Repressão e pedagogia
Nunca é bom meter-se em assuntos alheios, sei, mas o que se passa em Angola diz respeito a quem se define por certos valores. O respeito pela dignidade humana que em nenhuma circunstância pode ficar refém do que aqueles que têm o poder do Estado consideram importante fazer é um desses valores. Decorre desde o dia 6 de Novembro uma “operação” governamental com o nome “Resgate”. Tem como objectivo, segundo o Ministério do Interior, repôr a autoridade do Estado através do combate implacável à informalidade, ao crime e à desordem. Uma outra operação paralela consiste na identificação e expulsão de estrangeiros em situação de ilegalidade no país, algo que agora com o benefício do tempo nos permite apreciar com mais rigor o discurso do Presidente angolano em Estrasburgo em que depositava as culpas nos próprios africanos.
A situação de Estados como de Angola, Moçambique e de tantos outros países africanos não é invejável. A sua debilidade cria espaço para o surgimento de formas de estar que não só constituem uma afronta ao Estado, mas também um câncro susceptível de comprometer a capacidade do Estado de combater o que está na origem dessas formas de estar que mais não são do que respostas à precariedade. A Europa constituiu os seus Estados em momentos históricos durante os quais certos valores hoje considerados muito importantes eram algo secundários. A repressão foi tão parte desse processo de construcção quanto foi o trabalho laborioso – muitas vezes em jeito de contestação e resistência – de consolidação de certos valores basilares.
O Estado de direito não esteve na origem, mas sim foi um dos resultados desse processo. Foi a sorte europeia muito bem documentada por Foucault naquele livro com um título próximo da ideia angolana: disciplinar e punir. A questão que se coloca hoje aos países africanos é se na construcção dos seus próprios Estados devem ignorar as conquistas normativas europeias e fazer tudo de novo, ou tentar fazer esse trabalho tendo em atenção o que hoje se observa. Não é fácil, sobretudo num continente onde a constante referência a valores “africanos” vagos e romantizados se tem afirmado como uma recusa de reconhecer onde os outros levam a melhor sobre nós no que diz respeito à protecção da dignidade humana.
A ideia de que se recupera a autoridade do Estado a partir da repressão faz muito sentido para esferas públicas confrontadas diariamente com a desordem. Não admira, pois, que gente sensata não veja nenhuma contradição entre “repressão” e “pedagogia”, os dois instrumentos usados para resgatar a autoridade do Estado – Mugabe também fez isto em tempos. O problema, porém, é que sendo essa desordem o resultado da debilidade do Estado haverá, certamente, razões para recear que se abra um grande espaço de arbitrariedade que vai implicar a prática de abusos contra várias pessoas inocentes. Mesmo aqueles que não sendo inocentes gozam da presunção de inocência verão os seus direitos violados sem muito espaço para serem ressarcidos. Tenho dificuldades em perceber como agentes do Estado que até há pouco tempo eram responsáveis por desmandos vão ser a partir de agora os garantes da legalidade. Avizinham-se tempos sombrios para Angola.
Mas a questão de fundo que me leva a escrever estas linhas é mesmo axiológica. Que valores exactamente inspiram esta acção? Ou melhor, que valores “africanos” ou “ocidentais” inspiram a operação “resgate”? É que se a acção não se inspira em valores, mas sim apenas na razão e na força do Estado haverá motivos para todos nós ficarmos apreensivos. Existem números para “denúncias” – termo também usado pelo nosso próprio chefe de estado para encorajar as pessoas a violarem a dignidade humana de africanos residentes em Moçambique – algo que mete muito medo sobre como se pensa a construcção de Estado no nosso continente. Podemos não gostar do Ocidente, nem daquilo que ele nos faz, mas há um conjunto de valores que define esse Ocidente. Independentemente do que ele faz com eles, esses valores são importantes para nós também. O Estado não vem apenas como um aparelho mecânico. Vem acompanhado de valores que garantem, no fundo, a sua viabilidade.
Rezo para que esta forma de construir o Estado não chegue a Moçambique. Nem que para isso a gente tenha que aturar o sector informal eternamente. O respeito pela pessoa humana tem que estar acima de tudo.
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