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Dois anos de presidência de João Lourenço em seis questões.
As mudanças e limites da primeira metade de um mandato que, para todos os efeitos, está a conseguir tornar "Angola diferente do que foi durante a era de Eduardo dos Santos".
O presidente João Lourenço começou "a introduzir reformas bastante cedo, o que não era esperado", afirma David Matsinhe, investigador da Amnistia Internacional (AI) para Angola e Moçambique. Uma "surpresa positiva" de que Matsinhe dá como exemplo a convocação de representantes da sociedade civil "para conversarem diretamente" com o presidente, após a sua viagem a Portugal em finais de 2018.
Houve desde o início "um esforço de rutura com práticas do passado" enunciado, desde logo, "no discurso de tomada de posse do presidente" a 26 de setembro de 2017, defende o investigador angolano e professor de Ciência Política Paulo Conceição Faria.
Daquela intervenção, o académico angolano destaca uma frase: "ninguém é rico ou poderoso demais para se furtar a ser punido, nem ninguém é pobre de mais ao ponto de não poder ser protegido". Por detrás deste enunciado, pensa Paulo Faria, está um amplo programa que visa "o resgate da crença e confiança nas instituições do Estado", "o combate à corrupção, nepotismo e impunidade", a afirmação da "prioridade do interesse nacional sobre os interesses particulares ou de grupos" e "o convívio com a crítica e diversidade de opinião".
O que tornou possível, ainda que com todos os limites, para o diretor do Programa África da Chatham House, Alex Vines, afirmar que, "apesar da lentidão" deste processo, "Angola é já diferente do que foi durante a era de Eduardo dos Santos".
Se é possível detetar "um novo ciclo nas várias esferas da vida nacional" angolana, como pensa Paulo Faria, esta assume particular relevância na esfera económica, sustenta Alex Vines. "A reforma da Sonangol e a reestruturação da indústria do petróleo e do gás são fundamentais", assim como "as mudanças previsíveis no setor mineiro", diz o investigador da Chatham House, para mudar o paradigma económico. Se isto não suceder, a economia angolana continuará na "extrema dependência" daqueles setores, acentua Paulo Faria, autor de O Público e o Político em Angola.
Outros sinais de mudança são visíveis. O cientista político angolano dá o exemplo da "captura de bens em posse de antigos gestores" e "recuperação de ativos financeiros identificados como originários dos fundos públicos", desde logo do Fundo Soberano. O investigador angolano nota o relevo dado ao "aumento da produção interna" e a "anulação do concurso público para uma quarta operadora móvel por não terem sido observados os princípios da transparência e justa concorrência".
Mas há "sérias limitações", sublinha David Matsinhe. "Tudo está concentrado em Luanda". A capital angolana funciona "como uma bolha, uma ilha. Tudo se passa apenas em Luanda", constata o investigador da AI.
"O resto do país não sente essas transformações aplicadas por João Lourenço". O resto de Angola "ainda continua na mesma", salienta Matsinhe, nomeadamente em matérias de direitos económicos e sociais.
Este é um dos desafios ainda por vencer, admite o investigador da AI. As mudanças "devem fazer-se sentir e estender-se ao resto do país", onde "nada mudou" e que continua refém daquilo que Matsinhe classifica como "a velha guarda".
Com uma taxa de desemprego acima dos 28%, segundo os números mais recentes, sucedem-se os protestos pela criação de postos de trabalho e contra a inércia das autoridades, ainda que, em abril de 2018, João Lourenço tenha aprovado o Plano de Ação para Promoção da Empregabilidade (PAPE) com o objetivo responder aos problemas nesta área.
As sucessivas marchas contra o desemprego, das quais as mais recentes sucederam a 24 de agosto de 2019 em Luanda e noutras cidades angolanas revelam, para o investigador da AI, a dimensão das "tensões económicas e sociais" neste país.
Já para Paulo Faria, Angola "é um país doente em quase todas as áreas nevrálgicas - saúde, economia, educação" e "desemprego elevado que atinge os jovens de forma muito significativa". Um diagnóstico subscrito também pelo responsável para África da Chatham House.
Segundo Alex Vines - para quem "João Lourenço herdou uma economia em profunda crise e que vive um quarto ano de recessão consecutiva", prevendo-se que em 2019 seja de 1% e só volte a crescer em 2020 - as reformas económicas são fundamentais. Desde logo nos petróleos e gás, antecipando o investigador britânico que a partir do próximo ano as mudanças comecem a produzir resultados.
Entretanto, o Orçamento de Estado para o corrente ano mostra um real empenho para com as "áreas sociais", realça o mesmo investigador. Noutro plano, o responsável da Chatham House acredita que os critérios de escolha de "jovens governantes de perfil tecnocrático" que tem vindo a ser seguido procura pôr a ênfase na obtenção de resultados, indispensáveis para alterar a perceção dos angolanos face às capacidades de resposta do executivo. Este é "um presidente muito atento ao que pensa a classe média angolana", sublinha o britânico.
O programa de reformas de João Lourenço "pouco tem a ver com o enraizamento da democracia ou o pluralismo político. A prioridade é estimular o crescimento económico, a criação de emprego e a qualidade da ação governativa", afirma Alex Vines. Para o analista da Chatham House, o desígnio estratégico é reforçar e "rejuvenescer o MPLA, tendo em vista as eleições municipais de 2020 ou 2021 e as nacionais de 2022".
"A estratégia de João Lourenço é a de alcançar uma clara maioria para o MPLA nas eleições de 2022" ao mesmo tempo que está, desde já, a preparar "uma nova geração que lhe possa suceder" para quando concluir o atual presidente cumprir o segundo e último mandato, antevê o investigador britânico. A atual Constituição angolana interdita um terceiro mandato presidencial consecutivo.
Um dos principais desafios para o líder angolano é, de facto, a reinvenção do MPLA como partido de poder. "Trata-se da questão da própria sobrevivência histórica" desta formação e da "reconfiguração da sua identidade político-partidária", pensa Paulo Faria. Este investigador acredita que se o MPLA recusar a dinâmica de mudança acabará vítima de "esclerose e opacidade". E dá o exemplo de outros movimentos políticos em África, "da ZANU-PF, no Zimbabwe, ao ANC, na África do Sul, e à Frelimo, em Moçambique", que, não conseguindo concretizar processos de reformas internos, estão a viver aquilo que rotula como uma "batalha de sobrevivência".
Estes partidos não conseguiram desvincular-se de uma lógica de "sistemas neopatrimoniais que se vai tornando, gradualmente, mais obsoleto" e, assim comprometem a sua legitimidade ao optarem por preservar aquilo que o autor angolano define como "a economia dos afetos" ou, por outras palavras, a prática do clientelismo.
Um modelo que está em crise "pela emergência de um novo público", com novas e exigentes reivindicações "em termos de padrões de boa governação, modernização do aparelho de Estado, eficiência e qualidade dos serviços públicos", adverte Paulo Faria. Se o MPLA não estiver atento a esta tendência e insistir nas "formas de monopólios fascizantes sobre o Estado" está a minar a sua subsistência como força política hegemónica na sociedade angolana, porque esta - como a generalidade das sociedades africanas devido à crescente massa crítica das populações com menos de 35 anos - está a mudar.
O partido no poder parece, no entanto, consciente do facto. A passagem do "Comité Central do MPLA de 363 para 497 membros no VII Congresso Extraordinário [junho de 2019] sugere que o consenso é uma questão geracional em construção, na medida em que 134 jovens elevados a este órgão" estariam mais alinhados com o projeto de João Lourenço, "do que com os guardiões do ancien régime", argumenta o autor de O Público e o Político em Angola.
Os acontecimentos em torno do Fundo Soberano e a prisão de Filomeno dos Santos revelam importante "simbolismo no combate à corrupção", algo que o "poder político quer transmitir sem margem para dúvida", realça o investigador da AI.
A dimensão simbólica é também destacada por Alex Vines. João Lourenço "não tinha escolha se não enfrentar a família de Eduardo dos Santos pelo seu peso e influência na economia angolana" e pelos anticorpos "generalizados" que esta situação gerou em Angola. Além de necessárias, as medidas apontadas a enfraquecer a influência da família Eduardo dos Santos é "também popular", indica o responsável da Chatham House.
Para Paulo Faria, o julgamento de Filomeno dos Santos, que já teve data marcada mas foi adiado nesta semana, é "um indicador bastante claro de que as mudanças em curso são reais e não lineares". O cientista político angolano este é um exemplo do "compromisso de João Lourenço no combate à impunidade".
O investigador da AI deixa uma precaução importante: independentemente da imagem que se quer construir, para o interior e para o exterior, "não importa quem é o réu, os seus direitos devem ser respeitados e deve ter acesso a um julgamento justo".
"Ao contrário de Eduardo dos Santos, João Lourenço é uma pessoa bastante viajada. E se as suas prioridades são a reforma do MPLA e a reconstrução da economia angolana, Luanda tem mostrado capacidade de liderança" no plano regional, designadamente na crise que envolve os países dos Grandes Lagos". A análise do investigador da Chatham House põe em destaque um dos aspetos que têm caracterizado a presidência de João Lourenço: um papel mais afirmativo nas questões regionais e de maior afirmação internacional.
Uma perspetiva também sustentada por Paulo Faria, que destaca a vertente diplomática, "a via do diálogo direto" e um "exemplarismo construtivo na região da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla em inglês), na Conferência Internacional sobre a Região dos Grandes Lagos e além Continente". Dois exemplos concretos para o autor de O Público e o Político em Angola: a assinatura do memorando de entendimento, em agosto último, entre os presidentes do Uganda, Yoweri Museveni, e do Ruanda, Paul Kagame, um desenvolvimento também sublinhado por Alex Vines, e o Fórum Pan-Africano para a Cultura da Paz. Ou, anteriormente, em todo o processo que culminou na renúncia de Joseph Kabila em se apresentar às presidenciais da RD Congo e posterior eleição de Félix Tshisekedi, no início de 2019.
Com "a pouco referida reforma geral das forças de segurança", que visa a modernização daquelas "que são uma das maiores forças armadas de África", recorda o responsável da Chatham House, Angola estará em vias de se dotar, no plano militar, de um outro instrumento de afirmação regional.
Subjacente a este processo, está uma outra vertente dos desígnios externos de Angola, aliás já expressamente mencionados por João Lourenço: o envolvimento do seu país em missões de paz internacionais.
Um investigador da história militar de Angola, Luís Brás Bernadino, citado a 16 de setembro passado pela Lusa, identifica aquele "como o grande objetivo. É ter Angola a contribuir para operações de paz no âmbito das Nações". Para o autor de As Forças Armadas Angolanas - Contributos para a Edificação do Estado, só "falta vontade política" ou o momento certo para a concretizar. Nessa altura, "as forças armadas angolanas sobem para um outro patamar", defende Brás Bernadino, e com elas, de certa forma, também a dimensão da influência externa deste país.
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