31/10/2012 13:44, Por Gilberto Maringoni - de São Paulo 2
O advento da internet suscita, há quase uma década, um debate sobre o fim do jornal impresso. Livros, reportagens e artigos têm sido produzidos, tentando dar conta da possível obsolescência do meio papel.
Abalo no mercado
As redes virtuais provocaram um abalo no mercado de comunicação muito maior que a chegada das principais novidades tecnológicas anteriores, como a máquina rotativa (1890), o rádio (1920) e a televisão (1950). Não nos esqueçamos que com a chegada do rádio, profetizava-se o fim do jornal e com a chegada da televisão, três décadas depois, falava-se na decadência do jornal, do rádio e do cinema. Nenhum deles desapareceu, mas tiveram de se readequar às novas realidades.
No caso da difusão das redes virtuais, fala-se novamente no fim das velhas mídias. Isso se dá não apenas porque a internet interfere em todas as formas anteriores de comunicação – ela é jornal, é rádio e é televisão, entre outros – mas especialmente por evidenciar a lentidão dos antigos meios e por expor suas limitações em relação à possibilidade de se segmentar e escolher a informação a ser recebida e acessá-la a qualquer momento em locais variados.
Além disso, existe a possibilidade de uma interação entre emissor e receptor de informações, criando um fluxo comunicacional de mão dupla ou de várias mãos em intercâmbios constantes. O abalo que o meio virtual provoca em outras modalidades de troca de informações ainda é incerto. Tudo indica que não será pequeno.
Está em questão não apenas o suporte papel ou a velocidade de impressão, mas uma maneira de se reunir informações de diversas procedências em um único produto, facilmente manuseável.
O jornal é não apenas um veiculador de notícias, mas um organizador e hierarquizador dessas informações, montando e apresentando cotidianamente ao leitor uma sinopse de fatos e eventos do dia anterior. Essa concepção de periódico é um produto da sociedade gerada a partir da Revolução Francesa e do Iluminismo. Não nos esqueçamos que a enciclopédia, ou seja, um compêndio sistematizado de todo o conhecimento humano acumulado até então também é fruto do Iluminismo do século XVIII. Não é exagero classificar o jornal como um subproduto da enciclopédia; uma sistematização e um empacotamento do conhecimento.
O poder da edição
A partir de meados do século XIX, o cidadão europeu, alfabetizado e de certas posses recebia seu diário pela manhã e tomava ciência não apenas dos acontecimentos mundiais, mas de recebia uma maneira de se ver o que se sucedia à sua volta.
O poder de um editor, que decidia se a manchete principal versaria sobre política, economia, cultura ou esporte passou a ser atividade dotada de um poder formidável sobre o público e sobre o espaço público.
Editar equivale a organizar uma agenda para a opinião pública, definindo o que é principal e o que é secundário a cada momento. A tarefa de edição corresponde à ação de definir a pauta de debates de uma determinada sociedade e em determinado tempo.
O produto-síntese montado com critérios de alocação definida para cada informação chama-se jornal. Ele pode ter qualquer suporte. O jornal – escrito, radiofonizado, televisado – é uma condensação totalizante de determinada visão de mundo.
Dois tempos
Essa totalização se dá em dois tempos, um imediato e outro perene. Primeiro, ao resumir e classificar o leque de notícias a ser digerido pelo leitor, o jornal organiza prioridades. E ao ter uma trajetória longa, constante, coerente e previsível – apesar da imprevisibilidade dos fatos geradores de informações – se coloca como acompanhante de longo curso de seu leitor.
O jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, um dos mais tradicionais periódicos brasileiros, acompanha, em alguns casos, a quarta ou quinta geração de uma mesma família de assinantes. O vínculo entre produto e leitor é cotidiano e perene, a um só tempo. Esse fenômeno, que o mercado publicitário chama de fidelização do público, consolida o jornal como uma espécie de supermercado de notícias, no qual estão reunidas informações das mais variadas, que vão da política à cultura, passando pela economia, pelo noticiário internacional e por coberturas de cidades, de entretenimento, de saúde, obituário, passatempos etc. etc. Assim como em um supermercado, no qual o consumidor vai para comprar panelas e louças e, ao passar pelas gôndolas, pode levar para casa outros produtos, como alimentos, produtos de limpeza, eletrodomésticos etc., o leitor do jornal abre as páginas em busca de determinado assunto e passeia por outros que não estavam em seu foco inicial de interesse.
Assim, reiterando o mencionado anteriormente, o jornal é não apenas um produto em papel, mas uma concepção de como reunir notícias fragmentadas, ordená-las e entregá-las empacotadas para o consumidor final.
É contra essa lógica e não contra o meio papel que a internet investe.
O leitor-editor
Embora os grandes jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão estejam todos na internet, a informação não está mais hierarquizada previamente para o internauta. Ele pode saltar de um veículo a outro, lançar mão de sites de buscas para encontrar o que deseja, filtrar os assuntos sem passar pelo que julga secundário para si e montar o jornal em sua cabeça. A internet tende a eliminar a figura do editor externo ao leitor. E a interatividade acontece não apenas pelo fato de toda publicação virtual dispor de espaço para comentários, mas porque agora o leitor também pode ser um produtor de informação, um emissor ativo e não mais um receptor do que lhe é despejado cotidianamente em telas, altofalantes e páginas.
Nesse ponto, fica a pergunta: qual o sentido da crescente fragmentação da informação? Teríamos chegado finalmente ao ideal do pósmodernismo, tão difundido a partir dos anos 1970, de que o mundo não pode ser compreendido em sua totalidade, mas apenas em seus fragmentos? Ou seja, uma vertente filosófica teria finalmente encontrado sua base material – para nos fixarmos num linguajar marxista – que seria, ironicamente, o meio virtual?
O pósmodernismo, de acordo com Perry Anderson, no livro As origens da pós-modernidade, “é a perda de legitimidade das metanarrativas”. Em suas palavras,
- ‘a primeira’ [metanarrativa], derivada da Revolução Francesa, colocava a humanidade como agente heróico de sua própria libertação através do avanço do conhecimento; a segunda, descendente do idealismo alemão, via o espírito como progressiva revelação da verdade. Esses foram os grandes mitos justificadores da modernidade[1] .
A ambos conceitos pode-se somar o materialismo dialético. Na definição clássica de Sartre, “o marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo porque ele é a totalização do saber contemporâneo”, ele é propriamente uma filosofia porque “se constitui para dar expressão ao movimento geral da sociedade”.
Repetindo: o jornal tradicional não é feito principalmente de papel, mas de uma idéia totalizante de mundo. Não é exagero dizer que uma das expressões das grandes narrativas como produto é o jornal e o conceito de imprensa construído no Ocidente a partir de 1850.
De outra parte, a idéia de que o todo não é compreendido enquanto tal, mas apenas em seus fragmentos, está na base da apreensão das informações na rede. Aqui, os fragmentos são juntados de forma individualizada por cada internauta, em infinitas combinações e ordenamentos, numa espécie de faça você mesmo informativo. Há ganhos evidentes na ação cognitiva nesses novos tempos. Cada um é seu próprio editor, cada um é um emissor.
Essa é a base objetiva da perda de legitimidade – e de mercado – do jornal tradicional. Ao supermercado informativo, contrapõe-se o mercadinho personalizado em rede global. Pick and play.
O Jornal da Tarde é mais um supermercado que fecha as portas.
NOTA
[1] Anderson, Perry, As origens da pós modernidade, Jorge Zahar Edito, Rio de Janeiro, 1999, pág 32.
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
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