem detalhes que este resumo nao pode abranger -- nem de longe.
O que nao entendo é o que a Frelimo esperava ganhar com este tipo de governaçao. Torna-se tambem claro que a Frelimo nao estava de nenhum modo preparada para governar o pais -- o que explica a razao dela ter lançado o pais num estado de terror, impondo medo que era para ela ser temida e respeitada.
Ja no principio do depoimento, Sithole diz que a Frelimo começou a culpar dirigentes da oposiçao pelas mortes de Eduardo Mondlane, Filipe Magaia, Samuel Kankhomba, Silverio Nungu. Nao ha duvida que esta era uma manobra da Frelimo para perseguir e depois liquidar os oponentes como autores de mortes que eram orquestradas dentro da propria liderança da Frelimo, por dirigentes da Frelimo proprios e entre eles -- uns contra outros.
Uma outra acçao da Frelimo foi o de perseguir e destruir a classe média ou a burguesia que constituia 9% da populaçao -- burguesia esta que integrava brancos e negros. A Frelimo passou a prender os estrangeiros, fuzilando alguns, expulsando outros e nacionalisando os seus bens que passavam a ser propriedades dos lideres e comandantes da Frelimo.
Para sobreviver, muitos estrangeiros e nacionais tinham que fazer favores aos comandantes da Frelimo, pondo a disposiçao de tais comandantes suas filhas, irmas ou quaisquer familiares femininos. Sithole da uma lista de nomes de moçambicanos e zimbabaweanos que foram executados pela Frelimo por alegadamente terem feito vai-e-vens entre a fronteira, acusando os moçambicanos e moçambicanas de prestarem serviços a resistencia e os zimbabwenos e zimbabweanas de serem agentes do regime de Ian Smith.
O reino de terror forçou membros da oposiçao a se refugiarem na Rodésia e na Africa do Sul.
A primeira campanha do governo de Samora Machel tinha o codigo de Campanha contra a Prostituiçao e o Banditismo. Em poucos dias esta rusga deteu 15,000 pessoas entre as quais crianças, mulheres gravidas e velhotes -- por volta de 3,500 na provincia de Manica, dos quais 500 foram soltos quando o reverendo Sithole protestou ao comandante Jehova da Frelimo em Manica.
As prisoes de Moçambique estiveram cheias e nao havendo mais lugares, a Frelimo instituiu entao os campos de re-educaçao, que sao na verdade campos de concentraçao, por toda a parte de Moçambique principalmente em Gorongosa na provincia de Sofala, na Zambezia, em Niassa, Cabo Delgado e Nampula.
Os campos mais notorios eram MOÇAMBIQUE D, RUARUA, CHAIAMITE -- todos em Cabo Delgado e operados pela SNASP de Sergio Vieira.
Em Moçambique D, os chefes e guardas tinham a liberdade de executar qualquer pessoa a qualquer tempo quando lhes apeteciam. La se podem ver os cranios e ossadas de milhares de vitimas do terror da Frelimo. Algumas vitimas eram enterradas vivas.
Nao havia comida para alem de milho podre chamado MANGANHOLA, que nem sempre havia. Em vez de matabicho, prisioneiros recebiam chambocadas. Recebiam chambocadas tres vezes por dia -- de manha em vez de matabicho, ao meio dia e de tarde antes de irem dormir.
Havia tambem células subterraneas, nas portas das quais se faziam fumaçadas para castigar os que estavam dentro.
O estado da Frelimo, assumindo as suas caracterisiticas fascisto-comunistas, proibiu os moçambicanos escutarem a BBC e a Voz da América que designou como emissoras imperialistas, e ordenou que as pessoas escutassem so a Radio de Moçambique. Qualquer pessoa apanhada a escutar as ditas emissoras imperialistas eram logo enviadas para os campos do norte ou fuziladas.
Sithole apela a Amnestia Internacional,o comité internacional da Cruz Vermelha e outras organisaçoes para investiarem aquilo que ele relata no seu depoimento.
Apelou tambem aos governos ocidentais, principalmente ao ogoverno americano, para agirem contra o regime da Frelimoc com sançoes, se fosse possivel.
Sithole fala tambem da guerra civil contra a Frelimo, sublinando que no seu esforço para abafar a oposiçao armada, cometia muitos massacres da populaçao, culpando depois a resistencia e as forças rodesianas. Admite, porem, que ele nao sabia muita coisa sobre as estruturas da MRNM (Movimento da resistencia nacional moçambicana).
Acusa a Frelimo de engajar milhares de mercenarios sovieticos, cubanos e tanzanianos para lutarem ao seu lado e apela ao governo da America para exigir a retirada destes mercenarios.
O documento contem 14 paginas cheias de detalhes que nao é possivel incluir aqui, incluindo a morte tragica do comandante Francisco Ndewe, alias Muthamanga, de Sofala que se criticou e se insurgiu contra as matanças na provincia de Sofala. A Frelimo teve que enviar tropas de Manica para abafar a revolta levantada por Ndewe. Muthamanga terminou por ser enviado a Cabo Delgado por duas vezes. Pela segunda vez, foi executado em publico, tendo um membro da populaçao qubrado a sua cabeça em duas partes com uma espada e outros cortado os seus orgaos sexuais para fins de cuchecuche ou de feitiçaria.
Este o resumo muito curto do depoimento, A Tragédia moçambicana, do reverendo Daniel José Sithole, que Gil teve a amabilidade decolocar no Moçambique para todos quando eu ja pensava que tinhamos perdido traços deste documento tao valioso como aconteceu com tantos outros documentos historicos moçambicanos.
Muitos dos exilados ainda se encontram na zona do norte, o sistema que os enviou, tendo recusado fornecer lhes meios para regressarem as suas regioes e aldeias por medo das historias que estas pessoas tem a contar com a do reverendo Sithole.
O documento era imprimido em ingles sem ser editado visto que nao gostaria de diluir a sua historiecidade. O novo documento imprimido nao deve ler diferentemente do original.
Francisco Nota Moises
Compreende-se:
"Prefiro uma "ditadura suável" do estilo Mugabe, Samora, Kamuzu Banda, etc., do que um reinado à suazi, etc." - V. Dias (zicomo)
"Saudável"? O próprio Samora Machel, perante a tragédia que testemunhara em Moçambique D, Chaimite, Ruarua... confessou que era como "palha no estômago". E acrescentou: "Não podemos digerir isso".
Zicomo
Daniel José Sithole
Quando o diacono Daniel José Sithole chegou em Nairobi em 1981, alguem cujo nome vou reter para proteger a pessoa que esta muito a alcance da Frelimo, disse-me: "um padre chegou de Moçambique. Fugiu dum campo de concentaçao." A noticia explodiu a minha cara como uma bomba de grande potencia." Estive estonteado, incredulo e receioso.
Tive que ter muita cautela depois da captura de Gwenjere de Nairobi em 1977 em parte por culpa dele proprio por nao escutar os conselhos daqueles moçambicanos que lhe diziam para nao confiar em tanzanianos, mesmo se os tinha conhecido como sus simpatisantes quando ele vivia em Dar Es Salaam, durante a nossa batalha contra a lidernça de Eduardo Mondlane. Sabia tambem que estive no primeiro lugar da lista negra da Frelimo de individuos a abater a vista ou a ser capturado e levado vivo ou morto para Maputo. Uma copia da lista negra estava na posse do alto comissariado do Zimbabwe em Nairobi depois da independencia daquele pais mugabesitico.
Tive que ter cuidado, mas a curiosidade terminou por ganhar a batalha contra o medo. Este rapaz e eu dirigimo-nos ao lugar, pensao, onde a representaçao de Naçoes Unidas para os refugiados em Nairobi tinha colocado Daniel José Sithole. Quando o Sithole saiu do seu quarto e veio ao quarto de espera para nos encontrar, estava emocionado quando o cumprimentamos em portugues com sorrisos e carinho.
"Voces sao mesmo irmaos moçambicanos!", disse Sithole com lagrimas nos olhos, incredulo em ver que havia pessoas da origem moçambicana que se comportavam como seres humanos. "Somos sim," dissemos lhe. Mas Sithole estava de ma forma fisicamente depois de maltratos e duma longa fuga através da hostil Tanzania que nao tolerava fugitivos que reclamassem que fugiam do regime da Frelimo. Sithole tinha sido condenado para morrer, mas conseguiu fugir antes do seu fuzilamento.
Deu-lhe dinheiro para comprar o que necessitaria com sabao, escova, colgate, alguma roupa. Deixamo-lo partir para um hospital, tendo combinado nos encontrariamos mais tarde, o dia seguinte. Quando nos encontramos mais tarde, Sithole nos contava coisas arrepiantes sobre os campos de concentraçao da Frelimo, dito de re-educaçao. Campos verdadeiramente de morte do regime da Frelimo.
Ouvir so a informaçao nao me bastava. Sugeri a Sithole si podia fazer um depoimento que eu gravaria. De bom grado, aceitou. Fez a declaraçao em portugues que gravei. Depois transcrevi o seu depoimento para ingles usando meios da BBC. De maneira que o documento é a traduçao inglesa, palavra por palavra, que fiz do depoimento que Sithole. Deu o documento titulo poderoso de "The Mozambique Tragedy" ou seja em portugues "A Tragedia de Moçambique," sem indicar onde o documento tinha sido preparado e emitido, que era para nao dar ao inimigo frelimista a nossa posiçao exacta.
Feito o documento, entregamos uma copia ao encarregado dos assuntos politicos da embaixada americana que nos disse durante o encontro na embaixada que o governo americano se preocuparia de enviar uma copia a Amnestia Internacional em Londres, unica organisaçao que podia ir a Maputo e falar com o regime da Frelimo sobre o assunto dos campos de concentraçao. Um mes depois de ser ralhado pela Amnestia Internacional, Samora Machel viu se forçado a ir ao campo de Ruarua onde mandou prender os chefes do campo, a quem culpou de actos que violavam a legalidade revolucionaria.
Como resultado do nosso trabalho mandou libertar alguns prisioneiros, depois de, todavia, descrever os campos de concentraçao como "o barometro que nos permite medir a pressao da nossa revoluçao."
Quanto a Sithole, nos primeiros dias servi de interprete para ele quando tinha encontros em Nairobi. Mas nao levou muito tempo antes dele aprender e começar a falar ingles. Inteligente, Daniel
Sithole é tambem astuto.
Francisco Nota Moises
P.S.: Concordo que o documento precisa de ser passado a maquina mais uma vez e duma maneira professional. Nunca fui um dactilografo professional. Comecei a bater a maquina na BBC com uma maquina daquelas antigas, mas nunca aprendi a faze-lo professionalmente.