segunda-feira, 23 de julho de 2018

Chacina da Candelária foi há 25 anos. O que mudou?

Adilson Dias, hoje com 38 anos, viveu nas ruas da Candelária
Saiba a situação de sobreviventes, testemunha e acusados por crime ocorrido a 23 de julho de 1993, onde morreram oito crianças e jovens.
O sol estava a pino quando um menino de cerca de 8 anos soltou da mão do pai e correu para olhar dentro da enorme fonte, no centro da praça. Apoiou as mãos na beirada de pedra e colocou a cabeça para dentro, perguntando por que estava vazia.
Vinte e cinco anos antes, o chafariz que jorrava água no centro da fonte era o parque de diversões de outras 70 crianças que viviam naquela região, em volta da Igreja da Candelária, no centro do Rio. A maioria delas não está mais aqui para contar essa história.
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25 anos após chacina da Candelária, proteção a criança tem falência no RJ

Saiba a situação de sobreviventes, testemunha e acusados por crime

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    Júlia Barbon
    RIO DE JANEIRO
    ​O sol estava a pino quando um menino de cerca de 8 anos soltou da mão do pai e correu para olhar dentro da enorme fonte, no centro da praça. Apoiou as mãos na beirada de pedra e colocou a cabeça para dentro, perguntando por que estava vazia.
    Vinte e cinco anos antes, o chafariz que jorrava água no centro da fonte era o parque de diversões de outras 70 crianças que viviam naquela região, em volta da Igreja da Candelária, no centro do Rio. A maioria delas não está mais aqui para contar essa história.

    Esse foi o local de uma das chacinas mais impactantes da história do país, que deixou oito crianças e jovens moradores de rua mortos em 23 de julho de 1993. Em frente à Candelária, hoje, sobraram corpos vermelhos pintados na calçada de pedras portuguesas desgastadas e uma cruz que não tem mais os nomes das vítimas.
    Se o entorno da Candelária mudou, a falta de assistência a crianças na cidade não é tão diferente do que era na época da chacina que associou o nome do local à morte de crianças e adolescentes.

    “Esses dias eu contei, só entre Flamengo e Botafogo [bairros vizinhos da zona sul], mais ou menos 150 crianças nas ruas entre 10 e 16 anos de idade”, diz Yvonne Bezerra de Mello, 71, que dava aulas aos meninos de rua e foi a primeira a ver os corpos naquele dia.

    Yvonne montou o instituto Uerê e dá aulas no complexo de favelas da Maré, na zona norte do Rio. O objetivo é evitar que outras crianças cheguem a esse ponto de tamanha vulnerabilidade. “Tem toda uma rede de proteção que não funciona. Não funcionava 25 anos atrás, não funciona agora”, afirma.

    Alguns dos principais indicadores da falência do poder público em proteger as crianças são a taxa de jovens fora da escola —que era de 12% no estado do RJ em 2015, ou seja, 130 mil adolescentes de 15 a 17— e o alto número de menores apreendidos: 8.480 em 2017, quase um por hora.

    A Prefeitura do Rio não informou o número de crianças e adolescentes em situação de rua na cidade atualmente, alegando que está fazendo um novo levantamento com metodologia diferente. O último censo apontava que a população total havia quase triplicado: de 5.580 em 2013 para 14 mil no final de  2016, sem distinção de idade.

    Dados do IBGE também mostram que 31% das crianças na cidade do Rio eram vulneráveis à pobreza em 2010.

    SALVOS PELA ARTE E PELO LIXO

    Adilson Dias, que viveu na Candelária um ano antes da chacina, quando tinha 11 anos, acha que hoje em dia há menos crianças nas ruas, mas não por um bom motivo. “Muitas são pegas pelo tráfico, porque quando é menor de idade não vai preso”, diz.

    Aos 38 anos, Adilson virou diretor de teatro e artista, graças a pessoas que lhe deram oportunidades pelo caminho. “A arte me salvou. Em lugar onde não tem lazer e cultura, a violência e a droga viram o entretenimento”, afirma.

    A educação também foi a saída para Claudete Costa, 38, catadora de reciclável há 28. Foi um curso sobre liderança jovem que a fez tomar a decisão de sair das ruas no centro do Rio. “Na noite da chacina eu fui salva pelo lixo”, conta.
    Então com 12 anos, ela dormia na rua com a mãe e costumava brincar com os meninos da Candelária no chafariz e debaixo da marquise, onde seis deles foram assassinados por policiais militares de folga. “Mas naquele dia minha mãe me botou para catar papel, e tinham dois carrinhos, era muito lixo.”

    Hoje, Claudete estuda e chefia uma cooperativa de reciclagem para que seus dois filhos não passem pelos mesmos sofrimentos.

    Cristina Leonardo, que fazia um trabalho voluntário de prevenção de doenças com jovens da Candelária, critica o fato de sobreviventes não terem sido acolhidos. “Era uma grande oportunidade de concentrar as crianças e dar um jeito, mas não fizeram nada.”
    Após a chacina, os meninos foram levados a um abrigo improvisado por alguns dias. Depois, alguns foram para a chamada Casa da Testemunha (fechada em 1997), mas a maioria foi para três barracos de um conhecido da professora Yvonne. Até ela montar uma escola debaixo de um viaduto no centro, sem paredes, por quatro anos.

    Praticamente todos os que sobreviveram já se foram, segundo Cristina e Yvonne. A educadora calculou que, só durante os dez anos seguintes ao massacre, 39 dos 72 do grupo haviam morrido por causas violentas.

    Cristina, que trabalha há mais de 20 anos com projetos sociais e agora presta consultoria, avalia que avançaram as leis de proteção à criança, mas as ferramentas não funcionam. “Antes era menino de rua, agora as crianças estão nas comunidades.”
    Renata Neder, coordenadora de pesquisa da Anistia Internacional (ONG que na época ajudou a proteger o único baleado sobrevivente da chacina), ressalta que as vítimas de homicídio no país são cada vez mais jovens. “E tem a questão: quantas escolas ficam sem aula por causa de operações policiais violentas que resultam em horas de tiroteio?”, pergunta. 
    Foram precisamente 381 unidades no Rio no ano letivo de 2017 —25% da rede municipal— que fecharam ao menos um dia devido a confrontos, afetando 129 mil crianças.
     

    A CHACINA DA CANDELÁRIA 25 ANOS DEPOIS

    Sobreviventes
    A grande maioria já morreu, parte vítima de violência. Em 2000, por exemplo, Elizabeth Maia foi assassinada aos 23 anos em frente a sua casa, e Sandro do Nascimento foi morto por policiais após tentar assaltar o ônibus 174. Mais recentemente, Thiago morreu de bala perdida no complexo da Maré.
    Testemunha-chave
    único que foi baleado e sobreviveu foi Wagner dos Santos, 45, que se tornou a principal testemunha. Ele tomou quatro tiros na chacina e, um ano depois, mais quatro em um atentado na Central do Brasil. Logo depois foi morar na Suíça, onde se casou com uma brasileira no ano passado, mas não pode ter filhos. Sua história influenciou na criação do Programa de Proteção a Testemunhas.
    Indenizações
    Apesar das consequências que sofreu —como perda parcial de visão, audição e paralisia no rosto—, Wagner perdeu uma ação de indenização contra o estado do RJ. Ele teve uma operação paga pelo governo e hoje recebe dois salários mínimos mensais, até os 65 anos. Segundo sua irmã, Patrícia Oliveira, uma nova proposta está na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ela, que faz parte do movimento Candelária Nunca Mais, diz que outras pessoas também receberam os dois salários, mas não sabe precisar se alguém ainda os recebe.
    Justiça
    Sete homens chegaram a ser acusados pela chacina. Três foram absolvidos e quatro, todos policiais, foram condenados. Eles cumpriram a pena e já saíram da prisão. Um, porém, é considerado foragido após ter tido seu indulto suspenso pelo STJ em 2013. O coronel da reserva Walmir Brum, equivalente ao corregedor da PM na época, reconhece que o grupo de extermínio deveria ter até oito pessoas, mas que não conseguiram identificar todos.
    Movimentos sociais
    Com três grandes chacinas de grande repercussão cometidas por policiais —Acari (1990), Candelária e Vigário Geral (1993)—, a década de 1990 é considerada um divisor de águas nos direitos humanos. “Elas provocaram uma reação da sociedade, com muitas pesquisas, movimentos de familiares, organizações denunciando as violações de direitos humanos. Era o início do processo de democratização”, diz Renata Neder, da Anistia Internacional.

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