Segundo episódio – O não discurso de Samora
No Quarto Congresso da Frelimo, em 1983, fui designado como responsável do Gabinete de Imprensa. Nós, os jornalistas, ficávamos confinados a um compartimento envidraçado, numa espécie de aquário suspenso sobre a grande sala. Na altura, nós já produzíamos emissões de televisão para além, é claro, da rádio e dos jornais. Logo no inicio dos trabalhos, Samora Machel subiu ao pódio para usar da palavra. Trazia consigo o Relatório do Comité Central que era, à maneira dos partidos revolucionários, um documento volumoso. Assim que começou a ler, Samora teve uma breve hesitação, colocou os papéis na bancada e falou de improviso. Foi um improviso breve mas o que ele disse foi, para mim, mais importante e mais duradouro que o extenso relatório do Comité Central. Inclinado sobre o pódio, como se ganhasse a proximidade de uma confidencia, Samora convertei a solene Sala de Congressos num espaço com intimidade familiar. E falou do seu sentimento de estranheza ao ver-se como um ex-guerrilheiro agora rodeado de facilidades, cercado pelas obrigações protocolares e de segurança de um palácio presidencial. E disse mais, falou daquilo que ele chamou das “balas doces do inimigo”. Referia-se às formas mais subtis de sedução e de corrupção que, no seu entender, eram mais perversas que as verdadeiras balas. E ele interrogou-se se os seus companheiros estariam preparados realmente para esse embate, se estavam preparados para enfrentar as balas de açúcar. A sala estava suspensa naquela confidência. A rádio e a televisão transmitiam em direto aquele desabafo do Presidente. E escutavam-se não só as palavras mas os silêncios e a respiração inquieta do presidente. Naquele momento, um oficial do protocolo entrou na Gabinete de Imprensa e entregou-me um papel com uma instrução rabiscada que dizia: interrompam imediatamente a transmissão. Aquilo foi, para mim, um balde de água fria. Porque me parecia, como jornalista e como cidadão, que estava ali a acontecer tinha um alcance didático que não poderia ser recuperado se perdêssemos a transmissão. Mas havia naquele bilhete uma ordem que eu não tinha modo de refutar. Ocorreu-me uma pequena manobra de diversão. Eu queria apenas uns minutinhos adicionais. Quem sabe o Presidente não usasse mais que esses minutos? E escrevi o seguinte nas costas no bilhete: desculpe, não entendo bem a assinatura, não se importa de identificar melhor, afinal é o Presidente quem está falar…. Dobrei muito lentamente a folha e pedi ao mensageiro do protocolo que fosse de volta. Aquele vai e vem deu-me tempo para que o presidente terminasse o seu improviso em transmissão direta.
De toda a minha carreira de onze anos de jornalismo talvez tenha sido este o momento maior. Porque estava ali um dirigente de uma nação que se despia do seu estatuto infalível e partilhava não uma certeza, mas a confissão de uma insegurança, de um fragilidade. Estava ali não um líder revolucionário discursando em voz alta, mas um homem dobrado pela angústia e murmurando dúvidas sobre o quanto valera a pena toda a sua luta.
Durante um intervalo desse mesmo congresso tive a oportunidade de me sentar com um grupo de veteranos da luta de libertação nacional. E eles foram relatando como saíram clandestinamente do país para se juntarem à luta nacionalista. Alguns desses homens confessaram que o principal motivo da sua fuga não era a libertação da pátria. O que os movia a sair de Moçambique era poderem estudar. E quando, na Tanzania, receberam a notícia que, em vez de estudar, iriam combater esses militantes foram assaltados por dilacerantes dúvidas. Alguns pensaram em desertar e fugir dos campos de treino. Foi isto que confessaram. E eu pensei que havia mais coragem naquela confissão, do que em toda a sua arriscada odisseia. Aquelas pequenas histórias humanizavam a narrativa solene e oficial que apresenta a epopeia dos nacionalistas como um desfile de super-homens. Afinal, o ninguém nasceu herói. Ele cresceu, teve duvidas, sentiu medo. A bravura maior não está no modo como combateu aos outros. A grande coragem está no combate interior, esse que fazemos para nos superar a nós mesmos.
Falei-vos há pouco dessa proposta de hino chamada Pátria de heróis que foi entoada como Pátria de Arroz. Lembro-me que, na altura, até gostei do equívoco dos cantores, porque me vieram à memória as palavras de Albert Camus quando recordava a Argélia onde ele nasceu e dizia: “Pobre do país que precisa de heróis”.
Naquela altura achei que talvez fosse preferível uma pátria de arroz a uma pátria de heróis. A verdade é que a nossa epopeia nacional foi apropriada por um discurso vazio de exaltação patrioteira.
O resultado é que as nossas ruas e praças estão recheadas de nomes de heróis. A esses heróis, porém, falta-lhes rosto, falta-lhe voz, falta-lhes vida. Herdámos uma história heroica de heróis sem história. Só temos a História com H maiúsculo. Faltam-nos as pequenas histórias, falta-nos os pequenos episódios que seduzem a imaginação e sustentam a memória.
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