Monday, March 6, 2017

A Inspecção

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XIPIKIRI

– Epa! – assustou-se a barata. Deu um salto desgovernado. Quase abortou o ovo que lhe pesava o ventre. As outras baratas, lá do confim escuro do universo das baratas, sobressaltaram-se e ficaram alerta, com as perninhas tensas, prontas para a fuga.
– É o quê? – perguntou uma baratinha, espreitando, com a imprudência da idade, para fora do esconderijo.
– Cuidado! Esconde-te!
– É a fumigação? – perguntaram as outras, em quase pânico, lá do fundo.
– Não... – respondeu com gestos desesperados, voltou a espiar e, acto contínuo, olhou para as outras, com o rosto maquilhado de terror.
Estava no parapeito duma fresta, entrada para onde ficam as baratas, entre a luz e o escuro, com as antenas descontraídas, quando os viu chegarem: uns fulanos em poses institucionais atiçaram os curiosos, pasmaram os clientes, inquietaram os serventes e surpreenderam o gerente. Na porta da viatura em que vinham, um logotipo dramático e uma escrita que não se engole a seco: INAE - Inspecção Nacional das Actividades Económicas.
– É... a inspenção! – gaguejou, na língua indecifrável dos ortópteros.
Pânico. Entre as baratas há um um provérbio que diz: depois da inspecção, vem a fumigação. Andaram às voltas, aos gritos, às rezas, agitando as asas, as patas, as antenas, como num filme de baratas tontas.
– Calma! – disse a mais velha, fingindo serenidade –, temos de nos preparar. Vamos esconder-nos. Se não virem baratas não chamam a fumigação. Vamos avisar às outras.
Referia-se às da cozinha. Elas eram as da sala, privilegiadas, comiam migalhas frescas. Escolheu-se alguns mensageiros, entre as mais pequenas, pela agilidade e porque pelo tamanho, passariam despercebidas.
– E por que não vão as voadoras, mais rápidas.
– Não. Dariam nas vistas.
Com o pânico, a barata grávida entrou em trabalho de parto, depositou seu ovo num canto seguro, rogando a Deus para que as centenas de filhos, sob a membrana do ovo, estivessem protegidos e sobrevivessem à fumigação. As baratas mensageiras fizeram-se à missão impossível, circulando pela sala, entre as mesas, pelos cantos, pelas sombras, em poses dos melhores filmes de acção. Paravam, espreitavam, corriam, comunicando entre si, com sinais gestuais. No fundo mais escuro do esconderijo havia uma barata velha, descontente, que vivia pelos cantos, distante das outras. Levou a pata ao queixo, pensativa, como se as baratas tivessem barbas para acariciar: se voasse e conseguisse chegar à cozinha, à maioria das baratas, dizê-las que as da sala chamaram a fumigação para as matar, convencê-las-ia a lutarem para se salvarem, sob sua liderança. Não hesitou. Endireitou as abas do casaco das asas, içou-as como asas deltas, acelerou as perninhas e fez aquele vôo trôpego de barata, batendo nas paredes, nos móveis, nas pessoas.
– Baraaata!
Entre gritos, espanto e pavor abortou-se a missão. Em pânico, algumas mensageiras deram nas vistas e foram pisadas. A voadora escapuliu-se até a cozinha. Sabe-se que conquistou a liderança por lá, por ter conseguido reunir muitas baratas, orientando-as a refugiarem-se nos confins dos fogões e dos armários, escapando à fumigação. Nunca mais foi vista pela sala, entre as mesas, nas entranhas do balcão ou das geleiras. Diz-se que está em parte incerta e, até hoje, as da cozinha não se dão com as outras.

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