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Tuesday, March 28, 2017
Chegou a hora de enterrar Lenine?
Chegou a hora de enterrar Lenine?
Há mais de 90 anos que o corpo embalsamado do fundador da União Soviética está exposto num mausoléu na Praça Vermelha. A maioria dos russos quer que seja enterrado. Putin pode olhar para o ano do centenário da revolução como a oportunidade ideal para sepultar o último símbolo da era comunista.
O debate é recorrente na Rússia, mas o resultado é invariavelmente o mesmo: mais de 90 anos após a sua morte, o corpo embalsamado de Lenine continua exposto no mausoléu da Praça Vermelha, em Moscovo, mesmo ao lado do muro do Kremlin. No ano em que é assinalado o centenário da Revolução de Outubro, a discussão em torno do destino a dar ao corpo do fundador da União Soviética regressa. E assim regressa um espectro que os governantes russos preferiam ver enterrado.
Sempre que se aproxima uma efeméride que remeta para a História da União Soviética, é frequente voltar a levantar-se a possibilidade de o corpo de Lenine ser retirado da Praça Vermelha e enterrado num cemitério. Desta vez foi a Igreja Ortodoxa Russa Fora da Rússia que aproveitou o ano do centenário da revolução bolchevique de 1917 para fazer o pedido. “A libertação da Praça Vermelha dos restos do principal aterrorizador e repressor do século XX, bem como a destruição de todos os monumentos a ele dedicados, pode tornar-se num dos símbolos da reconciliação do povo russo com Deus”, escreveu a organização religiosa, num comunicado divulgado na semana passada.
O pedido tinha sido lido durante as missas em todas as paróquias desta igreja, segundo a cadeia de televisão Russia Today. Não é de estranhar que a solicitação venha desta igreja, que foi fundada no estrangeiro precisamente na sequência da revolução de 1917 por padres que escaparam à repressão religiosa desencadeada pelos bolcheviques. Só em 2007 é que a Igreja Ortodoxa Russa Fora da Rússia reatou relações com a Igreja Ortodoxa Russa.
A discussão em torno da melhor forma para assinalar o centenário da Revolução de Outubro tem dominado grande parte da imprensa independente russa. Uma das formas de enquadrar um aniversário considerado incómodo para o Kremlin seria apresentá-lo como uma oportunidade de “reconciliação” com o passado, algo a que o comunicado da Igreja Ortodoxa alude, mostrando-se disponível para apoiar esse esforço. Mas, para isso, é preciso que o homem que liderou a revolução que deu origem à União Soviética abandone o posto quase sagrado que ocupa actualmente.
Para o Presidente, Vladimir Putin, escolher este ano para tirar Lenine da Praça Vermelha após um pedido da igreja pode ser uma oportunidade para arrumar de vez com o assunto com o qual periodicamente se vai deparando.
Foi no final dos anos 1980, durante o período reformista da Perestroika, que o debate em torno da saída do corpo de Lenine do mausoléu na Praça Vermelha se tornou público. O colapso da União Soviética, e o consequente descrédito do Partido Comunista, vieram intensificar a discussão. O primeiro autarca de Moscovo pós-URSS, Gavriil Popov, era um dos mais ardentes defensores do fim do mausoléu, assim como o primeiro líder da Federação Russa, Boris Ieltsin.
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O corpo embalsamado de Lenine, numa foto de 1987 SERGEI KARPUKHIN/REUTERS
Porém, ao contrário de Estaline, que se tornou o rosto da violência do regime soviético reconhecido pelo próprio Partido Comunista, Lenine manteve o seu apelo junto de parte da sociedade russa. O historiador da Universidade de Amesterdão, Marc Jansen, refere ao PÚBLICO, por email, uma sondagem que indica que 44% dos russos têm uma imagem positiva de Lenine. “Putin provavelmente não quer perder [o apoio] dessas pessoas”, acrescenta.
O ministro da Cultura, Vladimir Medinski, é um dos defensores da saída de Lenine da Praça Vermelha. “Talvez muitas coisas na nossa vida mudassem de forma simbólica para melhor depois disso”, afirmou em 2012, pouco tempo depois da sua entrada no Governo. A maioria dos russos parece concordar. Uma sondagem de 2013 mostrava que mais de 60% apoiava a ideia de o enterrar num local apropriado.
Porém, o mausoléu da Praça Vermelha continua a atrair visitantes russos e estrangeiros que diariamente esperam em longas filas para ver o corpo embalsamado de Lenine. No ano passado, o Governo russo revelou que os gastos com a preservação do corpo ascenderam a 13 milhões de rublos (183 mil euros).
Putin nunca deu, no entanto, qualquer indicação de apoiar a saída do corpo de Lenine da Praça Vermelha, tendo sempre rejeitado essa ideia. Jansen diz que o Presidente russo receia a reacção dos sectores que ainda mantêm um saudosismo pela época soviética, e por Lenine, “os quais não poderá usar se quiser ser reeleito no próximo ano por uma maioria esmagadora”.
Medo de revolucionários
Desde que chegou ao poder, em 2000, Putin tem sido bastante selectivo no resgate que faz de certos acontecimentos históricos para incutir patriotismo na sociedade russa. Os anos 1990 são hoje vistos como uma época de humilhação em que a Rússia passou de superpotência para um país em crise permanente, dependente da boa vontade dos antigos rivais. Para incutir um renovado orgulho — que foi acompanhado do boom económico alicerçado nas exportações de petróleo e gás natural na primeira década do século XXI — Putin reabilitou alguns ícones do passado soviético, sobretudo a vitória na II Guerra Mundial, que é conhecida pelo nome de “Grande Guerra Patriótica”. Os festejos do Dia da Vitória, a 9 de Maio, ganharam um renovado vigor com Putin no Kremlin.
Ao mesmo tempo, o líder russo nunca escondeu a sua admiração pelo período Imperial, que é a génese ideológica dos sectores nacionalistas que o apoiam. “O herói de Putin é o primeiro-ministro [Piotr] Stolipin, do tempo de Nicolau II, muito mais do que os protagonistas da revolução de 1917”, diz Jansen.
Na sua tentativa de apelar ao conjunto da sociedade, Putin combina o orgulho da vitória sobre a Alemanha nazi com a herança histórica da era dos czares. “Putin espera que, ao casar os passados soviético e imperial, consiga preservar o núcleo do império russo e evitar o destino da monarquia”, escreve o editor da Economist, Arkadi Ostrovski.
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O túmulo de Lenine, na Praça Vermelha ADRIANO MIRANDA/PÚBLICO/ARQUIVO
De fora parece ficar a Revolução Bolchevique, cujo centenário traz um dilema à narrativa nacional do Kremlin. O poder de Putin baseia-se na força da estabilidade, por oposição à instabilidade trazida pelos levantamentos populares. Os biógrafos de Putin dizem que as revoluções nas várias capitais dos ex-estados soviéticos o tornaram avesso a insurreições. A um nível mais pessoal, a visão de uma multidão concentrada à frente da sede do KGB em Dresden, onde Putin estava colocado em 1989, poucas semanas após a queda do Muro de Berlim, terá deixado marcas profundas no futuro líder russo.
“O regime de Putin não aprecia muito de recordar revoluções”, observa Jansen. É conhecido o repúdio do Kremlin em relação às chamadas “revoluções coloridas” nos antigos estados soviéticos, a última das quais na Praça da Independência em Kiev, que levou à queda do Presidente, Viktor Ianukovich, em 2014. Mas essa animosidade estende-se mesmo à insurreição liderada por Lenine contra o governo provisório em Outubro de 1917. Num discurso em Setembro de 2014, Putin descreveu a conduta dos bolcheviques como “uma traição dos interesses nacionais russos” ao terem assinado um acordo de paz com a Alemanha e acusa-no de terem “agitado” o país “até ao ponto de o Estado ter colapsado e declarado a sua própria derrota”.
O centenário da Revolução de Outubro surge numa altura incómoda para o Kremlin. O ideal seria ignorar por completo o centésimo aniversário de uma das primeiras “revoluções coloridas” da História, mas, a um ano das eleições presidenciais, Putin não quer alienar votos que o podem ajudar a construir um resultado substancial.
Mexer no túmulo de Lenine seria uma boa saída? “Nunca se pode ter a certeza”, conclui Marc Jansen. Há algo que parece ser certo: ao retirar o corpo do ex-líder soviético, Putin estaria pelo menos a cumprir aquele que alguns historiadores dizem ter sido o desejo expresso por Lenine ainda em vida — ser enterrado junto da sua mãe, em São Petersburgo.
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