Maputo, Sábado, 2 de Abril de 2011:: Notícias
Na obra, prefaciada por Mário Machungo, antigo Primeiro-Ministro e
amigo de longa data de Joaquim Chissano, o autor fala também da sua
saída para Portugal, em 1960, onde ia cursar Medicina, mas que teve que o
abandonar em 1961 devido à perseguição da Polícia Internacional de
Defesa do Estado (PIDE), iniciando aí, e a partir da França, o processo
de integração na Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), em 1962.
Em 376 páginas, Chissano descreve factos que segundo ele “correspondem à minha percepção sobre o que vivi. Quero prevenir os historiadores para não confundirem este livro com uma fonte de factos do que se passou, porque outros podem ter vivido esse período com maior profundidade que eu”.
Em 376 páginas, Chissano descreve factos que segundo ele “correspondem à minha percepção sobre o que vivi. Quero prevenir os historiadores para não confundirem este livro com uma fonte de factos do que se passou, porque outros podem ter vivido esse período com maior profundidade que eu”.
Além dos textos, o livro incorpora ainda fotografias que documentam
os momentos mais recuados da história colonial no posto administrativo
de Maleice, distrito de Chibuto, província de Gaza, e várias outras que
também marcaram a sua vida na então cidade de Lourenço Marques.
Tal como escreve Mário Machungo no seu prefácio, “Chissano
convida-nos assim a revisitar a sua infância em Malehice para nos dar o
retrato da vida de uma criança moçambicana. (…) ao longo do livro
faz-nos recordar e explica as razões da revolta de um povo contra a
dominação e exploração estrangeira”.
A descrição que Chissano faz da discriminação e humilhação de que foi
vítima no Liceu onde aparece como o único preto entre milhares de
alunos num país maioritariamente constituído por negros, evidencia o
esforço que teve de fazer para aceder ao conhecimento e ao saber,
instrumentos para conquistar as armas do branco para melhor o combater.
Em suma, a obra transmite o processo de formação da consciência
nacionalista até à estruturação de um movimento unido de libertação
nacional, partindo do particular.
Em “Vidas, Lugares e Tempos”, segundo o prefaciador da obra, o autor
propõe uma análise, numa perspectiva histórica, sociológica,
antropológica e etnológica, do processo de formação da consciência
nacionalista do povo moçambicano, sobretudo a partir dos princípios da
segunda metade do Século XX, depois do início da I Guerra Mundial e das
transformações políticas que se operam nas principais potências
colonizadoras.
Neste e ainda segundo Machungo, “é justo que a obra inspire outros
trabalhos e análises para a enriquecer e ampliar o acervo da
bibliografia sobre assuntos moçambicanos”.
O Presidente da República, Armando Guebuza, que discursou na ocasião,
disse que o livro devia servir de leitura recomendável à juventude, por
se tratar de uma obra que busca a história do país registada no
passado.
Com efeito, “Vidas, Lugares e Tempos” constitui uma revisita à
história de Moçambique escrita numa perspectiva de um filho que liderou o
país num dos períodos mais conturbados da Nação.
De referir que depois do livro lançado terça-feira, Chissano promete
mais dois volumes que se debruçarão sucessivamente sobre o seu
engajamento no processo de libertação nacional, ou seja, do período
(1963 a 1975) que vai da sua chegada a Tanzânia até à independência
nacional; o período que vai de 1975 a 1986, o qual compreende a fase em
que foi Ministro dos Negócios Estrangeiros até à morte do Presidente
Samora Machel.
Os factos e memórias de Chissano também irão compreender o período
1986 e 1994, marcado pela guerra civil e a assinatura do Acordo Geral de
Paz, terminando com os dois últimos mandatos como Presidente da
República já no contexto multipartidário.
O autor, o prefaciador e o apresentador
DIGRESSÃO SOBRE A ARTE DE ESCREVER*
Maputo, Sábado, 2 de Abril de 2011:: Notícias
Os sábios dizem que nos alojamos petrificados nos lugares comuns dos
nossos hábitos cocuanas e batemos fundo no prego das convicções alheias,
cravadas no vazio constante da nossa vida, umas vezes insonsa e,
outras, colorida. Sentimo-nos infelizes com o que somos e queremos ser o
que não somos. O desejo instala-se fazendo de nós a sua luxuosa
moradia. Nesta situação, vivemos suspensos, porque não somos o que somos
e não somos o que queremos ser. Isto faz-nos viver numa permanente
angústia.
Só aceitamos e acreditamos nas nossas originais ideias, quando são veiculadas pela eloquência duvidosa da vuvuzela na voz do vizinho que, aparentemente, está, dia e noite, “disponível e misericordioso” para nos apoiar. Perseguidas e amedrontadas pelo medo omnipresente, as nossas ideias ficam-se por essa dimensão; a das ideias. Depois, passamos nós próprios a ser produto delas. Tornamo-nos ideias.
Vivemos, assim, transformados na sombra de nós próprios.
Com ela, a sombra, nos persegue impiedosamente, preferimos escondê-la numa sombra maior, que é a árvore das nossas fantasias portadora de uma copa frondosa. Então, a nossa sombra desaparece e com ela nós também nos extinguimos. Quando ela se torna invisível é como se dela nos tivéssemos escondido, para não nos encontrarmos. O encontro connosco próprio é por vezes assustador, fatal mesmo, mortal, como se fosse cruzamento com o rei dos animais.
Descansamos à-vontade, debaixo dessa árvore, convictos de termos realizado um trabalho útil! Pelo menos estamos certos de uma coisa: não vemos a nossa sombra! Não a vemos porque não a queremos ver. O mesmo acontece na relação que estabelecemos com o inteligente espelho. Este, só nos mostra o que queremos ver, e não mais. Se o nosso rosto se apresenta cheio de rugas e olheiras, fazemos caretas, piscamos o olho, ajeitamos tudo; com algumas mazelas de instrumentos e produtos de beleza, ficamos com o problema resolvido. Diante do espelho somos aquilo que queremos parecer. Quando estamos embriagados dos golpes da vida, a imagem diante do espelho não é nossa. Ela é o que nos convém no momento: a fuga de nós próprios e o reencontro connosco, no centro da sombra do vazio.
Mas a arte de escrever ou de dialogar connosco próprios, e às vezes com os outros, não é fantasia. Também não é esconderijo. Mais ainda, não é para todos. Ai de nós se todos fôssemos escritores. O mundo seria uma catástrofe. Esta arte depende do interesse e dedicação de cada um, atributos que poderão ser considerados inatos ou susceptíveis de desenvolvimento individual. Há quem se veja compelido a escrever por imperativos profissionais, conjunturais ou outros, podendo daí resultar que o produto do seu trabalho seja apreciável ou, então, sem interesse.
A diferença será evidente se aquele que escreve, a isso não tiver sido obrigado por qualquer outra circunstância que não seja uma intrínseca inspiração, a vontade independente de assim proceder, isto é, escrever, sem uma imposição exterior. O resultado, como parece óbvio, saberá a perfeição e até, a doçura. Contudo, sendo um dado adquirido que um mesmo alimento poderá ter paladar diferente de boca para boca, então, seguramente, encontraremos leitores e leitores, para este tipo de escritor. Uns hão-de lê-lo superficial e diagonalmente, como se faz a um qualquer pasquim fastidioso. Os outros, o seu trabalho soará construído de hieróglifos, por isso, ininteligível. Os entendidos irão deleitar-se com a obra.
Vale, então, a pena afirmar que a criatividade não é mercadoria. Não se adquire em nenhuma banca. Ela chega até nós se soubermos o que ela é e como funciona. A criatividade desperta quando estivermos preparados. Ela só se manifesta quando somos receptivos. Quando permitimos que algo aconteça através de nós. Os músicos, dançarinos, pintores, poetas, etc. são apenas o canal, a passagem através da qual o universo se manifesta. A receptividade desta gente faz com que o universo se desloque através deles.
Os sábios continuam a ensinar-nos que, para que o universo nos use como instrumento, temos de estar atentos. Devemos estar em harmonia com a natureza. Este é o cerne de toda a sabedoria. Os seres humanos receptivos e sensíveis são imaginativos e criativos. Como o universo é provido e inesgotável, eles apreendem-no e absorvem-no de uma forma profunda e depois deixam jorrar o que tiverem absorvido para a própria imaginação. Podem, então, ser criativos e inventivos, mesmo em pequenas coisas. Esta é a essência da criatividade. A criatividade não está associada a nenhuma actividade específica como a pintura, o canto, a dança, a poesia. A partir de qualquer coisa que façamos podemos ser criativos: a limpar a cozinha, a varrer as ruas, a cultivar a horta, a servir num restaurante, a caminhar, a beijar. Mesmo quando nos zangamos podemos pôr a criatividade nisso. O importante é termos a alma presente em tudo, nas nossas acções e omissões. Quando nos zangamos devemos estar conscientes da zanga. Passa-se que quando estamos zangados nos tornamos inconscientes desse estado. A zanga apossa-se de nós e transformamo-nos nela própria. Ficamos a zanga. Passamos a ser animais. A zanga faz de nós o que bem entende.
Qualquer coisa pode ser criativa. A pessoa é que põe essa qualidade na actividade que desempenha. É uma espécie de atitude, algo como uma abordagem interior, o modo como olhamos para as coisas. Um indivíduo criativo é aquele que experimenta o que é novo. Uma pessoa criativa não é um robot. Um robot é repetitivo, não é criativo. Os poetas não são produzidos por um acto legislativo. O poeta não diz: “a partir de hoje quero ser poeta!” e logo a seguir cria a poesia. Não é a galinha que decide que vai pôr o ovo. Ela pode ficar horas, semanas, meses no ninho e nada irá acontecer. O ovo é que decide sair quando tiver chegado o momento e não antes. A poesia é o Universo que se manifesta através de um veículo, que é o poeta. Esse, poderá passar por momentos em que se senta à escrivaninha e tenta rabiscar, nada acontecendo, no entanto. Poderá passar por esta situação durante várias horas, dias, meses e anos.
Quando mais se esforçar nada acontecerá. Poderá, isso sim, produzir um poema. Mas não terá criado um poema.
A história fala de um poeta cujos trabalhos impressionavam os leitores pela sua beleza. Era famoso, no bom sentido do termo. Os seus poemas tinham, porém, uma particularidade. Nunca chegavam ao fim. Ele não os concluía. Morreu e deixou milhares de poemas incompletos. Quando lhe perguntavam a razão disso ele respondia: “não posso. Tente, mas quando faço, alguma coisa está fora da ordem, algo corre mal. O meu verso nunca está em sintonia com o que veio através de mim. Continua a ser um empecilho, torna-se numa rocha, impede a corrente. Por isso, tenho de esperar. Quem quer que tenha estado a fluir através de mim, quando começar de novo a fluir e completar o poema, este estará completo e não antes”.
A produção é uma actividade mecânica. Qualquer robot pode produzir, desde que programado. Há milhões de produtores de canções, livros, quadros, mas não passam disso. Não são criadores. A criação espiritual e é propriedade do Universo. Não é de ninguém em particular. Mas para que a criatividade penetre em nós temos de ser receptivos como a mulher que, cheia de prazer, fecha os olhos, abre-se e entrega-se totalmente para receber no conforto e tranquilidade do seu útero, o embrião de um novo ser. Só então entenderemos que “uma pessoa criativa tem capacidade de percepção, consegue ver coisas que ninguém viu antes, ouve coisas que ninguém ouviu antes”. Nessa altura existe criatividade.
Mas atenção! A criatividade tem um poderosíssimo inimigo: a fama. Ela destrói toda a criatividade. Quem sobe o patamar da fama tem de escolher entre permanecer pelo resto da vida nesse nível ou descer e continuar a ser criativo. Um indivíduo famoso torna-se objecto, ou boneco articulado dos que lhe atribuem a fama. Ele tem de passar a fazer o que os outros (o público, por exemplo) quiserem. Se ele se pôr diferentemente, será destronado e caíra em desgraça. Os seus livros, discos, quadros não serão comprados. Um indivíduo famoso vive num permanente estado de medo; o medo de errar. Ele não pode errar, pois será severamente criticado pelos seus admiradores. Com o medo a acompanhá-lo, ele deixa de criar, para não errar. Receia o novo e acomoda-se no velho. Fica à sombra da fama e, como criador, morre. A fama e um rótulo, não somos nós. Ela é uma externalidade. É uma forma oca, sem conteúdo. O conteúdo somos nós que não cabemos nessa forma, porque nos aprisiona. A fama é uma cela. Se nos mantivermos em harmonia com o Universo, de que somos parte, jamais aceitaremos a escravidão da fama … tudo depende de nós.
A propósito da fama, Jean-Paul Sartre, um grande romancista e conhecedor profundo da psicologia humana, recusou o Prémio Nobel afirmando: “já recebi recompensa suficiente enquanto criava a minha obra. Um Prémio Nobel nada lhe pode acrescentar. Pelo contrário, faz-me decair. É bom para amadores que procuram o reconhecimento. E já sou idoso e já gozei o suficiente. Adorei tudo o que fiz, que foi a minha própria recompensa. E não quero qualquer outra recompensa, porque nada pode ser melhor do que aquilo que já recebi”.
Confrontado com o conhecimento dos sábios atrás referido, ao ler o livro “VIDAS, LUGARES E TEMPOS” dei-me conta que eu próprio estava enganado ao pensar que conhecia o autor, pela simples circunstância de ter vivido e trabalhado durante muito tempo com ele. Contudo, reconheci que me faltava uma parte essencial na vida do ser humano Joaquim: os primeiros anos da sua vida, as circunstâncias e as condições em que viveu e cresceu, até ao momento em que a nossa convivência começou.
Joaquim Chissano usa as suas habilidades literárias para nos revelar a sua origem e o caminho trilhado. Relata a sua vida, e ao mesmo tempo descreve o ambiente, identifica as pessoas com quem interage e fala das actividades em que se envolve, analisando o que se passa à sua volta. O autor, fá-lo com recurso a uma abordagem tal, que cativa o leitor, levando-o a prosseguir a leitura, com evidente dificuldade de a interromper.
Joaquim Chissano dá-nos a conhecer o facto de ter nascido num ambiente de pobreza, com foi, e é, o caso da maioria das crianças moçambicanas. Não só conseguiu sobreviver às doenças, como o paludismo, que ceifaram e continuam a matar milhões de crianças, na primeira idade, isto é, com menos de cinco anos de idade, mas também destacou-se do resto da família, para emergir como um líder reconhecido a nível nacional e internacional.
Como foi possível? Vivemos no Universo e estamos todos sujeitos aos mesmos fenómenos, aos quais nos adaptamos, consoante o estado do nosso espírito. Esses fenómenos influenciam-nos a agir de uma maneira ou de outra, em função das nossas capacidades e experiência adquirida, no interessante processo do nosso desenvolvimento natural.
A obra “VIDAS, LUGARES E TEMPOS” contém informação factual sobre tudo quanto o autor quis partilhar connosco, com espírito e mente abertos, sobre as suas vivências na família e na comunidade/sociedade. Por não ser esse o nosso propósito e porque não se ensina o Pai-Nosso ao vigário, dispensamos a referência, por demais óbvia, ao papel fundamental da família, da comunidade e da sociedade, em geral, na formação do individuo, sobretudo na infância.
Partilha, porquê? A partilha é a essência da aprendizagem da humanidade nos bancos da escola da vida. O Universo é a imensidão e a disponibilidade por excelência. Por isso, quem puder sorver a abundante sabedoria do Universo, que o faça, com o compromisso solene de o redistribuir pelos seus semelhantes, eventualmente, acrescentando-lhe valor. Dar aos outros, é oferecer a si próprio.
Joaquim Chissano fez isso mesmo: partilhou connosco o entendimento que tem do Universo, escancarando a sua vida. Para mim, ele é duplamente criativo: criou o percurso da sua vida e recriou essa mesma vida, nas histórias narradas neste grandioso livro. Só assim procede o ser humano que bebeu, não apenas o leite materno, mas também a sabedoria que ilumina a maravilha patente na obra do Universo.
* Texto de apresentação do livro “Vidas, Lugares e Tempos”
Só aceitamos e acreditamos nas nossas originais ideias, quando são veiculadas pela eloquência duvidosa da vuvuzela na voz do vizinho que, aparentemente, está, dia e noite, “disponível e misericordioso” para nos apoiar. Perseguidas e amedrontadas pelo medo omnipresente, as nossas ideias ficam-se por essa dimensão; a das ideias. Depois, passamos nós próprios a ser produto delas. Tornamo-nos ideias.
Vivemos, assim, transformados na sombra de nós próprios.
Com ela, a sombra, nos persegue impiedosamente, preferimos escondê-la numa sombra maior, que é a árvore das nossas fantasias portadora de uma copa frondosa. Então, a nossa sombra desaparece e com ela nós também nos extinguimos. Quando ela se torna invisível é como se dela nos tivéssemos escondido, para não nos encontrarmos. O encontro connosco próprio é por vezes assustador, fatal mesmo, mortal, como se fosse cruzamento com o rei dos animais.
Descansamos à-vontade, debaixo dessa árvore, convictos de termos realizado um trabalho útil! Pelo menos estamos certos de uma coisa: não vemos a nossa sombra! Não a vemos porque não a queremos ver. O mesmo acontece na relação que estabelecemos com o inteligente espelho. Este, só nos mostra o que queremos ver, e não mais. Se o nosso rosto se apresenta cheio de rugas e olheiras, fazemos caretas, piscamos o olho, ajeitamos tudo; com algumas mazelas de instrumentos e produtos de beleza, ficamos com o problema resolvido. Diante do espelho somos aquilo que queremos parecer. Quando estamos embriagados dos golpes da vida, a imagem diante do espelho não é nossa. Ela é o que nos convém no momento: a fuga de nós próprios e o reencontro connosco, no centro da sombra do vazio.
Mas a arte de escrever ou de dialogar connosco próprios, e às vezes com os outros, não é fantasia. Também não é esconderijo. Mais ainda, não é para todos. Ai de nós se todos fôssemos escritores. O mundo seria uma catástrofe. Esta arte depende do interesse e dedicação de cada um, atributos que poderão ser considerados inatos ou susceptíveis de desenvolvimento individual. Há quem se veja compelido a escrever por imperativos profissionais, conjunturais ou outros, podendo daí resultar que o produto do seu trabalho seja apreciável ou, então, sem interesse.
A diferença será evidente se aquele que escreve, a isso não tiver sido obrigado por qualquer outra circunstância que não seja uma intrínseca inspiração, a vontade independente de assim proceder, isto é, escrever, sem uma imposição exterior. O resultado, como parece óbvio, saberá a perfeição e até, a doçura. Contudo, sendo um dado adquirido que um mesmo alimento poderá ter paladar diferente de boca para boca, então, seguramente, encontraremos leitores e leitores, para este tipo de escritor. Uns hão-de lê-lo superficial e diagonalmente, como se faz a um qualquer pasquim fastidioso. Os outros, o seu trabalho soará construído de hieróglifos, por isso, ininteligível. Os entendidos irão deleitar-se com a obra.
Vale, então, a pena afirmar que a criatividade não é mercadoria. Não se adquire em nenhuma banca. Ela chega até nós se soubermos o que ela é e como funciona. A criatividade desperta quando estivermos preparados. Ela só se manifesta quando somos receptivos. Quando permitimos que algo aconteça através de nós. Os músicos, dançarinos, pintores, poetas, etc. são apenas o canal, a passagem através da qual o universo se manifesta. A receptividade desta gente faz com que o universo se desloque através deles.
Os sábios continuam a ensinar-nos que, para que o universo nos use como instrumento, temos de estar atentos. Devemos estar em harmonia com a natureza. Este é o cerne de toda a sabedoria. Os seres humanos receptivos e sensíveis são imaginativos e criativos. Como o universo é provido e inesgotável, eles apreendem-no e absorvem-no de uma forma profunda e depois deixam jorrar o que tiverem absorvido para a própria imaginação. Podem, então, ser criativos e inventivos, mesmo em pequenas coisas. Esta é a essência da criatividade. A criatividade não está associada a nenhuma actividade específica como a pintura, o canto, a dança, a poesia. A partir de qualquer coisa que façamos podemos ser criativos: a limpar a cozinha, a varrer as ruas, a cultivar a horta, a servir num restaurante, a caminhar, a beijar. Mesmo quando nos zangamos podemos pôr a criatividade nisso. O importante é termos a alma presente em tudo, nas nossas acções e omissões. Quando nos zangamos devemos estar conscientes da zanga. Passa-se que quando estamos zangados nos tornamos inconscientes desse estado. A zanga apossa-se de nós e transformamo-nos nela própria. Ficamos a zanga. Passamos a ser animais. A zanga faz de nós o que bem entende.
Qualquer coisa pode ser criativa. A pessoa é que põe essa qualidade na actividade que desempenha. É uma espécie de atitude, algo como uma abordagem interior, o modo como olhamos para as coisas. Um indivíduo criativo é aquele que experimenta o que é novo. Uma pessoa criativa não é um robot. Um robot é repetitivo, não é criativo. Os poetas não são produzidos por um acto legislativo. O poeta não diz: “a partir de hoje quero ser poeta!” e logo a seguir cria a poesia. Não é a galinha que decide que vai pôr o ovo. Ela pode ficar horas, semanas, meses no ninho e nada irá acontecer. O ovo é que decide sair quando tiver chegado o momento e não antes. A poesia é o Universo que se manifesta através de um veículo, que é o poeta. Esse, poderá passar por momentos em que se senta à escrivaninha e tenta rabiscar, nada acontecendo, no entanto. Poderá passar por esta situação durante várias horas, dias, meses e anos.
Quando mais se esforçar nada acontecerá. Poderá, isso sim, produzir um poema. Mas não terá criado um poema.
A história fala de um poeta cujos trabalhos impressionavam os leitores pela sua beleza. Era famoso, no bom sentido do termo. Os seus poemas tinham, porém, uma particularidade. Nunca chegavam ao fim. Ele não os concluía. Morreu e deixou milhares de poemas incompletos. Quando lhe perguntavam a razão disso ele respondia: “não posso. Tente, mas quando faço, alguma coisa está fora da ordem, algo corre mal. O meu verso nunca está em sintonia com o que veio através de mim. Continua a ser um empecilho, torna-se numa rocha, impede a corrente. Por isso, tenho de esperar. Quem quer que tenha estado a fluir através de mim, quando começar de novo a fluir e completar o poema, este estará completo e não antes”.
A produção é uma actividade mecânica. Qualquer robot pode produzir, desde que programado. Há milhões de produtores de canções, livros, quadros, mas não passam disso. Não são criadores. A criação espiritual e é propriedade do Universo. Não é de ninguém em particular. Mas para que a criatividade penetre em nós temos de ser receptivos como a mulher que, cheia de prazer, fecha os olhos, abre-se e entrega-se totalmente para receber no conforto e tranquilidade do seu útero, o embrião de um novo ser. Só então entenderemos que “uma pessoa criativa tem capacidade de percepção, consegue ver coisas que ninguém viu antes, ouve coisas que ninguém ouviu antes”. Nessa altura existe criatividade.
Mas atenção! A criatividade tem um poderosíssimo inimigo: a fama. Ela destrói toda a criatividade. Quem sobe o patamar da fama tem de escolher entre permanecer pelo resto da vida nesse nível ou descer e continuar a ser criativo. Um indivíduo famoso torna-se objecto, ou boneco articulado dos que lhe atribuem a fama. Ele tem de passar a fazer o que os outros (o público, por exemplo) quiserem. Se ele se pôr diferentemente, será destronado e caíra em desgraça. Os seus livros, discos, quadros não serão comprados. Um indivíduo famoso vive num permanente estado de medo; o medo de errar. Ele não pode errar, pois será severamente criticado pelos seus admiradores. Com o medo a acompanhá-lo, ele deixa de criar, para não errar. Receia o novo e acomoda-se no velho. Fica à sombra da fama e, como criador, morre. A fama e um rótulo, não somos nós. Ela é uma externalidade. É uma forma oca, sem conteúdo. O conteúdo somos nós que não cabemos nessa forma, porque nos aprisiona. A fama é uma cela. Se nos mantivermos em harmonia com o Universo, de que somos parte, jamais aceitaremos a escravidão da fama … tudo depende de nós.
A propósito da fama, Jean-Paul Sartre, um grande romancista e conhecedor profundo da psicologia humana, recusou o Prémio Nobel afirmando: “já recebi recompensa suficiente enquanto criava a minha obra. Um Prémio Nobel nada lhe pode acrescentar. Pelo contrário, faz-me decair. É bom para amadores que procuram o reconhecimento. E já sou idoso e já gozei o suficiente. Adorei tudo o que fiz, que foi a minha própria recompensa. E não quero qualquer outra recompensa, porque nada pode ser melhor do que aquilo que já recebi”.
Confrontado com o conhecimento dos sábios atrás referido, ao ler o livro “VIDAS, LUGARES E TEMPOS” dei-me conta que eu próprio estava enganado ao pensar que conhecia o autor, pela simples circunstância de ter vivido e trabalhado durante muito tempo com ele. Contudo, reconheci que me faltava uma parte essencial na vida do ser humano Joaquim: os primeiros anos da sua vida, as circunstâncias e as condições em que viveu e cresceu, até ao momento em que a nossa convivência começou.
Joaquim Chissano usa as suas habilidades literárias para nos revelar a sua origem e o caminho trilhado. Relata a sua vida, e ao mesmo tempo descreve o ambiente, identifica as pessoas com quem interage e fala das actividades em que se envolve, analisando o que se passa à sua volta. O autor, fá-lo com recurso a uma abordagem tal, que cativa o leitor, levando-o a prosseguir a leitura, com evidente dificuldade de a interromper.
Joaquim Chissano dá-nos a conhecer o facto de ter nascido num ambiente de pobreza, com foi, e é, o caso da maioria das crianças moçambicanas. Não só conseguiu sobreviver às doenças, como o paludismo, que ceifaram e continuam a matar milhões de crianças, na primeira idade, isto é, com menos de cinco anos de idade, mas também destacou-se do resto da família, para emergir como um líder reconhecido a nível nacional e internacional.
Como foi possível? Vivemos no Universo e estamos todos sujeitos aos mesmos fenómenos, aos quais nos adaptamos, consoante o estado do nosso espírito. Esses fenómenos influenciam-nos a agir de uma maneira ou de outra, em função das nossas capacidades e experiência adquirida, no interessante processo do nosso desenvolvimento natural.
A obra “VIDAS, LUGARES E TEMPOS” contém informação factual sobre tudo quanto o autor quis partilhar connosco, com espírito e mente abertos, sobre as suas vivências na família e na comunidade/sociedade. Por não ser esse o nosso propósito e porque não se ensina o Pai-Nosso ao vigário, dispensamos a referência, por demais óbvia, ao papel fundamental da família, da comunidade e da sociedade, em geral, na formação do individuo, sobretudo na infância.
Partilha, porquê? A partilha é a essência da aprendizagem da humanidade nos bancos da escola da vida. O Universo é a imensidão e a disponibilidade por excelência. Por isso, quem puder sorver a abundante sabedoria do Universo, que o faça, com o compromisso solene de o redistribuir pelos seus semelhantes, eventualmente, acrescentando-lhe valor. Dar aos outros, é oferecer a si próprio.
Joaquim Chissano fez isso mesmo: partilhou connosco o entendimento que tem do Universo, escancarando a sua vida. Para mim, ele é duplamente criativo: criou o percurso da sua vida e recriou essa mesma vida, nas histórias narradas neste grandioso livro. Só assim procede o ser humano que bebeu, não apenas o leite materno, mas também a sabedoria que ilumina a maravilha patente na obra do Universo.
* Texto de apresentação do livro “Vidas, Lugares e Tempos”
- João Fumo
Para quando a edição dos 2º e 3º volumes?
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE
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