segunda-feira, 9 de julho de 2018

Um Anuário para a História

Um Anuário para a História

por Nuno Castelo-Branco, em 04.12.16

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Costumo percorrer com os olhos a vastíssima biblioteca do meu pai e é possível encontrar o que pretenda, por mais estranhos possam ser os temas. Em soma às muitas centenas de volumes que vieram de África, juntam-se milhares de outros adquiridos na Europa, surgindo como surpresa, o seu apego por obras que julgaríamos completamente afastadas da procura de um homem que antes de tudo se interessou pela grande e pequena História e respectivo anedotário relativamente picaresco, bem como pela literatura e aquela gastronomia que indelevelmente marca o ritmo da passagem dos séculos.

Este espesso volume faz parte da história que um dia será contada e não acredito existirem muitos sobreviventes da ampla tiragem um dia feita pela Casa Bayly estabelecida em Lourenço Marques. Esta empresa tinha angariadores de assinaturas que garantiam a presença do nome de uma multidão de entidades e como seria previsível, não está completo. Falta uma miríade de empresas que pelos mais diversos motivos não quiseram pagar para aqui aparecerem, mas estas 1800 páginas são uma boa súmula daquilo que foi o Moçambique do início da década de setenta. Se a tudo isto ainda somarmos as anónimas iniciativas que abriam lojinhas-cantina mato fora, ainda teremos um quadro bastante impreciso daquilo que existiu. 
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Torna-se esmagadora uma pesquisa, mesmo que sumária e na diagonal. São tantas as empresas, são tão diversos os sectores de actividade, são de tal modo completos os serviços públicos presentes no então Estado de Moçambique que dir-se-ia estarmos a tratar de um país perfeitamente estruturado e capaz de de auto-governo e não de uma dependência política e ultramarina de uma nação europeia.

Na agricultura e na pecuária, nas pescas, em praticamente todos os sectores da indústria e serviços, no comércio, turismo, assistência sanitária e escolar e mesmo a inopinada existência de uma Junta estatal da Energia Nuclear, os nomes sucedem-se, fazendo-me recordar alguns que eram visíveis em anúncios ou placards nas avenidas da capital moçambicana, ou em organogramas que ocasionalmente me passaram pela vista de adolescente.

Em termos comparativos, este Anuário é o mais vasto entre aqueles até então publicados, pois nas estantes do meu pai encontro outros de décadas anteriores, sem dúvida mais modestos e pontilhados por sonantes nomes estrangeiros que a economia local fez com que deixassem de ser pertença de companhias majestáticas sediadas em Londres, Joanesburgo, Amesterdão ou Berlim. Folheando-os de vez em quando reconheço nomes de pessoas que conheci. Os portugueses foram nacionalizando essas actividades, normalizando-as no contexto local e sem que isso significasse o esbulho puro e simples daqueles que as detinham. Tornaram-nas parte integral da paisagem económica de uma Colónia que o deixou de ser para passar a ostentar o nome de Província e na fase final da soberania portuguesa, acabou como Estado, aquele degrau que precedia a natural independência a que desde muito cedo habituei os ouvidos nas conversas escutadas à mesa ou com as visitas que tínhamos em casa. Sim, falava-se da independência, mas muito longe do tipo de independência que aconteceu. Não se tratava daquilo que imediatamente alguns leitores porventura estarão a pensar, na independência paralela ao que sucedia na então Rodésia ou na África do Sul. Os portugueses dos anos sessenta e setenta jamais tolerariam algo de remotamente semelhante. O regime enviava de Lisboa para os bancos da escola a mensagem que literalmente falava  "do Minho a Timor" e isso era entendido a nível local como integração de todos. O caso da prática era outro assunto mais complexo e que requeria um curto espaço de tempo que tratando-se de história, significava umas poucas décadas, apenas uma geração.

A administração portuguesa e as suas entidades locais conseguiram realizar uma obra impressionante que não se limitou aos centros urbanos. O interesse pelo país desbravou o interior, ali instalando a administração do Estado que construiu escolas primárias nas vilas que crescendo, em poucas décadas se transformaram em cidades como Tete, Quelimane, Nampula, Porto Amélia ou Vila Pery. As escolas secundárias e os liceus foram surgindo com o passar de poucas décadas e banalizaram-se. Alguns que se interessaram e amaram aqueles locais, mais tarde sobre a sua experiência escreveram algumas memórias, fazendo a história do que viram e ajudaram a criar.

Politicamente este é um Anuário nefasto, pois em si contradiz praticamente tudo aquilo que convém fazer passar por verdadeiro e indiscutível. Habituados como estamos ao ... não fizeram nada durante quinhentos anos que afinal acabaram por ser pouco mais de noventa, este pesado volume fará as delícias dos historiadores que num futuro que considero possível já não se encontrar tão distante, dedicar-se-ão a realizar precisamente aquilo que jamais foi feito: a História. Estarão eles interessado em descortinar como se organizava a governação portuguesa em Moçambique? Bastar-lhes-á seguir o que existia e foi sendo acrescentado ao longo de decénios, confirmando aquilo que hoje todos sabem e preferem não reconhecer publicamente, ou seja, o colonialismo não é possível ser encarado como um todo, uma amálgama que anacronicamente irmane e unifique o correr de umas tantas gerações. Ainda há uns dias a RTP 2 passou um programa em que o objecto de interesse era o grande fotógrafo moçambicano Ricardo Rangel e este fez exactamente o que honestamente não podia ser feito: a amálgama que facilmente induz ao engano, à re-invenção de uma história mais conveniente a quem detém o poder. O Moçambique em que nasci era certamente muito diferente daquele dos anos trinta em que os meus pais vieram ao mundo e este, por sua vez, completamente diverso do dia 15 de Setembro de 1916 em que em Lourenço Marques nasceu a minha avó, filha de uma natural da terra e neta de pioneiros ali estabelecidos logo após a delimitação das fronteiras saídas do Ultimatum.

Somos, todos nós, a nossa família, parte integrante da Associação dos Velhos Colonos de Moçambique e guardados ainda estão os canhotos comprovativos das quotas que nos davam acesso a todos os recintos da instituição, incluindo a piscina onde eu e os meus irmãos aprendemos a nadar. Era para nós um título de honra e por lá não era incomum verem-se outros colonos provenientes das mais diversas paragens do planeta, fossem eles amarelos do Extremo Oriente, ou aqueles genericamente reconhecidos por indianos, muitos no sentido mais lato do termo e que abrange gentes provenientes do Paquistão, Índia, do antigo Paquistão Oriental que ao tornar-se independente passou a ser conhecido por Bangla Desh, das Maurícias - as antigas Ilhas Mascarenhas dos séculos pós-descobertas - ou do Ceilão, não sendo invulgar alguns desses indianos terem como origem o Quénia, o Tanganica ou o rosário de antigas possessões da Coroa Britânica no Índico.

Éramos e considerávamos-nos simplesmente como luso-moçambicanos e assim foi até ao aproximar-se da primeira metade da década de setenta.

As altas individualidades que Lisboa enviou a Lusaka para o encontro com Samora Machel e respectiva entourage, deveriam ter ido munidas com este catrapázio. Para além dos efusivos abraços e descaradamente paternalistas palmadinhas nas costas diante dos fotógrafos, de nada mais necessitavam para o cabal esclarecimento do que imperiosamente deveria ser feito, evitando-se em Moçambique o que aconteceu nas décadas anteriores em todo o continente africano. Em todo ele, sem excepção, do Magrebe ao Congo e Tanzânia. Simplesmente não estiveram à altura do momento.

Servia este livro como aviso que ali não estava apenas uma fastidiosa lista de empresas de exploradores coloniais, mas sim a seiva vital de um país. Existiam milhões de vidas pendentes daquilo que este grosso volume encerrava e de toda esta fastidiosa lista de actividades dependiam para a sobrevivência, para a salvaguarda do ganha pão e das refeições garantidas, dos cuidados de saúde e da educação cada vez mais urgente num mundo em rápida transformação. Isto significava mercados cheios de produtos baratos fornecidos pelas machambas bem organizadas e produtivas, hospitais bem apetrechados com equipamento moderno e  pessoal competente, escolas, uma eficaz rede de saneamento básico, vacinação da população urbana e rural, defesa da vida selvagem, ou a permanência da indústria.

Muito longe de ser um Mandela e muito distante de sequer ter penado aquilo que Mandela terá fisicamente ou psicologicamente passado, o Moisés da independência não foi alertado, não conseguiu ou quis entender o que significaria a deportação do pessoalmente odiado lastro humano colonial. Nisto e noutras excentricidades, está muito mais próximo de Idi Amin. Dizer isto é politicamente incorrecto? Talvez, mas neste caso não é nada que todos não tenham há muito interiorizado, talvez mesmo no politburo do partido dominante em Moçambique.

A impressionante e rápida saída de brancos, mestiços de vários cruzamentos, indianos, chineses e outros, como um raio fulminou num curtíssimo intervalo da história tudo aquilo que esta grande obra, precisamente o conteúdo das 1800 páginas deste livro, significava. Um país liquidado, esmagado em poucos meses e deixado à tremenda fome, incúria no campo da saúde e abandono económico, unicamente devido à incompetência e furor ideológico totalmente desadequado à realidade africana. Rapidamente passado a ruína comparativamente ao que até há pouco fora, tudo desapareceu como se um Apocalipse Moçambique tivesse sofrido sem culpa ou responsabilidade alguma. Mesmo os entusiastas iniciais, aqueles poucos que tentaram ficar para idealistamente construirem algo, fosse esse algo o homem novo ou a nova terra, também fugiram, não conseguiram enfrentar o visível fracasso no qual participaram.

Aqui está uma boa parte da razão pela qual as notícias que de lá chegam nem sempre são aquelas que gostaríamos de ouvir.

Paciência, são estes afinal, os tais ventos da história. Há então que aceitar os factos consumados, mas nem por isso deixarmos de tentar entender o que se passou. É esta, a verdadeira História. 

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