Eu cresci em uma favela da zona norte do Rio de Janeiro frequentemente invadida por operações da PM. Sempre convivi com pesadelos e flashbacks de situações de trauma. A minha visão de mundo se baseou na ideia que o perigo está por todos os lados e as pessoas são más – e, por isso, me acostumei a ficar sempre em um estado hipervigilante e evitar situações que me lembrassem os momentos de maior medo.
Foi só agora, pesquisando sobre saúde mental nas favelas, que eu descobri que isso tudo tem um nome: transtorno de estresse pós-traumático, o Tept, principal doença psiquiátrica associada à violência no mundo.
Uma pesquisa feita em 2017 pelo instituto de psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o IPUB, mostrou que eu não estou sozinho. Cerca 550 mil pessoas no estado sofrem de transtorno de estresse pós-traumático, o Tept. Os dados são de 2017, mas a sensação de adoecimento da população em 2019 é bem maior.
Não poderia ser diferente. De janeiro a julho deste ano a polícia fluminense matou 1.075 pessoas, maior número de mortes cometidas pela polícia em 20 anos. Isso é quase metade das mortes violentas em todo o Rio em 2019! A população das favelas clama por paz, mas no plano de governo de Wilson Witzel só tem espaço para a guerra.
Em todos os momentos da história em que uma população se viu em guerra, foi o Tept que apareceu com mais força, como por exemplo na Guerra Civil Americana, quando foi chamado de
síndrome do coração irritável, e na Primeira Guerra Mundial, em que ganhou o apelido de
choque da granada.
É inegável que o Rio vive um estado de guerra e o quanto isso afeta a população, principalmente o lado mais fraco da corda – pretos, pobres e favelados –, que convivem diariamente com operações policiais em que são usados helicópteros, carros blindados como o famoso Caveirão, armamento de guerra e táticas de intimidação que não perdem em nada para conflitos escancarados ao redor do mundo. Não sei se vocês viram, mas no começo do mês um soldado do Bope aqui do Rio
pendurou um crânio de cabra no uniforme. Simpático, não?
Conversando com o psiquiatra Willian Berger, professor do IPUB e responsável pelo estudo, aprendi a chamar de Tept os sintomas que senti na pele ao conviver, desde pequeno, com violência policial. Há uma sensação constante de medo e paranoia.
“A pessoa, por exemplo, se mudou para a casa de um parente distante em que não há tiroteios nem operações policiais mas continua hiper vigilante, fica preocupada o tempo todo de alguma coisa parecida pode acontecer”, explica Berger.
Existe uma ideia de que a exposição frequente a violência cria uma casca em você e isso não é verdade. Cada corte de luz, cada tiroteio, cada corpo pelo chão te marca. É como um copo que vai enchendo até transbordar. Esse preconceito, segundo Berger, está presente nos próprios moradores de favelas, que ainda enxergam o adoecimento psicológico como uma fraqueza e a saúde mental como um tabu.
Agora imaginem o efeito da convivência com essa violência nas crianças que moram nas favelas do Rio. Em sua rotina, elas são expostas desde cedo a armas de fogo, tanto nas mãos do tráfico quanto da polícia, e em alguns casos até a torturas e execuções. Quem consegue estudar quando precisa correr para se esconder de um tiroteio? Mesmo ir à escola é uma dificuldade: no ano passado
uma a cada três escolas no Rio passaram ao menos um dia fechadas devido à violência.
A cidade do Rio tem 36 escolas municipais localizadas em áreas com conflitos constantes e só quatro delas (11%), segundo
dados do jornal O Globo, bateram a meta de qualidade estipulada pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o Ideb, que leva em conta o nível de aprendizado, a quantidade de alunos aprovados e reprovados e a evasão das salas de aula. No restante da cidade, esse percentual foi de 23%.
Há ainda a “sensação de aprisionamento” que só quem não conseguiu chegar ao trabalho ou a um compromisso porque havia um tiroteio rolando na porta de casa sabe descrever. Situações como essa, diz o pesquisador da Fiocruz Leonardo Bueno, que focou sua pesquisa em uma área conhecida como “Faixa de Gaza” devido à violência, levam os moradores das favelas cariocas com frequência ao adoecimento, tornando nomes como depressão e síndrome do pânico comuns. E se não há vagas no estado para receber quem sofreu um acidente, quiçá alguém com uma doença psíquica. A rede pública de saúde mental, incluindo a assistência psicossocial, é minúscula e não comporta as necessidades das vítimas diretas e indiretas da (para)militarização.
Manter um estado de guerra e uma parcela da população doente e com medo parecem ser alguns dos principais planos de governo de Wilson Witzel. Afinal, quem se elegeu prometendo atirar na cabeça das pessoas e já desceu de um helicóptero comemorando uma morte como quem celebra um gol não está nem aí para quem vive sob o domínio do medo.
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