terça-feira, 16 de abril de 2013

“Nunca tive uma interferência directa do poder político”


Dr. Sinai Nhatitim
Dr. Sinai Nhatitima – antigo procurador-geral.
Magistrado jubilado, aos 70 anos, Sinai Nhatitima, antigo procurador-geral da república, conta que recebeu da bancada da Frelimo, no informe do PGR de 1997, uma resolução contra, pelo facto de ter dito que “havia figuras que se julgavam intocáveis”.
O Dr. Sinai Nhatitima teve uma trajectória invejável na magistratura moçambicana. Como é que chega à magistratura, sabido que antes de ingressar exerceu outras funções?
Eu chego à magistratura depois de ter passado por várias situações. Comecei a trabalhar na Direcção Nacional de Estradas. Na verdade, foi o meu primeiro emprego, era escriturário; depois passei para a chefia da contabilidade militar; estive nos serviços de estatística e depois passei para o professorado, tudo isto no período colonial. Depois de 25 de abril, quando trabalhava nos serviços de estatística, tinha a necessidade de continuar a estudar. Aliás, antes de 1975 conclui o sétimo ano dos liceus. A minha intenção era continuar a estudar e tirar o curso de direito. Na altura, não existia esse curso em Moçambique e acabei-me matriculando no curso de história, em 1973, mas depois soaram os ventos da independência e a possibilidade de haver um curso de direito em Moçambique. Tive que abandonar os serviços de estatística para o professorado, também estava no curso de história, fazia sentido que fosse ao professorado dar o meu contributo. Embora estivesse no primeiro ano, tinha noção e, para aquela época, era uma das poucas pessoas que podia ajudar os alunos. É desta maneira que saí da estatística e vou para o professorado na escola Secundária da Matola (...). quando é aberto o curso de direito, fui um dos primeiros alunos a ingressar.
De abril a Dezembro de 1978 fez parte do primeiro grupo de magistratura, a par de outras figuras como Mário Mangaze, Joaquim Madeira, João Carrilho, entre outras, que tinha a missão de divulgar o ante-projecto da lei de Organização Judiciária e implementação dos primeiros tribunais populares. Como é que foi esta experiência? Quais foram as dificuldades e sucessos na sua implementação?
Importa referir que ingressei primeiro no Ministério da Justiça, porque em 1978 fazia parte do primeiro grupo de alunos que estava a concluir o bacharelato. Houve uma indicação para os estudantes com bacharelato avançarem para várias tarefas e os alunos foram espalhados por diferentes sectores e, a mim, calhou o Ministério da Justiça, juntamente com outras figuras que mencionei.
Curiosamente o que mais queria!
(risos) era o que queria... Então, é daí que surge esta tarefa de avançar para as províncias, para fazer o ante-projecto de lei da organização judicial, ou seja, os futuros tribunais populares. Eu, um colega que já é falecido, o Dr. Cláudio Nhandava, e um escrivão avançámos para Inhambane. Estivemos um ano a fazer a divulgação. foi, para mim, um momento de muita aprendizagem; foi interessante, não era apenas divulgar, era também dialogar com a população, ouvir as suas contribuições. Percorremos distritos, as populações tiveram a oportunidade de dizer o quê este projecto de lei podia melhorar neste e outro aspecto. Fazíamos a recolha da informação e no fim compilávamos. Oito meses depois regressámos a Maputo e realizou-se uma conferência nacional para o estudo das contribuições harmonizadas. Só depois desse trabalho é que ingressámos na magistratura.
Voltei para inhambane com Cláudio Nhandava como juiz-presidente do tribunal provincial e como delegado do procurador da República em 1979. Fiquei três meses e o ministro da Justiça teve que me movimentar para Sofala. fui a Sofala como juiz da Secção Criminal, na altura, a única que existia. Só que como se isso não bastasse, acabei acumulando a função de presidente da Secção Criminal com a de presidente do tribunal popular de Sofala. Além de ser presidente do tribunal era director provincial da Justiça. Eu tinha que fazer julgamentos, dirigir o tribunal, apoiar o governo em tudo que era necessário. Foi desta maneira que ingressei na magistratura, por via da magistratura do Ministério Público, mas acabei passando para a magistratura judicial. depois voltei à magistratura do Ministério Público. Em 1980, fui nomeado vice-procurador-geral da República.
Onde gostaria de ter ficado?
Na verdade, gostei de todo o lado pelo qual passei. como sabe, estive no Ministério Público, passei duas vezes pela magistratura judicial, depois administrativa, isto é um privilégio para mim, é um caso único no país de um magistrado que percorreu estas áreas todas. O único sítio pelo qual não passei foi o tribunal constitucional.
O que eram, na verdade, os tribunais populares?
Os tribunais populares eram tribunais do governo e tinham a consagração na constituição. Tinham as suas regras de funcionamento. Não se deve pensar que eram diferentes dos tribunais actuais. A filosofia, os princípios até podiam ser diferentes, tendo em conta a orientação política vigente naquele momento, mas eram tribunais que obedeciam aos princípios básicos de um tribunal, de um órgão judicial, simplesmente a característica principal que tinham era a participação dos juízes eleitos, figuras que até hoje existem, mas nessa altura tinham muita força. Na altura ia buscar-se pessoas da comunidade, eleitas pelas assembleias locais, para representarem o povo nos tribunais populares.
Com o alcance da independência, olhando para os primeiros anos da justiça em Moçambique e tendo em conta que ainda éramos uma nação em construção, quais foram as maiores dificuldades encontradas para aplicação da lei nos vários domínios sociais?
Tivemos muitas dificuldades de recursos materiais, financeiros e humanos. Por exemplo, no tribunal de Sofala, estava eu e um juiz (José Abudo, agora provedor de justiça) e mais um delegado. tínhamos muitas dificuldades. Quando chegámos, encontrámos processos acumulados devido ao abandono dos magistrados portugueses. Tivemos que derrubar montanhas até chegar a uma situação normal. Não foi fácil criarmos mais secções criminais de trabalho. Hoje, há mais de 10 juízes no tribunal de sofala.
Actualmente, a lei garante a independência do poder judicial. Olhando para trás, como era vista e feita a justiça com o sistema de partido único?
A justiça era feita com princípios de independência e imparcialidade. Há quem diga que, por causa do sistema político, os magistrados estavam amarrados. Pela expressão que passavam, não posso negar que possa ter havido, mas nunca tive uma interferência directa do poder político e sempre que tentaram soube explicar as pessoas. As pessoas faziam de propósito (pelo facto de estarem num determinado órgão podiam, por exemplo, ditar ordens ao tribunal e ao juiz). Mas a única coisa que fazia era explicar as pessoas de acordo com a lei.
Isso não lhe foi caro?
De nenhuma forma. Houve, não por parte dos dirigentes que trabalhavam directamente, mas à volta havia pessoas que o faziam no interesse pessoal e invocavam o nome do partido. Eu percebia que a orientação não era do partido. Se calhar hoje pode estar também a acontecer. Alguém de um órgão do partido ter um interesse pessoal que o faz confundir com o interesse colectivo ou do próprio partido. Julgo que deve estar acontecer agora. Então, tive que enfrentar algumas dificuldades nesse sentido, em que algumas pessoas não satisfeitas com as respostas que recebiam da minha parte tentavam influenciar ao nível do partido (aquele juiz é isto, aquele juiz é aquilo), mas tudo foi esclarecido antecipadamente e continuo a trabalhar...
Dr. Nhatitima, se permite, estamos a fazer esta Grande Entrevista numa altura em que celebra 70 anos de vida. Vamos intercalar a sua carreira profissional com o lado familiar. Sei que é muito apegado à família, em particular à sua esposa. Qual foi o papel que a sua família desempenhou para o sucesso na carreira, olhando para os vários cargos que ocupou na magistratura e não só?
Na verdade, a minha família desempenhou um papel preponderante, particularmente a minha esposa e continua a desempenhar.
Mesmo aos 70 anos continua apaixonado?
(Risos) Se não estivesse não estaria com ela.
O papel da minha esposa não começa quando entro para a magistratura, começa no momento em que nos casámos. Estava a concluir o terceiro ciclo dos liceus, no liceu Salazar. na altura, era jovem e, às vezes, destraía-me do meu papel de estudar, mas, sempre que isso acontecesse, a minha esposa lá estava para dizer vai à escola, sempre jogou este papel. No momento que me distraía, ela lembrava-me que a tarefa principal naquele momento era estudar. Era uma mulher aconselhadora.
Entre 1979 e 1985 foi juiz-presidente do Tribunal Popular da Província de Sofala. Qual era a relação que tinha com o dirigente da província, curiosamente, o actual Chefe do Estado, Armando Guebuza?
trabalhei com vários dirigentes, entre os quais o actual Chefe de Estado; trabalhei com o falecido general Matavele. Sofala foi uma província que mereceu muita atenção, veio o ministro Mariano Matsinhe, depois veio Armando Guebuza e, por fim, trabalhei com Marcelino dos Santos.
As minhas relações com o actual chefe de estado eram boas e construtivas. Não obstante, em certos momentos tivemos que dialogar bastante, em assuntos que eu tinha uma certa visão, sobretudo na área dos trabalhos dos tribunais populares. Na altura, os tribunais populares acabavam de ser criados nos bairros e estavam a desenvolver um trabalho intenso. Isso chocou em termos do poder que os grupos dinamizadores vinham exercendo. O aparecimento dos tribunais populares veio esvaziar os poderes que os grupos dinamizadores tinham sobre as populações. Com este aparecimento, houve momentos de fricção e a mesma levou a que parte dos grupos fosse reportar o lado político. Esta situação levou a uma reflexão por parte do partido e chegou-se a ventilar a hipótese de se extinguir os tribunais populares e manter os grupos dinamizadores, passando as competências novamente para aqueles grupos. houve um diálogo intenso entre o presidente do tribunal e o dirigente da província. Discutimos bastante e fiz entender que não era viável e isso iria “ofender” a Constituição da República. Continuámos a dialogar (...) nunca tive problemas em manifestar as minhas opiniões quando algo não fosse de acordo com a lei.
Foi sempre frontal?
sempre na posição de esclarecer os princípios que deviam ser observados, naturalmente. Esse diálogo acabou influenciando o meu crescimento.
Consta que nessa altura, os dirigentes do partido Frelimo, na província de Sofala, olhavam-o com alguma desconfiança, por não se fazer presente às reuniões político-partidárias. Aliás, a sua atitude de não fazer parte dessas reuniões chegou ao dirigente da província. Armando Guebuza convidou-o a justificar-se? O que aconteceu realmente?
Eu acumulava a função de director da secção criminal, a minha prioridade não estava do lado do partido. Eu dava mais prioridade ao tribunal do que ao governo. Sempre justifiquei por que as coisas eram assim com o actual chefe de estado...
Voltando para o lado familiar, a meio da carreira teria perdido um casal amigo e, curiosamente, ligado à justiça. Quando muitos abandonaram as crianças do casal assassinado, decidiu-se pela guarda das mesmas. Aliás, uma delas hoje ocupa um cargo ministerial. O que o motivou a tomar tal atitude?
Eu penso que está a falar de um colega meu, o Alberto Nkutumula. Primeiro, o pai era meu colega e vivíamos no mesmo prédio; ao nível do trabalho, criámos uma forte relação e fomos desenvolvendo esse espírito, depois passamos para as nossas crianças. Durante aquele acontecimento fatídico, ele tinha 13 anos (Alberto Nkutumula). então, apareceram muitas pessoas para ajudar, só que eu, depois da minha nomeação como vice-procurador-geral da República, mudei para outro local e eles continuaram naquele prédio, entretanto, vinham almoçar na minha casa. À noite os meus filhos traziam-os para casa, introduziam-os sem que me apercebesse. Nas noites, acabávamos ouvindo movimentações estranhas. reuni com os meus filhos e confessaram que havia problemas com os amigos. A partir daí, alguns passaram a viver connosco, outros foram acolhidos por outras famílias. Os meus filhos eram amigos deles. Procurámos junto da APIE uma residência para eles e, felizmente, o director da APIE localizou uma flat e foram saindo. Foi uma satisfação na vida. Todos têm cursos universitários.
Durante vários anos, em Moçambique funcionou a “Lei da Chicotada”. o que pensa sobre aquela lei?
O que penso dessa lei é o mesmo que penso de outras leis que surgiram na altura. A lei da Chicotada surgiu num contexto em que o país vivia uma escassez alimentar, em 1983. Os produtos alimentares tinham que ser distribuídos equitativamente, só que, como sempre, havia pessoas que não queriam partilhar com os outras. A assembleia popular aprovou a lei para acabar com essa arrogância. Grande parte da população passava mal e uma minoria tinha alguma coisa. não foi pacífica, havia intenção de haver outra alternativa, outra saída para enfrentar a situação, mas a assembleia assim tinha instituído. Os tribunais tinham que aplicar a lei. Por vezes, a lei pode chocar, mas os magistrados têm mecanismos para expressar esse choque e resolver de uma forma pacífica. mas vigorou por muito pouco tempo.
Um dos episódios da sua carreira, na província de Sofala, deu-se aquando da visita do Presidente da República, falo de Samora Machel, que, na hora da sua despedida, no aeroporto, de regresso a Maputo, voltou para si e disse algo. Como foi este momento?
Foi um momento dramático. Foi um momento de aprendizagem. O presidente Samora Machel foi visitar a província de Sofala. Na altura, no momento da chegada, os dirigentes deviam ir recebê-lo e, quando regressava, deviam ir despedir-se. Estavamos todos perfilados, saudou a todos e chegou a minha vez. Depois, caminhou até às escadas do avião e voltou, foi ter comigo e disse: “são vocês que não querem aplicar a lei da chicotada”. Voltou para o avião, foi-se e todo o mundo ficou sem saber o que realmente tinha acontecido.
Na altura, o actual Presidente da República compreendeu a situação, chamou-me, conversámos e explicou-me com detalhes a reacção do presidente Samora.
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