CASO MATIAS GUENTE VS JOANA MATSOMBE
NO DIA EM QUE PILATOS LAVOU AS MÃOS
É assim que chego a este tribunal que julga o jornalista Matias Guente, ainda que obrigado a cumprir com as regras abusivamente restritivas da minha cobertura jornalística que me foram impostas pelo oficial de justiça na primeira sessão do tal julgamento: estou proibido de tomar notas e até mesmo de registar imagens em vídeo ou fotografia. Claro que isto não é um casamento. Só pode ser um julgamento. Maria José Artur está atarantada. Ela chegou muito cedo. Numa de madrugadora. O que a faz madrugar tanto? Está ali para ser a primeira da fila. Quer ocupar o primeiro banco, a fim de testemunhar em lugar privilegiado a sessão de julgamento do jornalista Matias Guente, acusado de crime de calúnia e difamação supostamente protagonizado por meio de uma caricatura publicada no semanário “Canal de Moçambique”, o que ela diz ser uma autêntica palhaçada. Victor da Cruz, que me acompanha, ri-se. Nunca viu alguém considerar uma “palhaçada” a uma acção judicial. Maria José Artur insiste: “Isto é uma palhaçada! Valha-me, Deus!”. Enquanto Maria José Artur espera em baixo, subo com o meu amigo Victor da Cruz, director geral do PROJECTO TPC – Em raros intervalos de lucidez, até ao quarto andar do Prédio Fonte Azul, onde não encontrámos ninguém. Ainda é muito cedo e nós também madrugamos. E o que nos faz madrugar tanto? Estamos ávidos em testemunhar a sessão do julgamento do jornalista Matias Guente, editor executivo do semanário “Canal de Moçambique” e do diário electrónico “CanalMoz”, que responde num processo em que a ofendida é a administradora do Banco de Moçambique, Joana Matsombe. André Cardoso, um jovem activista e rapper, a quem encontrámos lá em cima sozinho, informa-nos que os funcionários do tribunal ainda estão a arrumar a sala de audiências. Ele também madrugou. Em baixo, quando descemos a fim de fazer mais um tempinho com Maria José Artur, encontrámos jovens do Parlamento Juvenil, cuja maioria esteve connosco num acampamento de direitos humanos, cidadania e acesso à informação na semana passada. São eles que nos garantem que NÃO SÃO ACTIVISTAS DE BUFFET, por isso estão aqui. “Estamos aqui para testemunhar alguma coisa qualquer que diz respeito às nossas liberdades e direitos fundamentais que se diz estarem ameaçadas neste julgamento”, diz Victor Fazenda, que nos organiza para uma foto de família. Enquanto vão chegando outras tantas pessoas, das quais os jovens do Parlamento Juvenil parecem ser a maioria, também chega Joana Matsombe, a ofendida pelo desenho do suplemento humorístico “CANALHA”, do Canal de Moçambique. Noto nesse instante que não estamos em presença do mesmo oficial de justiça da primeira sessão de julgamento, aquele que nos proibiu de tomar notas e de registar imagens, a mim e ao fotógrafo jornalista, os únicos que estivemos presentes no primeiro dia do julgamento. Agora trata-se de uma oficial de justiça, que nos orienta com um certo sentido de hospitalidade, como se fossemos bem-vindos. Não vejo flashes e holofotes, o que denota a ausência dos jornalistas da televisão. Também não vejo homens com gravadores, o que mostra a ausência de jornalistas da rádio. Realmente, o jornalismo judiciário está em crise, penso comigo mesmo. Mas também está em crise a solidariedade no seio da classe jornalística. Os jornalistas só podem ser todos uns bêbados. Estamos na sala de audiência depois de todo protocolo observado. “Os que não poderem sentar nos bancos, vão ter que esperar fora da sala, porque ninguém pode estar em pé”, diz a oficial de justiça, o que deixa aborrecidos os jovens do Parlamento Juvenil, que estavam dispostos até a estar em pé para assistir ao julgamento. Alguns conseguem entrar, outros ficam lá fora a murmurar com a oficial de justiça. A juíza entra na sala de audiências e autoriza os presentes que se mantiveram todos em pé para sentarem. Há três pessoas que não estiveram no primeiro dia do julgamento, mas cuja presença já demonstra que não se trata de um dia qualquer: são duas magistradas e um polícia, que não tinham estado no primeiro dia. Até parece que o cinzentinho sentou mesmo ao lado dos processos amontoados para guarnecê-los, a fim de que ninguém os roube. Noto mesmo algumas alterações do cenário, comparativamente à sessão anterior. Só pode ser um assunto sério o que está prestes a ser tratado, de outra forma não haveriam todos esses salamaleques. Eu mesmo não estou preparado para o que se vai seguir, somente estou ávido em perceber qualquer coisa. Em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Depois de observado todo o protocolo, a juíza dá imediatamente a palavra ao magistrado do Ministério Publico, através do qual toda a sala vai testemunhar o trabalho injusto que deram ao Matias Guente, que se diz ter cometido um crime muito grave, o de ter publicado uma caricatura que muito ofendeu a administradora do Banco de Moçambique, Joana Matsombe, um desenho tão perigoso que chegou a abalar o seu próprio casamento, o que a obrigou a convocar toda uma Nação para o debate de questões profundas da sua esfera íntima. A sessão das alegações finais pode parecer mais um filme de comédia para quem não está muito habituado aos salamaleques dos julgamentos, mas também um filme de terror para quem se encontra sentado no banco dos réus, que não conhece qual poderá ser a sua sorte: sobretudo quando está em causa um ano de prisão e uma indemnização de dois milhões de meticais como no caso em apreço. Seria um filme de terror para Matias Guente se ele tivesse medo, mas ele não tem medo nenhum. Natural não treme. É um jornalista responsável. Até confirmou ter feito tudo o que se diz ter feito, mas mesmo assim não cometeu nenhum crime, apenas exerceu o seu trabalho, sendo ele um jornalista independente e frontal que dirige um jornal que optou por um jornalismo de denúncia de condutas desviantes na gestão da coisa pública, até porque os contribuintes do Estado e os cidadãos em geral têm direito à informação. É nas palavras do magistrado do Ministério Público que todos irão testemunhar uma volta de trezentos e sessenta graus que este julgamento hoje dará, um autêntico e extraordinário volt face em toda a acusação. Diz o magistrado que foi no âmbito do exercício da acção penal que o Ministério Público exerceu a instrução do processo-crime contra o jornalista Matias Guente, dado que, não obstante o facto de se tratar de um crime de natureza particular, onde a titularidade da acção penal é da responsabilidade da ofendida, a acção penal não poderia ter tido o seu curso se não fosse a intervenção do Ministério Público. Foi também por entender que o julgamento é a sede própria da produção da prova que o Ministério Público acompanhou a ofendida no processo até desembocar neste tribunal. Não obstante esses factos, o magistrado do Ministério Público afirma que nenhum dos crimes de que o réu Matias Guente vem sendo acusado ficou provado neste julgamento. Não tendo sido provado nenhum crime, nem mesmo de calúnia, nem mesmo de difamação, o Ministério Público, segundo o magistrado, decidiu por retirar a acusação, bem como por, em nome da verdade e da justiça, pedir a absolvição de Matias Guente, dado que, segundo ele, a condenação do jornalista pelo exercício da liberdade de imprensa e de expressão seria um recuo monumental nas conquistas alcançadas na construção do Estado de Direito e Democrático. As palavras do magistrado já emocionam a claque, que nunca antes havia testemunhado uma cena daquelas. É como se o piloto tivesse saltado de pára-quedas, abandonando o avião com os tripulantes. É como o dono de um barco, que te deixa no alto mar e te manda continuar a viagem nadando até na outra margem. A ofendida deixa transparecer um mal-estar, no lugar de acompanhar atentamente o que o tribunal está a tratar. Ela começa a mexer o telemóvel, quase que lhe caem lágrimas. A oficial de justiça a interpela, afinal de contas ninguém pode estar ao telemóvel. Ela guarda o telemóvel na pasta, que é recolhida pela oficial de justiça para cima dos processos amontoados do seu lado esquerdo. Para as alegações finais, a juíza passa a palavra ao advogado da ofendida. Em apenas duas páginas, o advogado pede a condenação do réu, por entender que o mesmo ofendeu gravemente a honra, o bom nome, a reputação, a integridade moral e a consideração social da ofendida. É o que se provou neste tribunal, diz o advogado. “Ele trouxe seus amigos aqui neste tribunal para se fazerem passar por testemunhas ou declarantes e falarem a seu favor, mas nada do que foi dito altera a gravidade do crime cometido com a publicação da caricatura”, diz o advogado da ofendida, cujas palavras parcas e vazias deixam transparecer o seu mal-estar perante o abandono da acusação que acabara de ser exercido pelo Ministério Público. É como se nunca o advogado e a ofendida haviam se sentido tão sozinhos, quão triste deverá ser o estado de solidão. É assim que chega a vez do advogado de defesa se pronunciar, sendo a palavra lhe atribuída pela juíza. João Carlos Trindade não tem tempo a perder com salamaleques. É como se não fosse um homem dos tribunais, dado que fala as coisas assim terra a terra, como sói dizer. Começa antes de mais apresentando uma questão prévia. “O réu Matias Guente responde somente pela acusação deduzida pelo Ministério Público, uma vez que a acusação particular não é contra ele pronunciada, mas contra do Director do jornal Canal de Moçambique (solidariamente com o autor da caricatura, a que se faz referência nos autos, de pseudónimo AJM). Ora, o réu não é Director do Canal de Moçambique, nem é o autor da referida caricatura”, esclarece João Carlos Trindade. E prossegue: “E, como o Director do jornal e o autor da caricatura não foram ouvidos, a acusação deve considerar-se nula, por insuficiência do corpo de delito, nos termos da lei”. Não obstante, devemos nos ater aos factos. “O réu Matias Guente não nega nenhum dos factos sobre os quais assenta a acusação do Ministério Público e que foram amplamente debatidos na audiência de julgamento: é verdade que na sua qualidade de Editor Executivo do Canal de Moçambique autorizou a publicação da caricatura em que aparecem retratados a assistente e o ex-Governador do Banco de Moçambique e também os editoriais das edições de 23 e 30 de Novembro de 2016, bem como a chamada de capa desta mesma edição, com o título CONHEÇA COMO E QUEM COMEU O DINHEIRO DO NOSSO BANCO”. A questão a que este tribunal deve se ater, segundo Trindade, é sobre qual a relevância jurídica desses factos. “Por tudo quanto foi exaustivamente explicado na sessão anterior desta audiência de julgamento pelas testemunhas qualificadas que aqui trouxemos, e pela doutrina e jurisprudência nacional e internacional que tivemos a oportunidade de apresentar na CONTESTAÇÃO, a vossa conclusão Meretíssima Juíza de Direito e distintos juízes eleitos, só pode ser uma: a relevância jurídico-criminal daqueles factos é NENHUMA”. Prossegue o advogado esclarecendo que a acusação não conseguiu provar um dos elementos constitutivos dos crimes de DIFAMAÇÃO e INJÚRIA, que é o seu elemento SUBJECTIVO: a intenção de ofender, o chamado animus difamandi vel injuriandi. “Com todo o respeito, foi penoso vermos aqui a interpretação subjectiva e fantasiosa de que O RÉU QUIS OFENDER A ASSISTENTE POR SER MULHER e, com isso, pôs em risco a sua estabilidade familiar e a sua relação conjugal. Só mesmo na imaginação da assistente se pode extrair essa conclusão. A defesa gostaria de deixar claro e expressamente sublinhado nesta audiência que O RÉU MATIAS GUENTE E O JORNAL CANAL DE MOÇAMBIQUE SE CONGRATULAM PELO FACTO DE A ASSISETENTE SER MULHER E TER ATINGIDO UM CARGO DE GRANDE RESPONSABILIDADE NO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BANCO DE MOÇAMBIQUE, O BANCO CENTRAL DO NOSSO PAÍS. Mas, como não podia ser de outra forma, essa condição (SER MULHER) não isenta a assistente da crítica e da reprovação social pelo seu desempenho no alto cargo que exerce, quando esse desempenho é considerado negligente ou irresponsável. É para isso que serve o ESCRUTÍNIO PÚBLICO a que os órgãos de informação sérios e preocupados com a defesa do bem comum são chamados a exercer. E não interessa se a assistente já não tinha a seu cargo, por altura dos factos, o departamento de supervisão bancária. A verdade é que a própria reconheceu no julgamento que fora responsável por esse departamento até Julho de 2014 e que, na qualidade de membro do Conselho de Administração do Banco de Moçambique, convocara, dias antes da publicação da caricatura e dos editoriais em causa, uma conferência de imprensa para falar da falência do NOSSO BANCO e ‘tranquilizar’ o público acerca da ‘boa saúde’ do sistema financeiro”. Mais adiante, o advogado João Trindade vai discutir afinal de contas qual teria sido a intenção do jornal de que o réu é responsável editorial ao publicar a matéria agora em discussão. “Longe de ter sido a de atingir a ofendida Joana Matsombe ou qualquer outra pessoa na sua honra e consideração, foi a de DENUNCIAR A INOPERÂNCIA DO SISTEMA DE SUPERVISÃO BANCÁRIA, que à administração do Banco de Moçambique competia exercer e que, por ter sido negligenciada, provocou enormes prejuízos aos accionistas do NOSSO BANCO (incluindo o próprio Estado, que é accionista através do INSS e da EDM) e aos depositantes anónimos daquela instituição falida. Foi para dar voz à indignação dessas pessoas e dos cidadãos em geral que o Canal de Moçambique publicou a matéria em causa, fazendo uso dos géneros e das técnicas jornalísticas que estão ao seu alcance. O jornal exerceu, deste modo, a LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DE OPINIÃO E DE PENSAMENTO que a CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA consagra no seu artigo 48 e que vem também protegida em outros instrumentos internacionais de Direitos Humanos ratificados e postos em vigor na ordem jurídica interna (referimos, a titulo de exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos)”. E, por assim entender, segundo as palavras de Trindade, “estamos certos que Vossas Excelências, senhores juízes, não deixarão de se inspirar na jurisprudência deste mesmo tribunal (neste caso, na 4ª Secção), em processo da mesma natureza, e cujo extracto passo a ler: ‘A liberdade de expressão, para a sobrevivência da democracia, deve ser mais ampla do que a protecção da imagem, honra e consideração devidas a um órgão de soberania ou qualquer outro, incluindo titulares dos próprios Tribunais que têm o poder de decidir sobre os excessos no exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais. A nocividade penal deve resultar de uma análise objectiva, porque contextualizada, e não puramente em função do sentimento pessoal, significando isto que, podendo certas palavras, expressões ou dizeres serem ofensivas sob ponto de vista subjectivo, nem por isso se tornam automaticamente nocivas do ponto de vista penal. O direito penal, numa democracia, não pode preocupar-se com meras impertinências ou grosserias, principalmente quando resultam do debate democrático de ideias, sob pena de os tribunais emperrarem a máquina democrática e dissuadirem os críticos de levarem a cabo a sua missão, críticos que são capital imprescindível numa sociedade democrática (a chamada massa crítica)”. Em homenagem à liberdade de expressão e de pensamento, tão arduamente conquistada, segundo João Carlos Trindade, o veredicto do tribunal só pode ser um: “A ABSOLVIÇÃO DO RÉU MATIAS GUENTE E (À CAUTELA) DO JORNAL CANAL DE MOÇAMBIQUE. E por tudo isto, e por ser também essa a posição acabada de sufragar pelo Digno Magistrado do Ministério Público (cuja clarividência saudamos e aplaudimos), a defesa confia em que o Meretíssimo Tribunal fará a acostumada JUSTIÇA”. Nesse momento, nada mais resta a juíza senão passar a palavra ao réu, a fim de em jeito de alegações finais dizer as suas últimas palavras. O janota de fato italiano não tem papas na língua e tudo indica que vai mandar a administradora do Banco de Moçambique plantar batatas, como sói dizer. “O que o meu jornal fez, ao publicar os textos que publicou e a caricatura da senhora administradora e do ex-Governador do Banco de Moçambique numa grande farra de fato de banho na piscina e com bebidas alcoólicas a mistura não foi nada mais nada menos que denunciar aqueles que teriam estado por detrás da falência do NOSSO BANCO, nomeadamente aqueles que não efectuaram a supervisão bancária, o que colocou em crise todo o sistema financeiro. É essa a tarefa do nosso jornal, que é exactamente informar aos nossos mais de 3500 leitores, ao povo, aos cidadãos e contribuintes do Estado em geral a forma como é feita a gestão dos nossos impostos. É essa a frontalidade que nos caracteriza, pelo que aproveitamos para reiterar neste tribunal que continuaremos a primar um um jornalismo responsável e mordaz, sobretudo quando se trata de transgressões na gestão financeira do Estado levadas a cabo por titulares de altos cargos do Estado. Não estamos dispostos a recuar nessa nossa missão, ao serviço do povo”. Matias Guente não precisou dizer mais nada, agradeceu pela oportunidade e voltou a sentar naquele banquinho feio, sem conforto nenhum e que faz doer o rabo, a espinha e a coluna vertebral, mas também a alma e o espírito. A juíza, que termina a sessão de hoje, é uma moça bonita e parece-me ser inteligente também. Hoje consegui prestar atenção nesse detalhe. Mas não podemos deixar que a beleza da juíza nos faça perder de vista o objecto da causa. Tudo pode acontecer até a data da leitura da sentença, tal como nunca ninguém esperou que o Ministério Público de repente retirasse a acusação e pedisse a absolvição do réu, como Pilatos que lavou as mãos e entregou Jesus Cristo à mercê das multidões. Estamos atentos. A sentença será lida no dia 29 de Agosto. E a Luta Continua!
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