O presente artigo analisa a importância, para a elite
moçambicana politicamente dominante, de uma ideologia de modernidade
unificadora. Argumento que esta ideologia de modernidade constitui uma
categoria «nativa», sendo utilizada pelas elites para reivindicarem o seu poder
social e legitimarem as suas posições de privilégio perante a sociedade em
geral. Não se trata de uma ideologia estática, mas antes profundamente
enraizada nos antecedentes sociais da elite durante o período colonial e que
acompanhou as transformações resultantes da independência do país. Aquilo que
foi em tempos um projecto autoritário, mas potencialmente emancipatório, de
recriação da nação, está hoje firmemente confinado às próprias elites e a
antiga base do nacionalismo tornou-se cada vez mais um indicador de estatuto e
de diferença social.
INTRODUÇÃO
Um dia, durante o meu trabalho de campo em Maputo, a
capital moçambicana, tive uma conversa com uma amiga, Josina. Na altura eu
investigava a formação da elite governante de Moçambique e os seus modos de
auto--reprodução social. Os pais de Josina tinham estado envolvidos na luta
pela libertação, tornando-se membros destacados da FRELIMO após a
independência.
1. Embora alguns membros da sua família tenham
militado num movimento revolucionário socialista, Josina autodefine-se como uma
capitalista fervorosa e durante a nossa conversa defendeu reformas neoliberais
puras e duras para Moçambique. Quando exprimi as minhas dúvidas de que
semelhante modelo pudesse ajudar os mais pobres, ou seja, a esmagadora maioria
da população, Josina respondeu que o meu problema era estar profundamente
equivocado em relação à natureza da sociedade moçambicana. Na sua opinião, os
pobres não tinham falta de oportunidades — simplesmente, não estavam
interessados nelas:
Há aqui uma enorme diferença que tu não compreendes,
acho eu. Passas o tempo todo com pessoas como nós, instruídas e
ocidentalizadas. Aqueles que são privilegiados, como nós, têm gostos e desejos
que são muito diferentes dos das outras pessoas todas. É realmente uma questão
de interesses. A maioria dos moçambicanos são camponeses, têm uma machamba [um
pequeno lote de terra], vivem da agricultura, e é isso que lhes interessa e que
os satisfaz. A sério que não precisam de instrução nem de mais nada, e a verdade
é que nem sequer a desejam. Por exemplo, o meu pai tem raízes pobres, rurais.
Gostava de ler, mas não estava assim tão interessado em continuar a estudar.
2. Nunca se interessou por essas coisas até ao momento
em que percebeu tudo o que os portugueses tinham, em comparação com o pouco que
ele tinha. A maioria das pessoas deste país não está simplesmente interessada
em nada disso. Só querem que as deixem cultivar as suas machambas em paz. Nós,
os privilegiados, é que queremos e precisamos dessas coisas.
Aquilo que me interessou na resposta de Josina foi não
apenas a sua semelhança com algumas das antigas justificações coloniais para a
desigualdade, mas também o facto de ser um discurso bastante comum entre as
pessoas ligadas à elite dominante, baseada no partido da FRELIMO.
3. Ao longo da minha investigação notei que existia
frequentemente entre os membros desta elite o pressuposto implícito de que, por
serem instruídos e «modernos», eles eram fundamentalmente diferentes da vasta
maioria da população do país. Este sentido de diferença interessou-me, já que
era bastante comum entre pessoas que deviam a sua posição de privilégio a uma
ligação pessoal ou familiar a um movimento político que, no seu período
revolucionário, defendera um nacionalismo supostamente igualitário.
Aparentemente, as noções de modernidade que outrora tinham estado na base de
uma ideologia potencialmente emancipatória eram agora indicadores de diferença
social.
O presente artigo traça as mudanças e continuidades de
uma ideologia de modernidade entre uma elite baseada em Maputo desde as suas
formulações iniciais sob o regime revolucionário de Samora Machel (1975-1986),
passando pela queda do socialismo, até à introdução da democracia neoliberal
sob a presidência de Joaquim Chissano (1986-2005). Após a independência,
Moçambique conheceu um turbilhão de mudanças políticas e sociais. Em 1977, a
FRELIMO apresentava-se como um partido marxista-leninista de vanguarda; em
1983, durante uma brutal guerra civil, foram introduzidos os primeiros esforços
de uma Perestroika moçambicana e, a partir de 1989, o partido começou a
evoluir no sentido da democracia neoliberal. Contudo, subjacente a estas
mudanças dramáticas, tem persistido, ainda que em mudança também, uma ideologia
de modernidade que se tem revelado central nos esforços da elite para legitimar
o seu papel e o seu estatuto em Moçambique, tanto dentro do próprio grupo como
perante a nação em geral. Baseio-me aqui no trabalho de Ferguson, o qual
defendeu que, em África, a «modernidade» deve ser entendida como uma categoria
«local» utilizada pelos indivíduos como meio de explicarem o seu lugar no mundo
e como poderosa afirmação de igualdade (1999, 2002 e 2006). Em Moçambique, as ideias
são também categorias «locais» utilizadas pelos indivíduos para explicarem o
mundo, mas é importante sublinhar que há frequentemente mais do que uma única e
incontestada categoria local. Além disso, no caso de Moçambique, esta categoria
«local» tem diversos significados; a ideologia de modernidade da elite
baseia-se em ideias de igualdade com o mundo exterior, das quais retira
legitimidade, mas constitui também um poderoso instrumento para a criação de
desigualdade. A promoção da elite enquanto modelo ideal de modernidade e
enquanto único sector social capaz de introduzir essa modernidade na nação
constitui, por si só, uma reivindicação de poder.
Fornece um plano para a estruturação e implementação
de um conjunto de crenças partilhadas e uma justificação para a hierarquia;
nesse sentido, serve de «campo unificador» que promove a coesão das elites (v.
Gledhill, 2002)
4. Para compreendermos adequadamente esta ideologia de
modernidade teremos de a analisar etnográfica e historicamente desde a independência do país até
à actualidade.
Não pretendo afirmar que esta ideologia é incontestada
— os debates são frequentes e acalorados no seio da elite da FRELIMO. Defendo, sim,
que esta ideologia fornece as bases do discurso
utilizado pela elite, bem como muitas das premissas, mesmo para perspectivas
rivais.
Nas páginas seguintes analisarei o modo como esta
ideologia se converteu no projecto de uma elite nacionalista para a criação de uma nação
independente. Como veremos, durante o período imediatamente posterior à
independência a ideologia de modernidade da elite, na sua forma nacionalista
revolucionária, exprimiu-se por meio de uma vasta tentativa de redefinição do lugar
de Moçambique no palco mundial, já que o território passara de colónia dependente
a nação soberana com base na mobilização massiva da população.
Este primeiro esforço fracassou devido à crise
económica e a uma devastadora guerra civil que estalou em 1977 e se prolongaria
até 1992. O colapso da versão nacionalista revolucionária da modernidade não
lançou o descrédito total sobre o ideal; pelo contrário, conduziu à reformulação
conceptual do mesmo. No período pós-socialista, a ideologia de modernidade foi
despojada de grande parte da sua antiga ênfase sobre a mobilização de massas.
Em vez de redefinirem o lugar de Moçambique entre a comunidade global das
nações, muitos membros da elite procuram agora integrar-se a si próprios em
poderosas redes internacionais.
Assim, esta ideologia funciona actualmente,
cada vez mais, como um sinal de status e uma afirmação
de poder social por parte da elite. Por um lado, continua a legitimar a posição
das elites ao manter de pé a promessa de progresso e, por outro, permite a
essas mesmas elites afirmarem-se como as únicas detentoras das competências e
capacidades necessárias ao cumprimento dessa promessa. Na prática, a ideologia
de modernidade funciona também como um símbolo de afirmações quotidianas de
poder social, as quais, ainda que possam ser contestadas, são normalmente
compreendidas pela população em geral — pelo menos em Maputo, a zona que me é
mais familiar.
Para ilustrar a minha argumentação começarei por
examinar as origens e as transformações sociais da elite em questão e o modo
como esse processo permitiu o desenvolvimento da ideologia de modernidade.
Passarei de seguida a analisar o modo como esta ideologia é inculcada nas
gerações mais jovens através da educação e a forma como se exprime através da
auto-apresentação e do consumo. Concluirei o artigo com uma breve análise do
contributo do caso moçambicano para a literatura antropológica e, mais
especificamente, para os temas de África e da modernidade.
AS ORIGENS E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS DA ELITE
MOÇAMBICANA DOMINANTE
Existem em Moçambique diversos grupos que podem
reivindicar o título de elite — os
régulos (autoridades
«tradicionais»), os líderes religiosos, os estrangeiros associados a
organizações internacionais poderosas, os membros mais importantes da classe
mercantil indiana e os altos membros da RENAMO, antigos rebeldes que constituem
hoje o partido de oposição oficial.
Neste artigo concentrar-me-ei num grupo específico que
parece constituir a elite socialmente dominante, ainda que não incontestada, de
Moçambique e que é essencialmente composto pelos membros do partido governante
da FRELIMO e pelos seus familiares e associados próximos. Não pretendo afirmar
que este grupo é completamente homogéneo; de facto, existem diversas facções e
clivagens sociais no seu seio. Tais clivagens estão relacionadas com os
diversos antecedentes sociais dos membros da elite e incluem a etnia, a região,
a religião e o nível de instrução. Existem também fissuras entre a velha guarda
revolucionária, que participou na luta pela libertação, aqueles que aderiram ao
partido pouco depois e a nova geração de «tecnocratas» que assumiram posições
de destaque na fase final do período socialista ou já depois do mesmo. Algumas
das actuais facções dentro da hierarquia da FRELIMO resultam destas diferenças,
ainda que tendam geralmente a emergir em torno de tópicos como o papel da
economia de mercado, a democratização e outras grandes questões. Embora muitos membros
da elite tenham sérias divergências de opinião e, em privado, possam manifestar
verdadeira animosidade uns pelos outros, há que não exagerar a importância
destas clivagens. Para a liderança baseada em Maputo, pelo menos até ao
momento, essas diferenças tendem a ser limitadas por um conjunto mais alargado
de interesses comuns. É frequente a pertença simultânea a diversas facções, com
pessoas a juntarem-se a uma ou outra em função do assunto em causa (Sumich e
Honwana, 2007; Sumich, no prelo). Grande parte da liderança baseada na FRELIMO
mantém-se unida através de laços de lealdade mútua, de amizade e por vezes de
parentesco, bem como por meio de um sentido de identidade partilhada,
resultante de experiências similares e reforçada por uma base ideológica.
Embora as fissuras internas sejam muito reais, a elite de Maputo tem conseguido
apresentar ao mundo exterior uma frente mais ou menos unida. Passarei de seguida
a explicar as origens desta ideologia partilhada e as razões pelas quais constitui
uma característica tão marcante dos estratos mais destacados da elite de
Maputo.
A ideologia de modernidade defendida pelos membros da
elite da FRELIMO está intimamente relacionada com os seus antecedentes sociais
e a sua situação dentro do sistema colonial. A FRELIMO surgiu em 1962 como uma
frente alargada que aliava três partidos de cariz mais regional (Mondlane,
1969; Newitt, 1995). Os primeiros anos do partido foram marcados pelo
facciosismo e pela dissenção interna (Opello, 1975). Finalmente, entre 1968 e
1970, após uma série de lutas intestinas e do assassinato do primeiro líder,
Eduardo Mondlane, as divisões internas atingiram o seu desfecho.
A principal divisão do partido resultava da oposição
entre as duas facções principais — uma radical e outra mais conservadora. A
facção conservadora pretendia centrar os esforços na independência e, regra
geral, seguia uma linha afro-nacionalista, enquanto a facção radical estava
empenhada em universalizar a revolução social, vendo a independência apenas como
um primeiro passo. O objectivo dos radicais era assumir o controlo do Estado e
utilizar esse poder para remodelar completamente Moçambique e construir uma
nova sociedade. Em 1970, a facção radical tinha triunfado sobre os seus
adversários mais conservadores e unira o partido sob a sua liderança, ou, pelo
menos, decidira adiar as divergências internas para depois da obtenção da
independência (Vines, 1996). A facção radical assentava numa aliança entre uma
pequena coligação de
assimilados urbanos do Sul,
mulatos, brancos e indianos, e uma elite emergente, mais rural, de moçambicanos
do Norte educados em missões, excluindo frequentemente muitas elites do Centro
do país que tinham antecedentes sociais diferentes (Hall e Young, 1997)
5. Embora os nortenhos, mais rurais, representassem
uma secção importante da elite governante, concentrar-me-ei aqui nos
assimilados do Sul, já que grande parte da ideologia da elite de Maputo é o
resultado das experiências deste grupo, constituindo a base do «campo unificador»
dentro do qual a elite tem operado. Os radicais do Sul eram não apenas
comparativamente mais instruídos e mais empenhados na implementação da política
geral da FRELIMO, como também desempenharam um papel central na formação da
ideologia de modernidade, tendo deixado no partido e no Estado uma marca
profunda que se manteve até ao período actual, mais tecnocrático.
Para compreendermos os tipos de posições ideológicas
defendidas pela liderança da FRELIMO teremos de recuar à fase tardia do período
colonial (1930-1975). Os assimilados constituíam uma elite africana emergente, em grande medida
criada pelo Estado colonial com vista a limitar o poder das velhas elites
crioulas (Cahen, 1992 e 1993). Este grupo tinha, geralmente, laços muito mais
fracos com as formas de poder «tradicionais», constituindo, durante o período
colonial, uma espécie de pequena burguesia africana, que era uma reduzidíssima
minoria dentro da população indígena de Moçambique.
Uma das estimativas mais comuns contabiliza-os em
cerca de 5000 indivíduos numa população que rondaria os 8 200 000 antes da
libertação (Sheldon, 2002). A estimativa talvez peque por defeito, já que
inclui apenas as famílias mais importantes da classe dos
assimilados.
Durante o período colonial, os assimilados constituíam uma
categoria privilegiada e detinham «tecnicamente» os mesmos direitos que os
colonos portugueses. Se bem que muitos destes direitos não tivessem expressão
prática, estes indivíduos gozavam de vantagens significativas em comparação com
os chamados indígenas, que constituíam
a vasta maioria da população africana de Moçambique.
De acordo com uma comunicação pessoal de Paulo Granjo,
fontes primárias (AHM 1961) contabilizam 1658 pessoas, incluindo as crianças,
que obtiveram o estatuto de assimilado em Moçambique desde o início de 1950 até
ao final de 1960, último ano em que este vigorou oficialmente. Tendo este
estatuto sido instituído em 1917, é plausível que o número global de assimilados
fosse superior à estimativa citada, mas não de uma forma muito marcante.
No entanto, independentemente do seu número total, os assimilados exerceram até à abolição oficial do sistema, em 1961, uma influência
desproporcionada em relação à sua pequena dimensão numérica. Para se obter o
estatuto de assimilado era necessário satisfazer determinados critérios legais.
Os candidatos tinham de jurar lealdade ao Estado colonial, falar apenas
português nas suas casas, adoptar hábitos «europeus», abandonar crenças «bárbaras»
e obter um atestado de um funcionário português que garantisse a sua probidade.
Quem cumprisse estes requisitos recebia, teoricamente, os mesmos direitos
legais que os portugueses. Embora assim não fosse na prática, os assimilados obtinham de
facto uma ampla variedade de privilégios, como a isenção de trabalhos forçados,
o acesso facilitado à residência urbana, à educação e ao emprego, e um pequeno conjunto
de direitos civis, passando a estar sob a alçada da lei civil, ao contrário dos
indígenas, que estavam sujeitos à lei «consuetudinária» (Mondlane, 1969;
O’Laughlin, 2000; Penvenne, 1982 e 1989). Os assimilados tinham a possibilidade de obter um emprego nos mais
altos bastiões da economia colonial a que um indivíduo de cor poderia aspirar,
tornando-se assim enfermeiros, professores, ferroviários e pequenos
funcionários públicos.
O sistema colonial tendia a concentrar o capital
mercantil nas mãos de interesses estrangeiros, pelo que a burocracia era a
única via acessível a esta elite colonial emergente (Cahen, 1993, p. 49).
Graças a estes privilégios, os assimilados eram geralmente vistos como um grupo
à parte, distinto dos portugueses, bem como do resto da população africana
(Penvenne, 1982).
Os assimilados que constituíam a facção radical da FRELIMO eram sobretudo
oriundos do Sul, em particular da capital e da região interior vizinha (Minter,
1996). Embora os críticos do partido usassem este facto para afirmar que a
FRELIMO sofria de um «domínio sulista», o problema talvez esteja mais
relacionado com a economia política colonial, os antecedentes sociais e as
oportunidades educacionais do que com laços étnicos ou regionais específicos.
Devido à localização da capital no Sul e à proximidade desta região com os
mercados da África do Sul, verificavam-se aqui mais oportunidades de
envolvimento no comércio e na migração laboral e de acesso ao sector
governamental, de base urbana (Pitcher, 2002). Além disso, os sulistas
beneficiavam do acesso às escolas das missões protestantes, que tinham sido
impedidas de trabalhar no Centro e no Norte do país. Estas escolas
proporcionavam a melhor educação disponível aos negros (Cruz e Silva, 1998 e
2001; Pitcher, 2002). Os sulistas eram, pois, maioritariamente oriundos de
contextos urbanos ou periurbanos e, embora muitos deles procedessem de famílias
com origens nobres ou de alto estatuto no período pré-colonial, estavam já
profundamente integrados na economia colonial e o seu estatuto assentava na
posição que ocupavam dentro da hierarquia colonial. Contudo, tornou-se visível
que a sua mobilidade social seria sempre limitada e o aumento da imigração
portuguesa após a Segunda Guerra Mundial deixou-os numa situação precária.
Muitos sentiam uma forte atracção pelos aspectos do progresso que o
colonialismo afirmava representar; porém, devido às restrições do sistema, a
modernidade à qual aspiravam parecia estar sempre para lá do seu alcance (Hall
e Young, 1997). O descontentamento cresceu entre os assimilados, que se uniram na defesa de causas comuns a outros grupos igualmente
insatisfeitos com o sistema colonial — brancos radicais, mulatos (miscigenados) e indianos. Durante a luta pela libertação, estes grupos,
aliados aos comandantes das guerrilhas do Norte, formaram a facção radical da
FRELIMO. Isto não significa que todos os assimilados tenham aderido à FRELIMO. De facto,
muitos deles não o fizeram, e a liderança da FRELIMO olhava-os com profunda
desconfiança, pois não tinham sido «purificados» pela sua participação na luta
(Hall e Young, 1997; Pitcher, 2002). A própria pequenez deste grupo — uma
minoria dentro de uma minoria — contribuía para a sua unidade e coesão, mas causou
também muitos problemas no período após a independência. Como me foi dito por
um professor universitário moçambicano: «O nosso problema era que tínhamos uma
elite suficientemente grande para formar um movimento, mas não suficientemente
grande para governar o país.» Porém, as origens comuns dos membros deste grupo,
oriundos da classe assimilada sobretudo urbana ou não agrícola, ajudaram a
criar uma visão específica sobre a criação de uma nova nação após a obtenção da
independência, que ocorreria em 1975. Tratava-se de uma visão grandiosa de
modernização construída com base nas raízes e preconceitos do grupo, que tendia
a ver os camponeses, a grande maioria da nação, como tabula rasa, ou seja, algo que
podia ser completamente remodelado de acordo com os seus planos para o futuro
(Geffray, 1991; Hall e Young, 1997; O’Laughlin, 2000).
Como fez notar Fry, o período marxista-leninista de
Moçambique (1977--1983) seguia, de facto, uma lógica assimilacionista: Apesar
do discurso anticolonial do centro e da FRELIMO, em geral, é impossível deixar
de observar que o projecto socialista em Moçambique era acima de tudo mais
«assimilacionista» do que os portugueses jamais se atreveriam a imaginar e é
tentador sugerir que esta é uma das razões pelas quais a elite moçambicana
considerava tão atractivo o programa socialista.
Em termos estruturais, havia pouca diferença entre um
Estado autoritário capitalista governado por um pequeno grupo de portugueses e
assimilados «esclarecidos» e um Estado autoritário socialista gerido por um
igualmente reduzido e esclarecido grupo de vanguarda [2000, p. 129].
Fry sugere que, a partir do fim da guerra civil, a
elite da FRELIMO começou a reconceptualizar o seu lugar no tecido nacional e a
defender uma perspectiva mais local e menos elitista. Esta evolução acompanha a
mudança da lógica de poder em Moçambique, pois torna-se agora necessário à FRELIMO
distanciar-se das suas raízes assimiladas e alargar a sua
base de apoio. Assim, para Fry, é como se a FRELIMO, que desde sempre
desprezara o quadro cultural da maioria da nação, tivesse, finalmente, de se
submeter a ele, ou pelo menos de o respeitar (2000, p. 135).
Fry defende um ponto importante ao reconhecer algumas
das continuidades ideológicas entre o sistema da assimilação e o projecto
socialista pós--independência. Ao contrário do que se passava no período
colonial, em que os benefícios da assimilação eram restritos a alguns poucos
que serviam de exemplo aos seus irmãos mergulhados nas trevas da ignorância, a
elite da FRELIMO pretendia recriar toda a nação à sua imagem. Não pretendo
afirmar, porém, que o socialismo em Moçambique tenha sido apenas um projecto mais
ambicioso de assimilação. Embora o
sistema assimilacionista possa ter fornecido uma base ao socialismo da FRELIMO,
as diferenças entre ambos são muito reais. Para alcançar o estatuto de
assimilado, um indígena tinha necessariamente de satisfazer determinados
critérios legais, e a verdade era que esse seu novo estatuto não era mais do
que uma entrada parcial no projecto de modernização colonial. Pelo contrário, o
objectivo da FRELIMO era subverter inteiramente este sistema e criar a sua
própria forma de modernidade.
Durante a fase inicial do período socialista, o âmago
do programa da FRELIMO para a construção de uma nação moderna era a criação de
um homem novo. Na perspectiva
dos líderes revolucionários, este processo tinha já começado nas zonas
libertadas que a FRELIMO tivera sob o seu controlo durante o período de luta
armada contra os portugueses. O homem novo seria algo completamente diferente. De acordo com um dos principais
teóricos da FRELIMO neste domínio específico, Sérgio Vieira, o homem novo representava uma ruptura decisiva com as suas encarnações anteriores — homem
feudal, homem colonial e homem burguês (1977, p. 3). O homem burguês era de
importância relativamente menor na análise de Vieira, já que em Moçambique,
durante o período colonial, não se tinham desenvolvido as condições necessárias
à criação em ampla escala de uma burguesia independente.
Após a partida dos portugueses existia apenas uma
pequena burguesia (ibid., p. 9). De muito
maior importância eram o homem feudal e o homem colonial. O primeiro estava
ligado à cultura e às estruturas de poder «tradicionais», descritas como
desiguais, patriarcais, gerontocráticas, supersticiosas e estáticas. Todavia,
de acordo com Vieira, este sistema não existia por
si só, mas enquanto subsidiário do colonialismo, já
que até o mais poderoso
chefe indígena devia obediência ao mais subalterno dos
funcionários coloniais
(
ibid., p. 11). A
última categoria, a do homem colonial, correspondia
328
Jason Sumich
aos
assimilados: «[o homem
colonial] é um pequeno-burguês que procura
recuperar e integrar modelos tradicionais, feudais, na
sociedade burguesa»
(
ibid., p. 9).
À excepção dos antigos
assimilados, ninguém sabia
ao certo o que seria
este
homem novo. Teria de se
basear na ciência, na «racionalidade» e no
trabalho colectivo, mas estava ainda em processo, era
algo que não nascera
ainda por completo (
ibid., p. 25). Os assimilados tomavam como
modelo a
identidade nacional portuguesa; pelo contrário, o
homem novo seria um ser
universal, bem como a encarnação da emergente
personalidade e cidadania
moçambicana. De acordo com Cahen, este processo era
uma criação de uma
elite que não concebia a existência de um Estado sem
uma nação e procurava,
assim, criar uma nação à sua imagem (1992 e 1993).
Ainda que esta ideia de
uma recriação dramática da personalidade moçambicana
pudesse ter interessado
relativamente pouco à vasta maioria da população, o
seu poder de atracção
para os militantes da FRELIMO era bastante real. Como
me foi dito por um
antigo membro do partido: «Ser chamado um
homem novo por Samora
Machel era verdadeiramente emocionante. Nós íamos
construir uma nova
nação, parte de um novo mundo, era tudo urgente […]
vivíamos num estado
permanente de exultação.» O
homem novo seria a
expressão concreta — ou,
para usar a terminologia da época, a vanguarda — do
grande projecto de
modernização. Seria um novo tipo de cidadão, a
verdadeira encarnação da
ideologia de modernidade da FRELIMO.
Grande parte dos fundamentos da ideologia de
modernidade da FRELIMO
provinha das experiências daqueles que a lideraram
durante o colonialismo e
as cisões da luta de libertação. Assim, entrava
frequentemente em choque
com outras correntes nacionalistas que prevaleciam em
África, já que a
FRELIMO aliava o nacionalismo a uma ideologia
socialista universalista, em
detrimento de valores mais comuns, como o
afro-nacionalismo e a «autenticidade
». Porém, a formação desta ideologia assentava também
em aspectos
que tinham inspirado muitos outros movimentos
nacionalistas e revolucionários.
A FRELIMO esperava que uma experiência partilhada de
opressão
colonial pudesse criar a base para um sentimento de
cidadania comum
(Mondlane, 1969; Pitcher, 2002). Como nas teorias de
Frantz Fanon, pensava-
se também que a participação na luta de libertação e o
combate ao jugo
colonial através de actos de violência «purificadora»
pudessem ajudar a criar
um
homem novo (Fanon, 1963;
Museveni, 1971). Foi com base neste sentido
heróico da luta de libertação que os líderes da
FRELIMO procuraram
criar os alicerces de uma nova cidadania, enfrentando
desse modo um
problema que aflige frequentemente os movimentos
nacionalistas. O nacionalismo
é legitimado através de um sentido do carácter único
da nação; porém,
não é invulgar que os modernizadores nacionalistas
pareçam de certo modo
329
Ideologias de modernidade da elite moçambicana
emular aqueles que anteriormente os oprimiam
(Chakrabarty, 1997; Chatterjee,
1986).
A criação de um sentido partilhado de identidade
nacional era uma preocupação
central para os líderes da FRELIMO, como é atestado
pela ênfase
dada ao conceito de
homem novo. Embora a
participação na luta de libertação
devesse lançar os alicerces desta nova cidadania, só
uma pequena minoria de
cidadãos da nova nação tinha participado efectivamente
nela. Relativamente
ao resto da população, o partido enfrentava o dilema
de construir uma identidade
nacional ao mesmo tempo que tentava destruir os
vestígios da velha
sociedade. A abordagem adoptada pela FRELIMO foi
extremamente ambiciosa,
tendo em conta a falta de recursos e a fragilidade da
nação que
procurava criar. Uma das principais bases da
identidade nacional seria a
oposição a qualquer tipo de tradição «primordial».
Certas formas culturais,
como a dança e as artes, eram encorajadas, já que
demonstravam uma
identidade nacional única; porém, os comportamentos
culturais «tradicionais
» deviam ser abandonados (Mondlane, 1969). Agostinho
Neto, o líder do
MPLA angolano, definiu o tipo de posição que a FRELIMO
viria a assumir
ao afirmar o seguinte sobre o objectivo cultural do
seu partido: «Estamos a
tentar libertar e modernizar o nosso povo através de
uma dupla revolução:
contra as suas estruturas tradicionais que já não lhe
são úteis, como o
separatismo étnico, a crença na feitiçaria, a opressão
das mulheres — e
contra o domínio colonial» (cit. por Davidson, 1984,
p. 800).
A FRELIMO estava também empenhada em esmagar as
estruturas tradicionais
que, na sua opinião, já não serviam o povo. Todavia,
esta perspectiva
sobre a tradição era profundamente influenciada pelos
antecedentes
sociais dos líderes revolucionários, que aspiravam à
modernidade e se ressentiam
profundamente do facto de o colonialismo lhes ter
negado o acesso
total à mesma. Para esta elite, um regresso à «cultura
tradicional» não era
uma opção realista. A cultura tradicional estava
associada à derrota e à
humilhação; era a causa da fraqueza que possibilitara
a subjugação de Moçambique
pelos portugueses. Como fizeram notar Hall e Young, «a
elite da
FRELIMO e os estratos sociais que a apoiavam estavam
profundamente
convictos da superioridade da civilização moderna e da
necessidade de evoluir
até ao seu nível. A única forma de resolver estes
dilemas era ver o
«povo» como um vazio, mas possuidor de potencial para
o desenvolvimento
» (1997, p. 65). Obviamente, «o povo» não era um
recipiente vazio; no
entanto, para que houvesse desenvolvimento era
necessário destruir as suas
estruturas tradicionais. Assim que assumiu o controlo
das estruturas do
Estado, a FRELIMO utilizou o seu poder para cumprir
esse objectivo. Pouco
depois da independência, o novo governo emitiu uma
enorme abundância de
decretos. A autoridade tradicional foi abolida, o
lobolo (dote pago pela
fa330
Jason Sumich
mília do noivo à da noiva) foi declarado ilegal, os
homens polígamos estavam
impedidos de se filiarem no partido, as cerimónias
tradicionais foram proibidas,
as instituições religiosas passaram a ser olhadas com
desconfiança e
os praticantes de «feitiçaria» corriam o risco de
serem enviados para campos
de reeducação. Ao mesmo tempo, empreenderam-se
esforços no sentido de
transferir os camponeses dos seus pequenos agregados
residenciais dispersos
para aldeias comunais centralizadas, que se tornariam
«cidades no mato».
A FRELIMO travou uma intensa batalha contra aquilo a
que chamava superstição
ou «obscurantismo», procurando substituí-lo pela
racionalidade e
pelo socialismo científico. A enorme ambição dos seus
propósitos era limitada,
na prática, pela fraqueza do Estado no período que se
seguiu à independência.
O partido monopolizara o poder, mas o país estava
efectivamente
na bancarrota e havia poucos recursos ou pessoal
habilitado para levar a
efeito os planos do novo regime. Com o esmorecer do
entusiasmo entre
alguns sectores do campesinato, a FRELIMO viu-se cada
vez mais forçada
a recorrer a métodos coercivos como forma de combater
a resistência
popular aos seus planos de modernização.
A reacção aos planos modernizadores da FRELIMO variou
de região para
região. Em algumas zonas, os planos foram relativamente
bem sucedidos.
O trabalho de Norman (2004) na província de Gaza, no
Sul, dá testemunho
de como, após uma cheia que destruiu as antigas casas
e devido a uma
desconfiança prévia resultante do papel da autoridade
tradicional no recrutamento
de trabalhadores forçados durante o período colonial,
os planos da
FRELIMO para transferir os camponeses para aldeias
comunais e abolir a
autoridade tradicional gozaram de grande popularidade.
Na província
nortenha de Cabo Delgado, um dos bastiões da FRELIMO,
os efeitos foram
desiguais. De acordo com o estudo de West (2001) no
planalto de Mueda,
alguns aspectos do programa das aldeias comunais foram
bem acolhidos pela
população e a concentração de grandes grupos de
pessoas criava novas
oportunidades de sociabilidade; porém, verificaram-se
também numerosas
acusações de bruxaria, já que as sanções contra a
feitiçaria se revelaram
ineficazes quando aplicadas a uma população tão vasta.
Noutras áreas ainda
as medidas da FRELIMO destruíram formas de organização
social muito
subtis, sem proporcionarem um modelo de substituição
coerente. O trabalho
de Geffray (1991) no distrito de Erati descreve a
fúria popular contra a
destituição dos líderes tradicionais e os esforços
empreendidos para transferir
a população para aldeias comunais. O sucesso ou
fracasso da revolução social
modernizadora da FRELIMO dependia frequentemente de
condições locais,
que raramente eram tomadas em linha de conta pelos
líderes em Maputo.
Na época em que tomou o poder, a FRELIMO gozava de um
formidável
grau de apoio popular, pelo que os seus líderes
acreditavam ser capazes de
mobilizar a população para o esforço heróico da
modernização do país.
331
Ideologias de modernidade da elite moçambicana
Como se pode ver no estudo de Donham (1999) sobre os
derg da Etiópia,
grande parte do poder de atracção do comunismo para os
movimentos
radicais africanos não estava na eventual utopia
prevista por Marx, mas nos
exemplos concretos da URSS e da China, onde uma
pequena mas determinada
elite assumira o poder em nações agrárias
«retrógadas», convertendo-
-as em potências industriais à escala mundial no
espaço de poucas décadas.
A maioria da população moçambicana acolheu com júbilo
a conquista da
independência, mas mostrar-se-ia mais ambivalente com
a revolução social
modernizadora da FRELIMO. No entanto, alguns segmentos
da população
acreditavam verdadeiramente no projecto da FRELIMO —
sobretudo os
mais jovens e, ironicamente, os mais ricos —, o que
legitimava o poder do
partido. Outros, porém, eram-lhe totalmente hostis.
Apenas dois anos após
a guerra da independência Moçambique mergulhava numa
nova guerra.
A FRELIMO apoiava o movimento de libertação da vizinha
Rodésia e, em
retaliação, o regime rodesiano dominado pela minoria
branca constituiu um
exército rebelde, a RENAMO (Resistência Nacional de
Moçambique), composto
por dissidentes moçambicanos. Após a queda do regime
rodesiano e
a declaração de independência do novo Zimbabwe, a
África do Sul tornou-
-se o patrocinador da RENAMO e a guerra civil devastou
o país, causando
a morte de 1 milhão de pessoas numa população de cerca
de 16 milhões.
Muitos dos progressos reais do governo da FRELIMO em
termos de educação
e saúde foram destruídos. Apesar da sua brutalidade, a
RENAMO conquistou
apoios nas regiões mais hostis à revolução social da
FRELIMO. Em algumas
zonas, a RENAMO foi inicialmente recebida como uma
força de libertação;
noutras, porém, a população não tomou qualquer
partido, mantendo-se indiferente
a ambas as forças em conflito (Geffray, 1991; Hall e
Young, 1997). Com
base nas ideias de Cahen, Geffray defendeu que a
FRELIMO habitou em
grande medida um «país imaginário» construído sobre um
sonho ideológico de
futuro e que as tentativas de implementação deste
sonho alienaram profundamente
uma grande parte da população, permitindo à RENAMO —
um
movimento que começara por ser uma agressão financiada
por fundos estrangeiros
— construir uma base social e embarcar em algo que
viria a
transformar-se numa verdadeira guerra civil (Geffray,
1991). Embora o trabalho
de Geffray tenha suscitado um grande número de
críticas, existe muita
verdade nas suas ideias fundamentais
7. Contudo, há sempre o risco de se
levarem demasiado longe tais ideias; temos de
reconhecer que determinados
elementos da ideologia de modernização da FRELIMO exerceram
também
algum poder de atracção sobre alguns sectores da
população do país.
Independentemente do poder de atracção das duas visões
em conflito, a
verdade é que a nação moçambicana estava em crise. Em
1984, a elite do
partido começou a compreender a gravidade da situação
e a tentar distanciar-
7
Para uma crítica em profundidade de Geffray, v.
Dinerman (1994).
332
Jason Sumich
-se das suas posições mais radicais — mas por essa
altura era já demasiado
tarde, pois a FRELIMO tinha já perdido o controlo sobre
uma grande parte
do país, mantendo-se firme apenas nas principais
cidades. As tentativas de
afastamento da ideologia socialista, iniciadas em 1983
e 1984, ganharam
alento a seguir à morte do primeiro presidente, em
1986. Após o colapso da
União Soviética, e numa tentativa para desconcertar a
RENAMO «anticomunista
», a facção pró-capitalista da FRELIMO ganhou
ascendência e o socialismo
acabaria por ser abandonado em 1989 (Pitcher, 2002). A
paz chegou,
finalmente, em 1992 e foi baseada num acordo para abandonar
o sistema de
partido único e adoptar uma democracia multipartidária
capitalista. Embora
a FRELIMO tenha vencido todas as três eleições que se
celebraram no pós-
-guerra, em 1992 a impressão preponderante era que a
sua ideologia de
modernidade jazia despedaçada entre as ruínas
fumegantes da nação.
Todavia, apesar de todas as mudanças, da passagem de
um Estado socialista
de partido único para uma democracia capitalista
liberal, a ideologia
de modernidade sobreviveu e continua a funcionar como
uma afirmação de
poder, ainda que tenha mudado de forma. Como fizeram
notar Hall e Young
(1997, p. 219), após o fracasso do socialismo no
esforço de modernização
do país, a elite do partido decidiu seguir o outro
grande caminho para a
modernidade — o liberalismo. O capitalismo neoliberal
possui similaridades
raramente mencionadas com o socialismo revolucionário,
no sentido em que
ambos têm presunções messiânicas quanto à sua
capacidade de reformarem
profundamente a sociedade e de criarem algo de novo
(West, 1997). Na
prática, ambos assentam também numa intervenção
estatal maciça com vista
ao estabelecimento das condições para a sua
implementação (Hall e Young,
1997, p. 221). Embora existam divergências entre as
facções rivais da
FRELIMO relativamente ao modo de implementação da sua
ideologia de
modernidade, esta continua a constituir uma das bases
do poder da elite.
A ideologia de modernidade da elite nasceu como uma
grandiosa tentativa de
redefinição do lugar de Moçambique dentro da
comunidade internacional.
Após a queda do socialismo, esta tornou-se
progressivamente um importante
indicador de
status e uma
persistente reivindicação e afirmação de
poder social por parte da elite. A capacidade das
elites de se verem a si
mesmas como «modernas» — dentro de uma nação que,
segundo elas, o
não é — permite-lhes afirmar a sua diferença, criando
um sentido de identidade
e de coesão. Até mesmo certos elementos do antigo
conceito de
homem novo
sobrevivem actualmente entre os membros mais jovens da
elite,
ainda que sob uma forma muito diferente. Para o
exemplificar transcrevo de
seguida uma conversa que tive com uma jovem mulher de
uma família de
elite, durante a qual ela me transmitiu a sua visão
pessoal sobre os principais
problemas que afligem Moçambique na actualidade. Em sua
opinião, a causa
333
Ideologias de modernidade da elite moçambicana
fundamental das dificuldades do país não era de
natureza política ou económica,
antes radicava na própria população:
O problema é que nós, negros, continuamos duzentos
anos atrasados.
Isso vê-se em toda a parte. Quando chegamos ao poder,
a única preocupação
é encher os bolsos. O mais importante é a tua posição
e os teus
contactos. Quando as coisas correm mal, culpa-se
qualquer coisa de
fora, o Ocidente, ou os espíritos, o problema é sempre
dos outros. Os
brancos e os indianos podem roubar este país à
vontade, nós damos-lho
de graça. Se um negro abre uma loja numa zona de
indianos, os outros
indianos unem-se todos para o obrigarem a fechar as
portas. Nós não
somos assim, limitamo-nos a pedir dinheiro. Depois, se
alguma coisa
corre mal, vão a um feiticeiro para tentar perceber o
que aconteceu.
E não é só em caso de doenças, quer dizer, eles
percebem de ervas e
nesses casos a coisa talvez funcione. Vão ao
feiticeiro por razões estúpidas,
como problemas sentimentais. As pessoas acham que a
magia
pode impedir o parceiro de as trair. Ficavas admirado
se conhecesses
essas pessoas, pessoas que andaram na universidade,
que têm estudos e
que deviam ter mais juízo.
Uma vez mais, os problemas da nação resultam do facto
de os seus
habitantes serem «supersticiosos», em vez de
«racionais». De facto, os
principais alvos desta crítica são as pessoas que
deviam estar mais perto do
ideal do
homem novo — aquelas que têm estudos e que deviam ter mais
juízo.
Embora a retórica e os métodos tenham mudado, esta
jovem mulher
parece continuar a acreditar nos objectivos gerais da
ideologia de modernidade,
se bem que não esteja certa de que eles tenham sido
alcançados. Na
secção seguinte analisarei o modo como esta ideologia
é inculcada através de
práticas educacionais específicas e o modo como as
suas afirmações de
poder social são apresentadas através de determinadas
formas de consumo,
particularmente entre uma nova geração que nasceu após
a independência e
para a qual o socialismo não passa de uma memória de
infância. A meu ver,
a ideologia de modernidade, nas suas formas em
mudança, tem sido fundamental
no reforçar da coesão da elite, bem como na abertura
de novas
oportunidades de expansão desse mesmo grupo, cujo poder
assenta na sua
ligação ao partido e, por extensão, no seu controlo do
Estado.
DISTINÇÃO PELA EDUCAÇÃO
Em Moçambique a educação é imensamente respeitada, em
parte talvez
devido ao péssimo historial do Estado colonial nessa
matéria, como é atestado
por um dito popular entre a geração mais velha de
Maputo: «As antigas
colónias britânicas tiveram escolas, estradas,
caminhos-de-ferro e hospitais,
334
Jason Sumich
ao passo que os portugueses só serviam para construir
igrejas.» Ainda que
exagerada, esta acusação encerra um fundo de verdade.
Mesmo pelos padrões
coloniais, geralmente baixos, Portugal investiu uma
insignificância na
educação da população africana, delegando normalmente
essa responsabilidade
na Igreja Católica (Cruz e Silva, 1998 e 2001;
Pitcher, 2002). Na década
de 1960, o Estado colonial aumentou drasticamente as
oportunidades educativas
ao dispor da população africana, num esforço para
conquistar «o coração
e o espírito» do povo, para o dissuadir de lutar pela
libertação, ainda
que com escassos resultados práticos: «Apenas 1% da
população — cerca
de 80 000 pessoas — tinha ido além dos quatro anos de
ensino básico e a
maioria destes eram colonos portugueses. Em 1973
apenas 40 dos cerca de
3000 estudantes universitários eram africanos»
(Minter, 1996, p. 22).
De acordo com as estimativas, a taxa de analfabetismo
aquando da independência
do país ultrapassava os 90% (Hanlon, 1990; Munslow,
1983).
Durante o período colonial, a melhor instrução a que a
maioria da população
podia aspirar não ia além de alguns anos de catecismo
na missão católica
local a troco de emolumentos e de trabalho manual
(Cruz e Silva, 2001;
Gómez, 1999). Devido à sua raridade, o acesso a uma
educação adequada
tornou-se um sinal de distinção, funcionando como uma
entrada simbólica
numa modernidade mais ampla
8. O facto não deverá surpreender-nos, já que
um indivíduo teria de pertencer a uma família de
estatuto relativamente
elevado para ter acesso à educação, a qual lhe
permitia reforçar o seu
estatuto como membro da elite. Por meio da educação,
um indivíduo podia
obter emprego no funcionalismo público, nos caminhos
de ferro, ou abraçar
uma carreira de enfermeiro, professor ou tradutor.
Estes empregos, quer
através da sua relativa importância, quer através dos
seus adereços simbólicos
— um fato e uma gravata, uma casa num bairro de
assimilados e,
acima de tudo, um automóvel —, tornavam bem evidente o
lugar de destaque
que os seus detentores ocupavam na hierarquia social.
A educação permitia
a uns poucos afortunados progredir (tanto quanto
possível) no sector «moderno
» e predominantemente urbano da economia colonial, e é
precisamente
aqui que podem ser encontradas as raízes da ideologia
de modernidade. Não
pretendo com isto afirmar que todos os assimilados
aderiam inteiramente ao
sistema ou que esta forma de entrada no conceito
colonial de modernidade
eliminava tudo o que existia previamente — porém, não
há dúvida de que o
modificava. Um excelente exemplo pode ser encontrado
numa história que
ouvi contar. Durante o período colonial, um assimilado
mais velho, compreendendo
que já não poderia exigir o
lobolo pelo casamento
da filha, pediu,
8
Havia diferenças em relação às missões protestantes
suíças que operavam no Sul, se bem
que muitos dos seus alunos pertencessem também a
famílias relativamente abastadas. Para mais
pormenores, v. Teresa Cruz e Silva (1998 e 2001).
335
Ideologias de modernidade da elite moçambicana
em vez disso, como pagamento simbólico, uma gravata,
caso o pretendente
fosse aceite. Com isto, o homem não só contornava as
restrições impostas
pela assimilação, como também reforçava o seu estatuto
social, já que a
gravata era um símbolo da sua integração na economia
«moderna». Para os
assimilados, uma gravata era praticamente um
distintivo de posto (comunicação
pessoal de Granjo). Outros ex-assimilados disseram-me
que, quando
frequentavam escolas portuguesas de elite durante o
período colonial, muitos
dos seus colegas deixavam de os ver como negros. A
educação conferia
estatuto e autoridade a um indivíduo, não só aos olhos
da população africana
em geral, como também, tanto quanto possível, perante
a minoria portuguesa.
Não deixa de ser muito revelador o facto de Eduardo
Mondlane, o
primeiro líder da FRELIMO, ter sido também o primeiro
negro a concluir um
curso universitário em Moçambique.
Quando tomou o poder, a FRELIMO estava determinada a
introduzir
grandes melhorias no sistema educacional da sua nova
nação. Isto porque a
vasta maioria da população portuguesa tinha abandonado
o país, o que decapitara
virtualmente a classe profissional e administrativa de
Moçambique,
mas também porque a educação seria um dos alicerces de
um novo sentido
de identidade nacional. Por meio da educação, os
ideais da FRELIMO poderiam
ser disseminados entre sectores da população que
tinham participado
pouco ou nada na luta da libertação — as escolas
formariam um novo tipo de
cidadão, o
homem novo baseado na
ciência e na «racionalidade» (Gómez,
1999). Foram empreendidos esforços no sentido de
alargar o sistema
educativo a todo o país, mas a falta de recursos e de
pessoal habilitado
dificultava o estabelecimento do sistema nas zonas
rurais. Assim, os esforços
do governo concentraram-se sobretudo nas cidades,
particularmente em Maputo,
o coração do regime. Naema, actualmente professora,
descreveu do
seguinte modo o sistema de educação revolucionário
durante os primeiros
tempos da independência:
Era tudo muito empolgante. Antes da libertação não
sabíamos grande
coisa sobre a FRELIMO. Eu lembro-me de ter visto a
palavra FRELIMO
escrita numa parede, mas o meu tio disse-me que nunca
a repetisse a
ninguém, caso contrário podia meter-me em sarilhos.
Quando a FRELIMO
chegou e expulsou os portugueses, toda a gente
festejou, em especial os
mais novos. Íamos construir um novo Moçambique. Eles
[a FRELIMO]
vinham às nossas escolas para nos ensinarem coisas
sobre o nosso país.
Havia muitas manifestações, as pessoas pegavam em
cartazes e, todas
juntas, formavam uma bandeira, como fazem os
norte-coreanos, sabe.
Aos domingos fazíamos serviços de limpeza voluntários
na cidade; eles
queriam que fôssemos bons cidadãos. Era uma maravilha.
Hoje em dia
a cidade está imunda e ninguém faz nada. Muitos dos
meus alunos nem
336
Jason Sumich
sequer sabem a letra do hino nacional. O patriotismo
já não significa
nada, e eles já nem tentam ensiná-lo como antigamente.
Naema apoiou com entusiasmo as tentativas de
construção da nação e,
enquanto adolescente, foi contagiada pela euforia
desses tempos. Outras
pessoas, porém, puseram em dúvida a qualidade do muito
ampliado sistema
educativo, inclusivamente em Maputo, onde as
instalações eram geralmente
de qualidade superior. Uma jovem mulher descreveu do
seguinte modo a
educação que recebeu pouco depois da independência:
Foram tempos estranhos. Os antigos guerrilheiros
apareciam nas escolas
e davam aulas. Muitos deles nem sequer tinham recebido
qualquer
tipo de instrução, mas, uma vez que tinham acabado de
libertar a nação,
estavam convencidos de que isso era o suficiente.
Sentavam-se em frente
às turmas e falavam das suas vidas. Pensavam que era
assim que se
ensinava. Mesmo os outros professores quase não tinham
experiência
nenhuma. Muitos deles eram muito jovens, com apenas
alguns anos de
escola. Os meus professores e eu aprendemos a ler
juntos.
Muitos membros da FRELIMO fazem eco desta apreciação
bastante
desfavorável. Um antigo oficial contou-me o seguinte:
«Foram tempos de grande entusiasmo. Estávamos
convencidos de
que podíamos fazer um melhor trabalho do que os
portugueses. Eles
eram estrangeiros e queriam explorar o nosso país para
seu próprio
benefício. Nós íamos dar uma vida melhor ao nosso
povo. Éramos muito
ambiciosos e muito jovens; para pessoas da nossa
idade, tínhamos enormes
responsabilidades. Era aí que estava uma parte do
problema, julgo
eu. Queríamos educar a nação, mas nós próprios não
tínhamos educação
praticamente nenhuma.
De início, a revolução social da FRELIMO visava
modernizar toda a
nação e a educação era a pedra angular dessa política.
Contudo, este
ambiciosíssimo plano tinha de ser posto em prática com
recursos mínimos
e muito pouco pessoal habilitado. Aquilo que começou
por ser um grande
esforço em benefício de toda a nação em breve
começaria a ser restringido
à população urbana, em geral, e à elite, em
particular. Embora pretendesse
eliminar por completo o antigo sistema de diferenciação
social, a FRELIMO
começou a reproduzir determinados aspectos do mesmo.
Um dos exemplos mais visíveis do aparecimento de novas
distinções foi
a criação da escola da FRELIMO em Maputo, destinada
aos filhos dos altos
membros do partido. O propósito desta escola era
instruir os líderes do
337
Ideologias de modernidade da elite moçambicana
futuro, e aqui a ligação entre educação de qualidade e
estatuto e poder era
bastante explícita, como é demonstrado pelo exemplo
seguinte.
Catarina nasceu em 1975 no seio de uma família ligada
à FRELIMO; o
seu pai foi ministro do governo. Foi educada na escola
da FRELIMO até aos
9 anos. Havia mais 30 alunos na sua turma, todos eles
oriundos de famílias
de elite. De acordo com Catarina, as regras de
disciplina da escola eram
muito rígidas. Quando um professor entrava na sala, os
alunos tinham de
se levantar, saudar o professor e aguardar permissão
para se sentarem.
O programa de estudo era rigoroso e os alunos tinham
melhores professores
(na sua maioria expatriados), melhor comida e melhores
materiais. Tinham
até um autocarro para os levar e trazer, um luxo
praticamente inaudito
naquela época. Os estudantes normais, que iam a pé
para a escola, costumavam
zombar deles quando os viam passar, comparando-os a
gado numa
camioneta. Outra amiga minha lembra-se de sentir ódio
pelos privilégios dos
alunos da escola da FRELIMO, confessando-me que ela e
os amigos costumavam
arremessar pedras contra o autocarro escolar quando
este passava
na rua.
O propósito declarado desta escola era ensinar os
futuros líderes a construírem
o socialismo. Porém, apesar da retórica igualitária, a
escola desempenhou
um papel essencial na criação de um grupo privilegiado
de pessoas
enquanto classe à parte. A julgar pela hostilidade que
a escola da FRELIMO
inspirava, fica-se com a impressão de que o seu
propósito era amplamente
reconhecido. A crescente estratificação social foi
inicialmente desencadeada
pelo enorme aumento da mobilidade social,
particularmente em Maputo, que
se verificou após a independência do país. O êxodo dos
portugueses deixara
vagos praticamente todos os cargos profissionais e
administrativos do país
e, pela primeira vez, os moçambicanos viam-se
promovidos às posições
anteriormente ocupadas pelos colonialistas. Durante o
meu trabalho de campo
recolhi numerosos testemunhos de estudantes que se
viam subitamente
promovidos a professores, de trabalhadores que davam
por si, praticamente
de um dia para o outro, nas juntas que geriam as suas
fábricas (Sumich, no
prelo). Quase todos aqueles que tivessem algum tipo de
instrução conseguiam
arranjar emprego, se o desejassem. Com a abertura do
sistema
educativo não apenas aos jovens, como também aos
adultos, a oportunidade
de se obter distinção e poder sociais através da
educação parecia de facto
ter sido alargada a toda a população urbana. No
entanto, devido à crise
económica e à guerra civil que continuava a alastrar,
em breve se desenvolvia
uma economia de privação, pelo que, para muitas
pessoas, a educação
e a economia «moderna» continuavam a estar para além
do seu alcance.
Pude compreendê-lo claramente durante um jantar com
uma família de
Maputo. Depois da refeição, a anfitriã mostrou-nos um
álbum de fotografias
dos primeiros anos do seu casamento, logo a seguir à
revolução. Ao olharem
338
Jason Sumich
para as fotografias, os filhos dela e alguns dos
parentes mais jovens desataram
a rir. Como acontece com os adolescentes de todo o
mundo, os
jovens achavam divertidos os enormes penteados «afro»
e as roupas fora de
moda dos pais, mas estavam também chocados ao notarem
a extrema
magreza de todos os fotografados e a péssima qualidade
das suas roupas e
das peças de mobiliário. A anfitriã tentou explicar
que naquele tempo —
o
tempo de fome,
como lhe chamou — não havia mais nada para comprar.
Ouvi com frequência comentários semelhantes durante as
discussões furiosas
a que assisti durante o meu trabalho de campo sobre o
legado do período
socialista. Alguns afirmavam que no
tempo de Samora (a presidência
de
Samora Machel) as coisas eram melhores, já que pelo
menos havia ordem,
um objectivo claro e pouca criminalidade; outros, mais
cínicos, contrapunham
que a criminalidade era rara porque não havia nada
para roubar. Outros
ainda defendiam essa espécie de solidariedade negativa
do período socialista,
afirmando que, pelo menos nessa altura, todos (a elite
e a população em
geral) eram igualmente pobres, ao contrário do que se
verifica no presente,
dominado por elites abastadas que tudo monopolizam.
Porém, mesmo os
mais fervorosos defensores do tempo da revolução
admitiam que, apesar da
solidariedade e da euforia em torno da construção da
nova nação, os tempos
eram muito difíceis e a maioria das pessoas passava
fome — um caso à
parte era o dos poucos felizardos que tinham contactos
em Portugal e que
regressavam das suas viagens tão carregados de
produtos que o aeroporto
mais parecia um mercado de rua. Embora a FRELIMO
tivesse conseguido
alargar o sistema, a distinção e o estatuto que ele
simbolizava continuavam
a ser difíceis de alcançar, mesmo para a elite privilegiada
da capital.
A transição para o capitalismo não atenuou
necessariamente esta situação.
Em alguns casos houve talvez um agravamento das
diferenças de estatuto e,
uma vez mais, a disponibilidade de novos tipos e
formas de educação assinalou
mudanças mais alargadas dentro da ideologia de
modernidade. A escola
da FRELIMO há muito foi encerrada, mas tal não
significa que os filhos da
elite tenham sido reintegrados no sistema de ensino
público frequentado pela
maioria da população; na verdade, afastaram-se ainda
mais dele graças a uma
rede emergente de escolas privadas e internacionais.
Bastará hoje um rápido
passeio por Maputo para que notemos as diferenças
entre as escolas da elite
e as escolas públicas. A cidade tem muitas escolas,
mas a maioria delas está
em mau estado de conservação, com a tinta das paredes
descascada e os
vidros das janelas partidos. Os estudantes passam por
estes edifícios ao
longo do dia, vaga após vaga, já que o excesso de
alunos obriga as escolas
a trabalharem por turnos. No outro lado da cidade, no
Bairro Triunfo (uma
zona de elite), a situação é muito diferente. É numa
rua sem saída, algo
resguardada, ligeiramente desviada da estrada
principal, que se situam muitas
das escolas privadas e internacionais da capital.
Embora a rua não esteja
339
Ideologias de modernidade da elite moçambicana
alcatroada, a diferença entre estas escolas e as
instituições públicas é evidente.
Muitas delas têm dois ou três andares, as paredes
estão pintadas de
fresco, as janelas intactas e os alunos são deixados à
porta por uma grande
variedade de carros e jipes de luxo. As instalações
são de qualidade muito
superior, os professores (moçambicanos e estrangeiros)
contam-se entre os
mais competentes do país e as propinas mensais
oscilavam, em 2002-2004,
entre os 100 dólares — um montante muito elevado,
mesmo para uma
família de classe média — e os 1000 dólares, um valor
que excede em muito
as possibilidades de todos os moçambicanos que não
pertençam à elite.
Embora muitos dos jovens da elite frequentem escolas
no estrangeiro — a
África do Sul, a Suazilândia, o Brasil, Portugal e o
Reino Unido encontram-
-se entre os destinos mais comuns —, a maioria deles
completa a instrução
básica nestas escolas privadas e internacionais. A
maior parte destes jovens
de elite desconhece em absoluto as escolas públicas, e
as diferenças de
classe em Maputo são claramente demonstradas pelo tipo
de escola que se
frequenta.
Uma vez que a educação é um dos pontos fundamentais da
ideologia de
modernidade da elite, as diferenças de acesso à mesma
revestem-se de um
poder tanto simbólico quanto real. A elite dominante
de Moçambique obtém
o seu poder por meio da sua ligação ao Estado e ao
partido da FRELIMO.
Sob este aspecto, desenvolveu algumas das
características de algo a que se
tem chamado
burguesia estatal (Leys, 1982;
Cohen, 1982). Todavia, a
queda do socialismo abriu novas oportunidades aos
membros desta elite, que
se mostram cada vez mais propensos a ultrapassarem as
fronteiras de
Maputo e a expandirem-se para redes internacionais. A
privatização dos bens
do Estado permitiu à elite da FRELIMO adquirir
empresas, propriedades e
casas e o influxo de companhias multinacionais e de
organizações de apoio
ligadas à comunidade internacional proporcionou também
novas e lucrativas
oportunidades aos antigos membros do governo e suas
famílias. Muitos dos
membros da elite passam a sua vida profissional numa
rotatividade entre o
governo, a comunidade internacional e as empresas
privadas. A educação de
qualidade superior proporciona à elite as qualificações
necessárias para tirar
proveito destas novas oportunidades, as quais
permanecem inacessíveis ao
resto da população, ainda que se afirme que o sistema
se baseia no mérito
pessoal. Isto não significa que não existam divisões
no seio da elite; muitos
dos membros mais estudiosos desprezam os menos
aplicados, alguns dos
quais, pelo que se ouve dizer, passam sete anos na
Cidade do Cabo a
tentarem concluir um curso de três anos. Continuam a
travar-se debates
ferozes sobre a direcção futura do país. Porém, os
membros da elite podem
recorrer ao argumento de que a sua posição elevada se
justifica plenamente,
já que eles são os únicos que possuem as qualificações
e a experiência
necessárias para governarem uma nação moderna. Esta
ideologia cria um
340
Jason Sumich
«campo unificador» que garante a coesão das diferentes
facções da elite e
constitui o núcleo da sua identidade de grupo
(Gledhill, 2002).
A educação e o estatuto de elite tendem a reforçar-se
mutuamente, com
a educação a fornecer as qualificações necessárias e a
entrada na elite, o que,
por sua vez, permite o acesso a redes sociais
extremamente poderosas. Esta
posição de domínio é expressa pelos membros da elite
através de determinados
padrões de consumo e de auto-apresentação. O facto
tornou-se-me
evidente durante uma conversa com uma mulher cujos
pais são membros
destacados da FRELIMO. Na opinião desta moçambicana, a
RENAMO não
tem capacidade para dirigir o país, já que os seus
membros não passam, de
acordo com as suas palavras, de camponeses incultos. A
mulher ilustrou as
suas afirmações com o seguinte exemplo:
Lembro-me do que se passou em 1992, quando foi
declarada a paz
e a RENAMO saiu do mato. Deram-lhes casas — pelo menos
aos sujeitos
mais importantes do partido. Era um dos termos do
acordo de paz.
Quando eles [RENAMO] aqui chegaram, não faziam ideia
de como se
vive numa cidade. Costumavam estender a roupa nos
relvados à frente
das casas, imagina! E esta gente acha que consegue
dirigir um país.
É uma anedota; eles nunca tinham saído do mato.
Perguntei-lhe se as coisas não teriam sido similares
quando a FRELIMO
«saiu do mato» pela primeira vez, terminada a guerra
da independência. Ela
retorquiu, surpreendida: «Claro que não. Os da FRELIMO
lutavam no mato,
mas sabiam viver numa cidade, não eram ignorantes.»
Assim, a auto-apresentação
com base no consumo de bens de prestígio — automóveis,
roupas
ocidentais e uma educação cara e de alta qualidade —
constitui um factor
crucial da expressão de modernidade e de poder social
(Bourdieu, 1984;
Vom Bruck, 2005). Trata-se de uma afirmação de
superioridade em relação
à maioria da população moçambicana, bem como de uma
afirmação de
igualdade em relação ao mundo exterior. Estas
afirmações de estatuto e
poder são reconhecidas pela população de Maputo em
geral, ainda que as
pessoas contestem a justiça das mesmas. Certa ocasião
fui abordado num
café por um homem que procurou convencer-me de que eu,
como estrangeiro,
tinha a obrigação de o ajudar a financiar a sua
revolução contra o injusto
estado de coisas actual. Quando lhe perguntei o que
resultaria da sua revolução,
o homem sorriu e replicou: «Nessa altura serei eu a
andar de
Mercedes.»
Embora afirmasse desejar uma revolução, o homem
apresentava uma lógica
semelhante à das elites. Não defendia argumentos de
redistribuição da riqueza,
limitando-se a argumentar que os símbolos de poder
social (no caso, um
Mercedes,
o automóvel usado pelos ministros do governo) estavam
nas mãos
341
Ideologias de modernidade da elite moçambicana
das pessoas erradas. A sua revolução garantiria que
esses objectos passassem
para as pessoas certas — neste caso, ele próprio.
CONCLUSÃO: MODERNIDADE E PODER
No presente artigo vimos que a ideologia de
modernidade defendida pela
elite política dominante de Moçambique constitui um
elemento crucial na
estruturação das relações de poder social. Embora
tenha assumido aspectos
variados desde a independência do país, esta ideologia
continua a ser uma
forma simbólica de afirmação de legitimidade,
proporcionando à elite um
sentido coerente de unidade, na medida em que lhe
permite monopolizar
oportunidades dentro do Estado e da economia de
mercado em expansão,
bem como outras vantagens menos tangíveis. Através das
suas oportunidades
educacionais e culturais, e devido ao facto de serem,
com frequência,
fluentes em português e em inglês, estas elites têm a
possibilidade de se
«misturarem» mais facilmente com os estrangeiros que
gerem as empresas
multinacionais e as organizações da comunidade
internacional. Através da
análise desta ideologia e do seu desenvolvimento
histórico, espero ter demonstrado
as ligações existentes entre o poder e um tipo muito
particular de
ideologia de modernidade, contribuindo assim para o
debate sobre o papel da
modernidade no contexto africano.
A modernidade tem sido, para a antropologia
africanista, um conceito muito
debatido, mas frequentemente vago. As antigas certezas
de uma trajectória
linear ao longo de uma sequência de estádios de
desenvolvimento — com o
resultado final de o mundo se tornar mais semelhante
ao «nosso», o do
Ocidente «moderno» — têm sido justamente atacadas pelo
seu etnocentrismo
subjacente (Asad, 1973; Moore e Sanders, 2001). Muitos
antropólogos fizeram
notar que certos traços e crenças supostamente
pré-modernos, como a
feitiçaria ou a importância das identidades étnicas,
são, na verdade, respostas
muito subtis a determinadas condições específicas
(Comaroff e Comaroff,
1993; Geschiere, 1997; Moore e Sanders,
ibid.). Alguns analistas chegaram ao
ponto de afirmar que o desenvolvimento pós-colonial em
África aponta para
uma «retradicionalização», que conduzirá a uma forma
de modernidade especificamente
africana baseada, em parte, na etnicidade, na
feitiçaria e no
clientelismo (Chabal e Daloz, 1999).
Embora estes estudos tenham demonstrado a inadequação
das simplificações
da visão de Rostow da inevitabilidade dos processos
teleológicos de
modernização, alguns estudiosos têm mais recentemente
perguntado se o interesse
académico pela modernidade não terá obscurecido, mais
do que
elucidado, o assunto. De acordo com Cooper, o problema
é que o termo
«modernidade» é utilizado como uma moldura temporal
(englobando diferentes
342
Jason Sumich
períodos), uma posição ideológica, uma apreciação
crítica, um conceito popular
e uma categoria analítica (2005, pp. 113-114). Assim,
determinados processos
complexos observados no terreno são frequentemente
apresentados
como uma forma de modernidade à qual o próprio
analista está ideologicamente
associado.
Como referi no início deste artigo, Ferguson logrou
evitar este problema
ao concentrar-se na modernidade enquanto categoria
especificamente «nativa
» (1999, 2002 e 2006). Segundo este autor, a ideia de
uma modernidade
alternativa ou especificamente africana baseada na
feitiçaria encheria de
horror os seus informadores, bem como as pessoas que
eu próprio conheço
em Moçambique. Pelo contrário, uma ideia de
modernidade universal constitui
uma expectativa justa e uma afirmação de igualdade em
relação ao
mundo mais vasto: também os africanos deveriam poder
beneficiar dos
frutos da economia supostamente global. Existem muitas
semelhanças entre
a análise de Ferguson e a realidade que observei em
Maputo. Poderíamos
argumentar que a nação independente de Moçambique é
uma criação da
ideologia de modernidade da FRELIMO (Bertelsen, 2004;
Minter, 1996), ou,
como argumentaram alguns críticos da FRELIMO, como
Cahen, que a elite
do partido se vê a si própria como a nação e tenta
remodelar o resto da
população à sua imagem mediante um processo de
opressão uniformizadora
(1992 e 1993). Embora Cahen esteja certo em muitos
aspectos, parece existir
uma visão mais ampla da nação, ao menos para alguns, o
que permite ao
partido utilizar o seu papel enquanto criador dessa
visão para fazer uma forte
afirmação de legitimidade moral. Contudo, a ideologia
de modernidade da
elite é também uma afirmação de diferenciação e de
desigualdade social.
A asserção de que, dentro da nação, alguns são mais
modernos do que
outros constitui também a base da hierarquia social,
particularmente em
Maputo. Cahen está correcto quando identifica os
aspectos opressivos desta
versão de uma ideologia de modernidade; porém, é
também certo que esta
ideologia cria desigualdade e uma base social porque a
população mais
alargada responde a pelo menos alguns aspectos dessa
visão. Para compreendermos
de que modo as ideologias de modernidade ajudam a
moldar as
estruturas de domínio temos de nos concentrar no facto
de que existem
diversos modelos «nativos» ou populares dentro de um
contexto social e de
estudar o modo como esses modelos interagem e divergem.
E temos de
compreender também que tais modelos são condicionados
pelos acontecimentos
correntes e sofrem alterações ao longo do tempo. As
mudanças do
clima político em Moçambique, tal como a eleição de um
presidente mais
nacionalista em 2005, parecem apontar para o início de
uma nova fase do
velho modelo da FRELIMO. O desabafo de uma pessoa
amiga, que é também
membro da FRELIMO, talvez nos dê uma indicação desta
mudança:
«Começo a pensar que a democracia é inimiga do
desenvolvimento.» Esta palavras talvez sugiram que o liberalismo começa a
esmorecer enquanto epítome actual da modernidade e que uma nova forma se
encontra já em desenvolvimento.
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