Monday, July 8, 2019

Repressão e pedagogia

Repressão e pedagogia
Nunca é bom meter-se em assuntos alheios, sei, mas o que se passa em Angola diz respeito a quem se define por certos valores. O respeito pela dignidade humana que em nenhuma circunstância pode ficar refém do que aqueles que têm o poder do Estado consideram importante fazer é um desses valores. Decorre desde o dia 6 de Novembro uma “operação” governamental com o nome “Resgate”. Tem como objectivo, segundo o Ministério do Interior, repôr a autoridade do Estado através do combate implacável à informalidade, ao crime e à desordem. Uma outra operação paralela consiste na identificação e expulsão de estrangeiros em situação de ilegalidade no país, algo que agora com o benefício do tempo nos permite apreciar com mais rigor o discurso do Presidente angolano em Estrasburgo em que depositava as culpas nos próprios africanos.
A situação de Estados como de Angola, Moçambique e de tantos outros países africanos não é invejável. A sua debilidade cria espaço para o surgimento de formas de estar que não só constituem uma afronta ao Estado, mas também um câncro susceptível de comprometer a capacidade do Estado de combater o que está na origem dessas formas de estar que mais não são do que respostas à precariedade. A Europa constituiu os seus Estados em momentos históricos durante os quais certos valores hoje considerados muito importantes eram algo secundários. A repressão foi tão parte desse processo de construcção quanto foi o trabalho laborioso – muitas vezes em jeito de contestação e resistência – de consolidação de certos valores basilares.
O Estado de direito não esteve na origem, mas sim foi um dos resultados desse processo. Foi a sorte europeia muito bem documentada por Foucault naquele livro com um título próximo da ideia angolana: disciplinar e punir. A questão que se coloca hoje aos países africanos é se na construcção dos seus próprios Estados devem ignorar as conquistas normativas europeias e fazer tudo de novo, ou tentar fazer esse trabalho tendo em atenção o que hoje se observa. Não é fácil, sobretudo num continente onde a constante referência a valores “africanos” vagos e romantizados se tem afirmado como uma recusa de reconhecer onde os outros levam a melhor sobre nós no que diz respeito à protecção da dignidade humana.
A ideia de que se recupera a autoridade do Estado a partir da repressão faz muito sentido para esferas públicas confrontadas diariamente com a desordem. Não admira, pois, que gente sensata não veja nenhuma contradição entre “repressão” e “pedagogia”, os dois instrumentos usados para resgatar a autoridade do Estado – Mugabe também fez isto em tempos. O problema, porém, é que sendo essa desordem o resultado da debilidade do Estado haverá, certamente, razões para recear que se abra um grande espaço de arbitrariedade que vai implicar a prática de abusos contra várias pessoas inocentes. Mesmo aqueles que não sendo inocentes gozam da presunção de inocência verão os seus direitos violados sem muito espaço para serem ressarcidos. Tenho dificuldades em perceber como agentes do Estado que até há pouco tempo eram responsáveis por desmandos vão ser a partir de agora os garantes da legalidade. Avizinham-se tempos sombrios para Angola.
Mas a questão de fundo que me leva a escrever estas linhas é mesmo axiológica. Que valores exactamente inspiram esta acção? Ou melhor, que valores “africanos” ou “ocidentais” inspiram a operação “resgate”? É que se a acção não se inspira em valores, mas sim apenas na razão e na força do Estado haverá motivos para todos nós ficarmos apreensivos. Existem números para “denúncias” – termo também usado pelo nosso próprio chefe de estado para encorajar as pessoas a violarem a dignidade humana de africanos residentes em Moçambique – algo que mete muito medo sobre como se pensa a construcção de Estado no nosso continente. Podemos não gostar do Ocidente, nem daquilo que ele nos faz, mas há um conjunto de valores que define esse Ocidente. Independentemente do que ele faz com eles, esses valores são importantes para nós também. O Estado não vem apenas como um aparelho mecânico. Vem acompanhado de valores que garantem, no fundo, a sua viabilidade.
Rezo para que esta forma de construir o Estado não chegue a Moçambique. Nem que para isso a gente tenha que aturar o sector informal eternamente. O respeito pela pessoa humana tem que estar acima de tudo.
Comentários
  • Lyndo A. Mondlane Ademais a melhor forma de combater o sector informal è atraves da criaçao de postos de trabalho formais (aqueles nao sao empregados, sao apenas ocupados)
    Esse è um dos grandes problemas de muitos paises africanos, combater o problema desde o topo. aind
    a me recordo da iniciativa da mulher de guebuza, de querer combater a mendicidad dos maiores, proibindo, sem querer entender e combater as causas..

    Como dizes prof. Enquanto nao se criarem postos de trabalho decentes, vivamos pois com os informais..

    Outra coisa è a deliquencia.

    E ja veras q depois de um tempo, o problema voltara..

    Ha miseria assustadora em angola, q conheço bem o pais (sem nunca haver estado)
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    • Elisio Macamo sim, é interessante notar que a coisa não vem acompanhada de nenhum projecto de criação de empregos ou algo parecido. é repressão.
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    • Lyndo A. Mondlane Tenho 2 trabalhadores em angola, um ex militar, faço o q posso, e è satisfatorio quando o pouco q lhe pago resulta util para ele.. porq esta mal....
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  • Paulo Inglês Pois ai está o cerne da questao: porque é que Estado faz isso? A resposta tem sido porque tem legitimidade. Nao so encrava a discussao mas retira o assunto do espaco da discussao política e pública remete para o Estado como patrono ou padrinho.
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    • Elisio Macamo é este recurso a termos que mal entendemos que acaba incomodando. o que é legitimidade sem respeito? o assunto é grave. angola faz, no fundo, o que muitos outros no continente gostariam de fazer. o que me incomoda é que teriam muito apoio da sociedade.
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    • Paulo Inglês Elisio Macamo se ao menos o governo explicasse o que pretende fazer ( dando de barato a sua péssima política de comunicaçao) podiamos ao menos entender. Um assunto como este que mexe com uma parte grande da sociedade e sendo um assunto sensível, o presidente nem se da ao trabalho de explicar! Aqui tambem se poe a questao da dignidade! Do respeito e da política.
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    • Paulo Inglês É como quando o prego pergunta ao martelo: porquê me bates? O martelo responde porque sou o martelo. A lógica do uso da força está apenas no facto de poder usar e não inspirado em alguma política ou valor como tu dizes.
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    • Elisio Macamo Paulo, sim, é isso.
  • Constantino Pedro Marrengula Junto me as suas rezas, prof. Devia parar em Angola. Duvido que dê algum resultado além de reprimir pessoas que foram empurradas para a informalidade. Os ventos de Angola nao se recomendam!
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  • Jose Cossa Este camarada JLO parece que não vivia em Angola. Parece que quer começar de novo tudo. Deixa o essencial e persegue gente...diversificar a economia nada...
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  • Sizaltina Cutaia Prof Elisio Macamo por favor, põe público para poder partilhar 🙏🏾
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  • Danilo da Silva Para muitos, valores “africanos” são diametralmente opostos aos valores ocidentais, como se os africanos fossem uma espécie de sub ou supra humanos.

    Eu acho que existem valores que são universais. Não são nem africanos, nem ocidentais, não simplesment
    e humanos... mas como diz o professor...”Não é fácil, sobretudo num continente onde a constante referência a valores “africanos” vagos e romantizados se tem afirmado como uma recusa de reconhecer onde os outros levam a melhor sobre nós no que diz respeito à protecção da dignidade humana.”

    Parece que África quer errar, só para dizer que também passou por pelo mesmo erro.
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    • Elisio Macamo há uma certa incoerência. o estado e todas as suas instituições não é “africano”, mas como serve para outras coisas não há problema...
    • Danilo da Silva Elisio Macamo eu sei disso... por isso muitas vezes esses argumentos em torno dos “valores africanos” que devem nortear os estados modernos (conceito bastante europeu), chega a ser cómico. 
      Há um barulho a acontecer entre o conselho executivo da união
       africana e a comissão africana de direitos dos homens e dos povos. Os nossos presidentes acham que a comissão deve se nortear por “valores africanos” para interpretar questões relacionadas com direitos humanos..por “valores africanos” os nossos chefes de estado querem dizer “machismo, patriacado, desrespeito pelas escolhas alheias”
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    • Elisio Macamo sempre a mesma história. por vezes esses valores africanos são extraídos do velho testamento...
    • Danilo da Silva Tristeza... mas eles estão redondamente enganados. O seu tempo já passou!
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  • Tomas Mario Estive em Luanda muito recentemente, e em ambiente de intenso convívio com colegas jornalistas angolanos. Tentei algumas vezes "puxar" conversa com muitos deles, a respeito destas "operações". Eles eram sistematicamente evasivos a respeito. Tive a impressão que haviam, tacitamente, estabelecido entre si e para com o "exterior" uma especie de consenso negativo: não comentar! Algum sentimento de desconforto? Pudor? Ou nem por isso?...
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    • Elisio Macamo imagino esse desconforto. mas também pode ser que, no fundo, concordem com a coisa. tem isso também. em moz seria o mesmo. muitos apoiariam.
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    • Tomas Mario Elisio Macamo 
      Sim, muito provavel.
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    • Luis Mucave Estou em Luanda,desde o dia que iniciou a operacao resgate.
      Foi terrível ver até a policia a passar por cima das tradicionais kinguilas,que são uma paisagem.desta cidade.
      Há desconforto popular em relação a operação resgate.

      Conversando com amigos e pessoas na rua,ouve-se "vamos lhe mostrar nas urnas,então ainda não vimos a comida no prato e já nos faz isto"
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    • Elisio Macamo esse é um dos problemas. cidadania não se faz apenas nas urnas.
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  • Adérito Mariano É muito interessante a questão colocada a nível dos valores. Acho que um dos grandes dilemas que vivemos actualmente, em Angola, é agirmos com a nossa própria cabeça num quadro de imposição de valores ocidentais neo-liberal (não sei muito bem o que é isto?) na definição das políticas públicas. O pior é que não se vê por tão perto alternativas credíveis.
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    • Elisio Macamo o neo-liberalismo atrai justamente porque subordina valores e direitos ao que é funcional a uma concepção problemática do mercado. tendências autoritárias têm muita afinidade com isso.
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  • Gilson Lázaro Prof. Elísio Macamo: não há direito de exclusividade para abordar os assuntos de Angola. Fica dentro da irmandade entre o atlântico e o indico. A operação regaste é um modo disfarçado de ordem para "vigiar e punir" ante a falta de reconhecimento da incapacidade do estado. Algumas pessoas por aqui colocaram na cabeça que a informalidade é a nossa desgraça, quando temos assuntos mais sérios para enfrentar. Eu partilho da sua preocupação em saber se os mesmos agentes do estado que foram permissivos por incapacidade ou por conluio durante anos a fio terão condições de garantir que não haja arbitrariedades na sua atuação. Tenho muitas dúvidas e também estou apreensivo quanto a forma atual de fazer política por estas bandas. Mais assustador ainda é o facto do comandante geral da polícia vir a público afirmar que a operação tem como finalidade “resgatar os bons costumes”.. Gostava de saber que bons costumes são esses que se perderam com e no tempo.. Domesticar a realidade assegurando a dignidade humana é um bico de obras.
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    • Elisio Macamo obrigado, Gilson, percebo. aposto que muitos que defendem isto riram-se do coiso no brasil e nos eua. grave.
    • Danilo da Silva Toda essa retórica “ bons costumes” , “ tradições”, etc lembra o tempo do Salazar...só falta mesmo “ Deus, família e pátria"...será que os escurinhos estão a mostrar as suas caras brancas?
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  • Pedro Comissario Excelente análise. Justa e equilibrada. Aplaudo e recomendo.
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  • Eduardo J Sitoe Bom eu tenho estado a caminhar pelas ruas de Luanda duas a três horas diárias à cerca de três semanas. Paro para refeições rápidas aqui e alí e aqui, incrivelmente, a conversa flui como "jindungo" fulminante: poucos avisados acreditam na retórica oficial! Isto é quinino para a prevenção da malária!
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  • Jaime Langa Custava dar um prazo aos estrangeiros para se legalizarem? Criando facilidades para tal e findo o prazo seriam convidados a abandonar o país?
    • Sizaltina Cutaia Estão a expulsar refugiados que esperam há anos por documentos que comprovem a sua situação e que o próprio governo não emite desde 2014.
  • Júlio Mutisse Jaime Langa permita me concordar aqui com o Liambeiro do Elisio, quando ouvi falar desta operação lembrei me de operações similares na capital capitaneadas pelo Edil Simango. Não deram em nada quer no Xikelene quer na baixa porque, a meu ver, combatia se o que se via (desordem feia por acaso) e não as causas. 
    Lembro me da nossa própria actuação enquanto dirigentes municipais, em parte, cometemos esse erro inicialmente até percebermos que repressão só não resolve. O que se havia conseguido para liberdade e Malhampsene mostra que repressão pura e simples não resolve o que estudo e conhecimento das causas pode resolver associado a inclusão e diálogo. Tomara que tenham feito o que nós (mais tu do que eu se bem que eu era o cérebro e tu a força física) fizemos e logramos aquele plano giro que ia requalificar a terminal da liberdade e aquele dumbanengue gigante em Malhampsene que não foi adiante depois das mudanças ocorridas e depois da nossa saída E que pode ser resgatado. Vejo Filimao Suaze a ir por uma linha de sensibilização que, creio, vai para além do Facebook.
  • Sebastiao Conceiçao Opa, ha momentos que ficamos sem palavras e limitamo-nos a querer perceber para onde vamos. se esta pergunta fosse conveniente para o nosso contexto, transporíamos o texto do Professor, a quem devo melhor respeito, para vários contextos e concentrar-me ia para o meu Pais. confesso que faria diacronias a partir dos exórdios do seculo XXI. Neste contexto ficaria estupefacto se percebesse que operação resgateª não produz visão nem sentimento "unidimentional". concluiria acima de tudo que não ha atuação modelo do mesmo jeito que não ha sentimento modelo em relação a fenómenos que acompanham os nossos tempos. Talvez ficasse moralizado se olhasse para o inicio do ultimo quarto do seculo XX encontrasse sentimento colectivo, porque sera então? teria sido mesmo? creio que não, apesar do contexto forte para razão dum colégio colectivo de atuação que "foi justa". creio ser suficiente para aperceber que os que esfregam o dedo para punir a JL por causa da operação resgate " é porque a comida ainda não esta nos pratos", todavia, acredito que outros devem esfregar o dedo porque esperam que a comida chegue, como o sebastianismo português. para estes talvez perguntemos se tem prazos para ter a comida nos pratos ou julgam que em algum momento sentirão o atraso como os primeiros. talvez uma franges não tenha posição, por forma a dar-nos espaço para proporcionarmos perceções sobre a diversidade de esferas de ver e sentir sobre a operação " resgate". hoje grita-se pelo resgate ontem pela penhora. em ambos casos o mapa talvez tenha sido o mesmo ouvimos tanto o que nos chegava e sentimos na diversidade talvez pelos diversificados patamares como diria Marx. Respeito com certeza este principio. creio que tantos outros.

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