Professor VEIGA SIMÃO e Professor ALFREDO MARGARIDO
Abandonei a Presidência da República amargurado porque senti não ser possível conjugar os ideais da democracia com a constituição da Comunidade Lusíada com que sonhara. Ao assistir às tragédias que enlutam Angola, Moçambique e Timor sinto que, infelizmente, eu tinha razão.
Pergunta - Disse que a democracia era inconciliável com o seu projecto de uma Comunidade Lusíada. Foi isso que lhe ditou a experiência no poder?
A de S. - Sem dúvida. Porque os próprios militares, camaradas que haviam feito o 25 de Abril comigo, se encontravam totalmente divididos. Havia uma minoria que comungava do meu sonho e havia alguns que traíram o Programa por mim anunciado à Nação em 25 de Abril, e fizeram, totalmente, o jogo da entrega dos territórios ultramarinos à União Soviética.
Pergunta - E sem democracia esse projecto era possível?
A. de S. - Talvez. Mas com grandes perigos porque viria à luz uma política de força, de natureza, uma política muito semelhante à que estivera no poder e podia trazer para o país a continuação de um regime ditatorial.
Pergunta - Passados todos estes anos, e se fosse possível voltar atrás, fazia tudo o que fez? Renunciava à Presidência da República?
A de S. - Sim. Parece estranho, mas é verdade. Porque senti que não tinha forças militares que me acompanhassem no meu sonho. Voltava a renunciar à Presidência da República.
Pergunta - Voltava a convidar o PCP para o governo?
A. de S. - Tenho a dizer-lhe que a presença do PC no governo, no preenchimento de uma pasta um pouco simbólica, nunca acarretou qualquer inconveniente imediato à minha. acção de governo, nem tão pouco do primeiro ministro Palma Carlos.
Pergunta - Mas o senhor considera que foi a política do Partido Comunista que veio a ser aplicada na descolonização?
A. de S. - Claro. Mas, como sabe, e isto é uma realidade que não é possível encobrir, de todas aquelas forças que gravitavam à roda do 25 de Abril o único partido que tinha um passado, experiência e formação política era o PC. De maneira que no governo era ele o único que tinha experiência política suficiente para levar a sua missão com êxito. Êxito que está na origem do ano de 1975.
Pergunta - Na sua acção sentiu mais os efeitos dos confrontos e divisões na sociedade civil ou nas Forças Armadas?
A. de S. - Mais nas Forças Armadas. A população civil reagiu, e haja em vista a forma como reagiu aos inúmeros contactos que tive com as populações a seguir ao 25 de Abril. Nessa altura, ainda sentia vibrar a população civil em toda a sua pujança. Essa população veio a ser trabalhada, depois, pelo PC.
Pergunta - E esse trabalho era contra si?
A. de S. - Esse trabalho era dirigido, única e simplesmente com o fim de entregar o país, sobretudo os nossos territórios ultramarinos, ao domínio comunista. Talvez estivesse na origem disso tudo a descolonização.
Pergunta - Atribui a situação que se vive em Angola e Moçambique (entrevista em 1993) à descolonização?
A. de S. - Sem dúvida. Nós não descolonizámos. Nós entregámos os nossos territórios ultramarinos.
Pergunta - Outros países fizeram outras descolonizações e a situação é igualmente de tragédia…
A. de S. - Sim
Pergunta - Foi a descolonização em geral que provocou tal situação?
A. de S. - Não. E aí tenho a dizer-lhe que considero, porque vivi intensamente a guerra em Angola e percorri Angola toda, conheço Angola como os meus dedos, e não há dúvida nenhuma que os portugueses têm qualidades de captação na vontade dos africanos que os outros não tinham.
Pergunta - Ainda conserva a amargura com que confessa que deixou a Presidência da República?
A. de S. - Para mim considero um assunto arrumado, o que não quer dizer que não guarde uma certa amargura de não ter atingido os meus objectivos em pleno.
Pergunta - Ficou tudo muito longe dos seus objectivos?
A. de S. - Muito longe. Com os meus objectivos teríamos evitado o Verão de 1975. Mas aí contribuíram mil e uma causas.
Pergunta - Ficou marcado por inimizades e ressentimentos pessoais?
A. de S. - Isso, sem dúvida nenhuma. Não posso ter deixado de ficar, porque cometeram-se traições autênticas e as traições não se perdoam.
Pergunta - Não guarda, no entanto, ressentimentos em relação a Mário Soares, um dos protagonistas da descolonização?
A. de S. - Tendo a dizer-lhe que o Dr. Mário Soares foi o único que, na hora crítica, teve comigo duas ou três reuniões pessoais, secretas, chamando-me a atenção para os perigos que estávamos correndo, porque tudo se encaminhava para as mãos do Partido Comunista.
Pergunta - O senhor escreveu o “Portugal e o Futuro”. Afinal o futuro não foi que previu e foi mais determinado pela situação nas Forças Armadas que pela actuação do povo português?
A. de S. - Sem dúvidas nenhumas. Em todo o caso, há sempre que prestar uma homenagem ao povo português, porque foi com o povo português que Portugal se renovou depois, passou do período comunista dos governos provisórios aos governos do Dr. Mário Soares.
E tudo se passou com o apoio pleno da Nação e do povo português. O povo era o mesmo.
Pergunta - E as Forças Armadas eram as mesmas?
A. de S. - Não eram. Eram novas Forças Armadas. Foi um novo núcleo das Forças Armadas que reagiu.
General Spínola, obviamente, demitiu-se em Setembro de 1974 e veio a reescrever a história no livro País sem Rumo. O Portugal e o Futuro foi para a prateleira. Como foram o Programa original do Movimento da Forças Armadas e o Programa do I Governo Provisório, redigido, a pedido de Spínola e na parte que dizia respeito à descolonização. pelo professor Veiga Simão:
- O Programa aprovado por Spínola e apresentado ao Comité de Descolonização da ONU - diz Veiga Simão - não foi cumprido e foi sucessivamente sabotado.
Pergunta - Em que se baseava o seu Programa de Governo para a descolonização?
V. S. - Esse Programa baseava-se naturalmente no Programa do MFA, que o Marechal Spínola proclamou, onde a problemática da descolonização seria tratada por forma a que o povo português pudesse, não só ser devidamente consultado, mas também de maneira a que a descolonização se fizesse com tempo e sem traumas para as populações portuguesas que viviam no Ultramar.
Pergunta - Qual foi a diferença fundamental entre o Programa e a realidade?
V. S. - O Marechal Spínola, e eu comungava disso, pretendia que a descolonização se fizesse de acordo com este princípio: Independência dos povos africanos, sim; independência com Portugal e não contra Portugal. E a descolonização foi feita contra Portugal, o que se traduziu na expulsão de praticamente todos os portugueses que ali viviam. Essa espoliação é, naturalmente, uma vergonha nacional.
Pergunta - Foi embaixador de Portugal na ONU logo após o 25 de Abril. Como tratavam as Nações Unidas os dossiers relativos a Portugal e à descolonização?
V. S. - A ONU foi muito compreensiva, a abertura nos diferentes comités foi muito grande, os países ocidentais ajudavam Portugal em todas as diligências. Vou dar-lhe um exemplo. O problema de “Wiriyamu” estava na agenda das Nações Unidas e, naturalmente, eu consegui que fosse eliminado da agenda, porque já não era altura de discutir esse problemas. A abertura da ONU foi total e o próprio Comité de Descolonização veio reunir-se a Lisboa, dando assim um exemplo de abertura que Portugal não soube aproveitar.
Pergunta - Com toda essa abertura no plano externo, onde é que a situação se complicou?
V. S. - A base de tudo isto foi a anarquia interna, a falta de poder, de alguma forma uma desorientação total. Portugal esteve sem rumo durante algum tempo. A responsabilidade pela tragédia da descolonização, transformada em abandono e fuga, cabe exclusivamente a Portugal. A descolonização é, talvez, a maior tragédia nacional depois de Alcácer-Quibir.
Para homens que sonharam a descolonização, sob qualquer que fosse a modalidade, guiando-se pelos princípios internacionalmente consagrados e aceites do direito dos povos à autodeterminação e à independência, os resultados da descolonização portuguesa são hoje de algum modo pungentes e frustrantes.
Alfredo Margarido, professor de História de África em Paris, considera mesmo que não houve descolonização:
- Conviria talvez dizer: não houve descolonização portuguesa - diz Alfredo Margarido - Descolonizações processos de negociação, como fizeram os franceses, os ingleses, os belgas, os espanhóis. Nós devido aos efeitos de uma ideologia e da teimosia do professor Salazar, da influência negativa das famosas teses do luso-tropicalismo, postas a circular em 1954, acabámos por recusar toda e qualquer solução negociada. O resultado foi que tivemos uma guerra estúpida, de 1961 a 74, treze anos de guerra, treze anos de paragem do País. Porque a guerra colonial é uma paragem. Mesmo se houve progressos e modificações internas, elas não foram o que seria de esperar se não tivesse havido o peso da guerra. E então, os portugueses foram obrigados a fazer estas contas simples, que acabaram por ser resolvidas pelos militares: O preço a pagar era superior aos benefícios obtidos pela guerra. Essa contabilidade significa que os portugueses foram obrigados a abandonar a guerra. E fizeram esta coisa simples: abandonaram também as colónias. Não houve descolonização.
Do Livro “DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA” - O Regresso das Caravelas, por João P. Guerra