REPORTAGEM
Não têm espaço e por isso estão a oferecer uma biblioteca
Joaquim Sousa Pereira já não lê os 50 mil livros que juntou, mas o prédio foi vendido e a família tem de tirar todas as histórias do apartamento. Os que não conseguiram resgatar estão a oferecer.
Era uma vez uma casa onde há quase 15 anos só moram livros. Os primeiros volumes chegaram da Rua da Alegria, no Porto, em sete camiões de mudanças cheios até cima. No início, foram espalhados por prateleiras categoricamente separadas por temas. A religião na sala. O fascínio por ovnilogia e ocultismo na cozinha. Mas depois “foi o caos”. Começaram a chegar mais e mais livros, pelo menos um por dia, alimentando as montanhas que se iam formando em cada divisão e de repente, a casa ficou soterrada debaixo de uma verdadeira avalanche de papel. Eram mais de 50 mil volumes.
Eugénia Sousa Pereira já não visitava a casa há anos. Há três semanas subiu até ao segundo andar para mostrar a colecção do pai a uma alfarrabista e quando tentou entrar viu que tinham mudado a fechadura. Ligou ao senhorio e descobriu que o prédio fora vendido a uma sociedade e os livros que antes habitavam uma residência alugada agora têm de sair. Quem os ia lá folhear todos os dias, hoje com 89 anos, já não gosta de ler.
Os advogados deram à família 15 dias para esvaziar a casa antes que a biblioteca de Joaquim Sousa Pereira fosse reduzida a pó. As filhas conseguiram alargar o prazo para um mês, mas a data-limite aproxima-se a passos largos e lá dentro, por onde quer que se passe ainda se tropeça em livros. Agora, a família só quer arranjar outras casas para estas milhares de histórias viverem felizes para sempre.
A primeira pessoa a poder levar livros foi Cláudia Ribeiro, 43 anos, alfarrabista de profissão e amiga do dono da colecção há mais de 20 anos. Quando viu a biblioteca comentou com Eugénia, uma das filhas do coleccionador, que “não havia assim tantos livros repetidos quanto inicialmente pensava”. Na altura estimou que seria preciso mais de meio ano para uma pessoa sozinha inventariar todos os volumes.
Enquanto vagueava pela biblioteca, por acaso, virou a capa de dois que no meio de tantos outros lhe suscitaram interesse. Na primeira página leu duas dedicatórias que lhe eram dirigidas, escritas depois de Joaquim chegar a casa com os livros. A partir daí teve a certeza que aquela biblioteca tinha de lhe ir “parar às mãos”.
Arranjou tempo para ficar uma semana e meia só a esmiuçar a biblioteca e saiu de lá com 60 sacos de compras, “dos rectangulares com alças fortes”, carregados de livros, muitos deles que já lhe tinham sido vendidos por ela.
Desde que deixou de trabalhar aos 55 anos que Joaquim fazia todos os dias o mesmo percurso entre a casa onde morava e a casa que alugou para os livros morarem. Subia a Rua da Torrinha, virava para Cedofeita continuava para a Rua do Almada e pelo caminho entrava várias vezes ao dia na Zarco, na Lumiére, na Académica, na Varadero e em tantas outras livrarias do Porto que foram surgindo e desaparecendo com o tempo. “Um dia que ele não comprasse livros não era um dia feliz para ele”, diz a alfarrabista sobre uma das “pessoas mais singulares” que já conheceu.
Joaquim passava tanto tempo na Lumiére que, no mundo dos livros dominado por homens, era frequente ter clientes que quando entravam se dirigiam de imediato ao “carismático e distinto senhor de óculos”, por pensarem que era ele o dono da livraria.
“O Senhor Sousa Pereira”, como Cláudia lhe chamava, não comprava livros caros. E mesmo quando levava romances de 15 euros “mentia no preço para a mulher não se chatear”, conta a alfarrabista. Pelo meio das páginas encontrou várias indicações de datas falsas e preços adulterados com recados para a família onde se lia que aquele livro tinha sido oferecido. Dizia sempre que “já tinha o livro há anos, mas não tinha nada”, garante a amiga.
Eugénia conta que dias depois de Cláudia sair “encantada” com a colecção apareceu um feirante que ao olhar à volta disse baixinho: “tenho a certeza que ele não leu nem 10% disto”. Pela biblioteca completa oferecia 100 euros. A resposta da filha foi pronta. Por esse valor preferia “dar os livros a quem os aprecie”.
Depois dele vieram outros alfarrabistas que também “não mostraram interesse pela colecção”, lamenta. Ou por não ter primeiras edições e achados raros ou por grande parte não estar escrita em português, os livreiros não desciam as escadas entusiasmados pelo valor da colecção.
É por isso que começaram a dar os livros. Quem primeiro fez a sugestão foi a neta, Sara Silva, que não queria ver as escolhas do avô deitadas fora. Em casa também não têm espaço para acolher todos os livros e Sara decidiu escrever uma publicação no Facebook a dizer que “o escritório do avô” estava aberto. Uma fotografia de uma das estantes repleta de livros chegou para convencer amigos, conhecidos e amigos de amigos que saíram de lá com “pequenos tesouros”. Nesse dia “até o Valter Hugo Mãe saiu daqui com mais de 50 livros”, conta. Para já, a família quer tentar alargar o prazo que o administrador do prédio deu para retirarem os livros e não quer abrir as portas a pessoas totalmente desconhecidas. Esse passo será dado só em último caso.
Susana Vieira, uma advogada apaixonada por livros de história, também visitou a “casa de papel” depois de ter visto a publicação na rede social. O pequeno saco que trouxe inicialmente não foi suficiente e desde esse dia já voltou três vezes. Perde o seu tempo a ler cada uma das lombadas, porque, diz “é um atentado aos livros se não arranjarem uma casa e forem reduzidos a pó”.
Os visitantes, que são mais nos últimos dias do que alguma vez foram durante quase década e meia, andam por cima de um tapete formado por páginas rasgadas. A primeira vez que Eugénia Sousa Pereira entrou no apartamento tentou limpar o chão. Desistiu rapidamente.
A casa só é o caos para quem não a montou. Joaquim Sousa Pereira nunca teve água nem electricidade naquele apartamento. As horas que lá passava todos os dias, a pegar e a deixar livros, tinham todas a companhia da luz do sol. De mobília apenas se avistam uma mesa, muitas estantes e uma cadeira alta. Era aí que pintava, junto a uma janela que vai quase até ao tecto, num dos cantos da sala. Descobriu essa paixão mais tarde na vida, mas ainda assim deixou muitos quadros pendurados pelas paredes. Foram das primeiras coisas que a família guardou, juntamente com uma colecção completa de Eça de Queiroz.
“Acho que leu quase todos os clássicos”, diz Eugénia que relembra longas conversas, algumas impostas, sobre Rousseau, Alexandre Dumas, Stefan Zweig. Muitos destes já estão nas prateleiras de casa da família, mas há muitos mais romances, livros de arte, filosofia política, história, ocultismo, ovnilogia, dicionários, enciclopédias e gramáticas que não conseguem resgatar. Sara acha que o avô leu quase todos, a maior parte está sublinhada e com comentários e traduções em várias línguas escritas nos cantos das páginas, outros têm guardanapos de vários cafés da cidade a servir de marcador.
Joaquim dizia que começou a trabalhar “de calção”. Aos 14 anos fazia uns recados, depois trabalhou muitos anos como correspondente de línguas na antiga Fábrica de Conservas Brandão Gomes e uns anos depois começou “uma sociedade de papeis auto-adesivos e máquinas para cortar papel com o irmão, a Representações Sousa Pereira”, enumera a filha. Quando a parceria acabou, começou a trabalhar por conta própria com Espanha e Inglaterra através de um fax que tinha em casa.
Quando moravam nessa casa inicial, numa rua a quem um poeta e filósofo português deu o nome, a família já tinha “uma colecção enorme”. Mudaram-se em 1983 para a Rua da Torrinha e foi nessa altura que Joaquim arranjou o primeiro escritório para guardar os livros, na Rua da Alegria. Já aí “a biblioteca era um caos”, lembra-se a filha.
O apartamento que deixa toda a gente “encantada”, a ela faz-lhe “uma imensa confusão”. Há um ano e meio que a demência do pai se tem vindo a agravar e desde aí que Joaquim entrava cada vez menos vezes no mundo de livros que só ele conhecia. O último livro que leu chamava-se A Vida Depois da Morte. Antes “começou a ler livros sobre como exercitar a memória”, até que mais recentemente, conta Eugénia, quando lhe perguntaram se não queria um livro, a resposta apanhou todos de surpresa: “Não, cheio de livros estou eu”.
Sousa Pereira não sabe que os seus livros estão a ser dados. A família achou que “não era bom para ele saber” e acredita estar a “seguir a sua vontade” ao tomar esta decisão, explica a neta, Sara. A primeira vez que entrou “no mundo do avô” foi em 2009 e diz que, desde aí, “a colecção cresceu muito”.
“Encontro um certo critério nas compras dele, não era só compulsivo”, alerta, “embora isto seja uma acumulação, há uma linha de pensamento”, diz a neta.
Eugénia diz que o pai era “movido pela curiosidade” e para explicar que para ele não existiam temas proibidos, conta muitas vezes a mesma história. Um dia, antes do 25 de Abril, Joaquim Sousa Pereira ia no eléctrico para Matosinhos e apercebeu-se que a PIDE, ao ouvir falar nos seus livros, o andava a perseguir. Fingiu-se despercebido e combinou um encontro com a polícia política portuguesa que quando visitou a biblioteca, não encontrou um único livro pró-comunismo ou contra o Estado Novo. Horas antes, Joaquim tinha-os escondido a todos no galinheiro. Nunca mais o perseguiram.
Texto editado por Ana Fernandes
NOTA: Vários leitores têm-nos contactado para facultarmos a morada da família. Por enquanto, a família está apenas a dar o endereço a amigos ou amigos de amigos. Quando o pudermos divulgar, sem dúvida que o faremos.
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