Reflexão: Catarses Pós-Coloniais (Elikia M'Bokolo) – I
De que falamos quando falamos de pós-colonial, sentidos do pós-colonial e do pós-colonialismo?
Quando utilizamos o conceito pós-colonialismo podemos estar a falar de várias coisas: como um conceito operatório em ciências sociais, como uma postura de investigação, em relação à evolução contemporânea do mundo e não só relativo a África, e numa terceira acepção, que não é suficientemente utilizada, mas que é aquela que utilizo - não só enquanto historiador, mas também como alguém aberto às outras ciências sociais - e que pode entender o pós-colonialismo como uma situação.
Estas três acepções – o conceito, a postura de investigação e a situação – não funcionam necessariamente juntas e em sintonia, no sentido em que se pode abordar a situação pós-colonial numa postura pós-colonial; todavia há um grande número de pessoas que abordam a situação pós-colonial a partir de uma posição colonial. Este último ponto pode parecer conter uma contradição nos seus termos, ou seja, quando dizemos que há situações em que se aborda o pós-colonial numa postura colonial. Mas esta situação, um pouco paradoxal, reflecte o modo como num certo número de países, a memória, a memória incontrolada, ou a memória espontânea das pessoas, evoca por vezes a situação colonial como um espaço de comparação.
A análise da situação colonial e pós-colonial numa postura colonial levam-nos a traçar um quadro muito negativo da situação pós-colonial, quando comparada ao que se teria passado durante a situação colonial. A título de exemplo, em muitos países, nos anos setenta do século passado, ouvíamos muita gente interrogar-se sobre quando é que o pós-colonial iria terminar, quando é que a pós-colonização iria terminar para se tornar a ligar à colonização. Também podemos assistir a uma re-invenção do colonialismo em muitos dos países que foram metrópoles colonizadoras e isso também permite uma leitura pós-colonial.
Um exemplo disto e de que se fala muito na imprensa de língua francesa, é a posição da França de hoje a re-inventar o colonialismo, face à África pós-colonial. Desde há cinco ou seis anos, o debate sobre a memória adquiriu uma forte centralidade. Trata-se de um debate político e de um debate de ciências sociais, que consiste em dizer que ao se observar a África hoje, a África pós-colonial, se pode ver a África colonial como um fenómeno globalmente positivo. Desde 2005, uma lei votada no Parlamento francês verbaliza exactamente isso: que a colonização foi algo positivo e pede aos professores para transmitirem aos alunos essa ideia. Existe pois essa leitura concreta sobre o fenómeno nos países antigamente colonizadores e penso que a França não é o único exemplo. Existe, por conseguinte, uma leitura do pós-colonialismo em termos colonialistas. Esta leitura não é apenas uma leitura da África pós-colonial, mas tornou-se também, por ricochete, uma leitura do período colonial.
A noção de situação pós-colonial é construída sobre o modelo de situação colonial, conceito que nasce nos anos 50 do século XX. Trata-se de um conceito que não é de maneira nenhuma inocente, na medida em que se trata do período em que se tomou consciência política de que a colonização estava a terminar. Em todo o caso o conceito de situação colonial via nela algo de situacional, algo que estava a ser ultrapassado e essa passagem poderia durar, mais ou menos, um longo período.
Esta noção de situação colonial suscita muito interesse, porque integra situações específicas no terreno. Não é, por conseguinte, uma abordagem teórica mas uma abordagem prática que integra realidades de terreno e procura também analisar as relações de força entre os actores sociais. Para além disso - e isso poderia ser alvo de uma análise comparativa importante - insiste sobre o carácter importante, e mesmo decisivo, da iniciativa dos actores no terreno e das suas práticas, insistindo menos no ambiente envolvente, nomeadamente nas interferências externas. Se observarmos de perto este conceito de situação colonial, sobretudo para aqueles, como eu, que estudámos a situação colonial no seu término, verificamos que este conceito é muito interessante, mas insuficiente.
Se hoje decidimos construir a noção de situação colonial é preciso que retiremos dela a parte insuficiente. Devemos retirar duas coisas: a primeira, é a de ausência de temporalidade, facto que se nota nas abordagens da situação colonial (inclusivamente de Georges Balandier). Nestas abordagens mais antigas a duração, o tempo estava ausente e a situação colonial era vista como uma situação de algum modo estável, que se poderia prolongar de forma idêntica durante algum tempo. Parece-me que se acrescentarmos a essa noção a ideia de dinâmica, a ideia de fractura, de corte, assim como a ideia de permanência, de avanços e recuos ganharemos bastante, quer em observação dos fenómenos, quer em densidade analítica e, por isso, penso que estes novos contributos nos permitem ter uma noção de situação pós-colonial mais estimulante.
Se aceitarmos esses pressupostos devemos aceitar que a situação pós-colonial é uma situação para a qual há uma saída. De facto, um dos riscos que podemos correr é o de pensar que tudo o que vem depois da colonização é um pós-colonialismo e que, desse ponto de vista, o pós-colonialismo pode durar um longo período. Podemos assim perguntar se a Argentina, por exemplo, por ter sido colonizada, está numa situação pós-colonial ou se a Índia, por ter sido colonizada, está numa situação pós-colonial. Não pretendo abordar essa questão neste momento. Pretendo apenas sublinhar que a situação pós-colonial contém algo de particular que seria a ideia de que se pode sair dela, e, por isso, exige uma abordagem de temporalidade, uma abordagem de historiador.
A particularidade de África é que ela é pós-colonial de duas maneiras diferentes. É pós-colonial porque a África de hoje saiu da colonização imperialista, a colonização do fim do século XIX. Nesta medida pode-se dizer que esta situação pós-colonial é algo de previsível. Se tivermos em conta os clássicos, Hobson, Lenine, Rosa Luxembourg, é claro que o imperialismo para existir não tem necessidade de dominação colonial. O imperialismo pode passar por uma situação de colonização, mas não tem necessidade da dominação colonial. Daí que o capitalismo imperial colonizador seja característico de uma determinada fase da história que poderemos pensar como finita. Por isso, num outro discurso africano, a situação pós-colonial é designada de situação neo-colonial. Esse é um final da situação de colonização; outro final porém antecedeu esta saída colonial. De facto, antes da fase colonial moderna, a África conheceu uma outra fase que não é propriamente uma fase da colonização, mas que preparou a fase da colonização e que, em certos casos, até foi uma fase de colonização. Penso que em países como a África do Sul, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Gana, Costa de Marfim, podemos pensar em algo que não é propriamente a colonização, mas que preparou a colonização: refiro-me ao tráfico de escravos.
São fenómenos que considero importantes porque no debate sobre a pós-colonização em África intervém também o debate sobre o tráfico e a colonização. Podemos assim dizer que a África de hoje contém em si elementos destas duas situações: por um lado, de uma pós-colonização, que é a herança da colonização imperialista; por outro lado, mantém presente nas suas estruturas sociais, nas suas estruturas políticas mas também nas suas identidades, o legado de um passado anterior à colonização e que de certo modo preparou a colonização, ligado à captura, comércio e transporte de escravos. (Cont.)
In “3 Fevereiro de 2006 - Auditório da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra -Transcrição e tradução de Raul Fernandes, estudante de doutoramento do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global. Edição e selecção de Margarida Calafate Ribeiro e Maria Paula Meneses”.
Reflexão: Catarses Pós-Coloniais (Elikia M'Bokolo) – II
Sairemos do pós-colonialismo?
O facto de se saber que é possível sair da situação pós-colonial tem implicações epistemológicas e práticas para as ciências sociais, especialmente no contexto africano. Os teóricos das ciências sociais que construíram as noções como a de «situação colonial» trabalhavam em articulação estreita com as práticas sociais, com as dinâmicas sociais dessa época, isto é, com os movimentos sociais do seu tempo. Podemos dizer que as ciências sociais em África têm uma longa genealogia. Nos anos 50 e 60 do século passado, elas jogaram um papel chave que corresponde a um momento em que os movimentos sociais gozavam de uma considerável dimensão. Foi um momento em que as ciências sociais foram de algum modo obrigadas a ter em conta as exigências científicas dos africanos, ou seja, foram obrigadas a ter em conta as epistemologias africanas. Durante estes anos os sociólogos, os historiadores, os politólogos, em suma, os cientistas sociais africanos tiveram como objecto de análise aquilo que a seus olhos constituíam as primeiras exigências de cientificidade do conhecimento das sociedades africanas. Hoje, por exemplo, se fizermos uma leitura dos textos dos investigadores destes anos 50, damo-nos conta que havia uma espécie de geração de intelectuais que – nomeadamente em 1956, no Congresso em Paris, em 1959, em Roma, em 1962, aquando da Conferência dos Africanistas reunidos em Accra – ouviram as exigências de cientificidade dos investigadores africanos. Do meu ponto de vista, os estudos pós-coloniais para irem adiante, para comportarem essa dimensão, essa carga optimista, através da qual acreditamos que as coisas podem mudar e que, por conseguinte, os investigadores poderão contribuir para as mudanças, têm de ter em conta e de integrar nas suas abordagens a cientificidade e as epistemologias produzidas pelas sociedades africanas.
Se aceitamos a ideia de situação pós-colonial com o seu carácter passageiro, dinâmico e mutável, eu avançaria então uma hipótese: que a situação pós-colonial que vivemos em África contém fases distintas e que podemos identificar algumas características específicas. Em relação às culturas políticas e às práticas de cidadania e dos movimentos sociais parece-me possível distinguir duas fases: uma situação pós-colonial propriamente dita, isto é, uma situação pós-colonial onde as determinações da colonização são muito visíveis. Podemos dizer que é a fase em que se encontra grande parte do continente. Para as ex-colónias portuguesas e para a África Austral em geral, podemos dizer que essa fase do pós-colonialismo nos levaria dos princípios dos anos 70 ao fim dos anos 80. Por que é que eu digo fase de pós-colonização propriamente dita? Porque ela é uma fase na qual as colonizações francesa, inglesa, belga, principalmente, perderam claramente a batalha política, foram claramente obrigadas a recuar, a fazer concessões no campo político. Todavia, penso que estas estruturas coloniais se esforçaram muito para não perder a guerra da dominação colonial, esforçaram-se por manter o que o discurso dos africanos designa por neocolonialismo. Desenvolvem-se assim um conjunto de estratégias: em primeiro lugar, estratégias políticas, a que se seguiram intervenções militares que foram contribuindo para que os poderes considerados nacionalistas, independentes, radicais, fossem eliminados da cena política por apelarem à revolução. São intervenções que se ligam à manutenção de bases militares nos antigos territórios colonizados e à preservação de ligações económicas características de economias de tráfico. Podemos também acrescentar que a estratégia de hegemonia cultural actuou de tal forma que à África francesa sucedeu a África francófona, à África inglesa sucedeu a África anglófona e, mais tarde, à África portuguesa sucedeu a África lusófona. Estamos de facto em plena pós-colonização, porque as neo-colonizações não pretendem recolonizar a África, mas tentam conservar o essencial do que caracteriza o regime colonial.
Do lado das elites políticas africanas damo-nos conta que essa elite pertence, sociologicamente falando, a um meio e mesmo a uma classe que conhecemos bem e que designamos por pequena-burguesia. Essa pequena-burguesia de origem colonial que era designada de “les lettrés” pelos franceses, “educated” pelos ingleses, “evolués” pelos belgas, constituía o centro da elite política. Esta elite tinha a impressão de ter ganho a batalha política, mas nós sentíamo-la embaraçada em relação à continuação a dar à relação de colonização. Sentíamos que algumas destas elites pretendiam continuar a «obra» da colonização. Neste sentido, a descolonização não significava a ruptura com aquilo que a colonização tinha já começado a fazer. Para outros, pelo contrário, seria possível romper com a colonização e construir algo totalmente novo. Assim, para a questão que queríamos esclarecer, ou seja, saber se a pós-colonização é simplesmente o que vem após a colonização ou se se trata de um período específico com um começo e um fim, verificamos que este fim, este objectivo, é a uma questão política essencial.
Lembro-vos que em 1957, Felix Houphouet-Boigny, que era então presidente da câmara de Abidjan e ministro de Estado no governo francês, recebeu em Abidjan, Kwame N´Krumah e proferiram então vários discursos públicos. Nestes discursos, a questão que se levantou foi exactamente o que seria a pós-colonização. Felix Houphouet-Boigny explicou as duas concepções presentes no continente, explicando a Kwame N’Krumah: “Vocês escolheram pôr um termo definitivo à colonização e construir outra sociedade; e nós escolhemos prosseguir aquilo que a França fazia, e será interessante poder ver dentro de quarenta ou cinquenta anos qual de nós terá ganho esta batalha”. Hoje, podemo-nos interrogar sobre qual dos dois ganhou a batalha, considerando qual é a pós-colonização característica da África de hoje. A de Felix Houphouet Boigny ou a de Kwame N’Krumah? Na sequência de uma e de outra se determinam as duas fases a que acima me referi. (Cont.)
In “3 Fevereiro de 2006 - Auditório da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra -Transcrição e tradução de Raul Fernandes, estudante de doutoramento do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global. Edição e selecção de Margarida Calafate Ribeiro e Maria Paula Meneses”.
Reflexão: Catarses Pós-Coloniais (Elikia M'Bokolo) – III
A Cidadania, os Movimentos Sociais e o Papel dos Intelectuais
Do ponto de vista dos povos africanos, a transição da colonização para estados independentes teve uma importância enorme, facto que por vezes temos alguma dificuldade em compreender, porque esta passagem significou a passagem do estado de «indígena» ao estado de cidadão. Se colocarmos a questão em termos políticos significa a passagem do estatuto de súbdito ao estatuto de cidadão. Esta conquista da cidadania foi algo de muito importante pelo que ela significa na pós-colonização, mas podemos também dizer que a conquista da cidadania, no fim da colonização, foi uma conquista muito parcial, uma conquista insuficiente, reduzida. A cidadania dos anos 60 era essencialmente uma cidadania jurídica, uma vez que na realidade a igualdade dos cidadãos estava consignada essencialmente nos textos jurídicos. Reconheceu-se também a cidadania política - o direito a subscrever a máxima “um homem, uma mulher, um voto”. Mas esta conquista da cidadania era muito frágil e muito precária, porque era possível fazer com que o princípio do direito fosse posto em causa pela prática do poder; e mesmo a cidadania política, dada pelo boletim de voto, podia ser posta em causa no exercício diário da cidadania. O que se passou neste período inicial foi precisamente o acto de pôr em causa um certo número de aquisições.
Sem cair numa espécie de nostalgia do passado, penso que os anos 70 e princípios de 80 do século XX, correspondem a uma fase extraordinária no que toca aos movimentos sociais. Foi um período politicamente muito decisivo para os movimentos sociais, o que causou um problema às ciências sociais, que assumidamente não fizeram o necessário para conhecer e interpretar esses movimentos sociais. Elenco apenas, de forma sumária, alguns desses movimentos:
Há em primeiro lugar toda a rebelião política, violenta, da luta armada contra o estado pós-colonial. Um dos primeiros paradoxos deste primeiro período pós-colonial é que nos países onde a descolonização não se fez pela luta armada assistimos, por vezes, após a descolonização, ao desencadear da luta armada. Um caso exemplar será talvez o da República do Congo. Uma análise desta situação permite-nos traçar alguns paralelos, quer com a América Latina, quer com a história asiática. Foram períodos de grande insurreição urbana e isso foi muito importante. Tratava-se de insurreições espontâneas, quer de jovens, quer de mulheres, insurreições organizadas, por vezes, em estruturas militantes, outras vezes, em estruturas mais ou menos secretas, o que é comparável à guerrilha urbana da América Latina. E aqui estou a referir-me particularmente a Brazzaville nos anos 60. Há também todo o movimento dos estudantes, que, ainda no período propriamente colonial se desenvolvia sobretudo nas metrópoles coloniais. A partir dos anos 60 o movimento dos estudantes africanos assume-se realmente como um movimento africano que se desenvolve em várias capitais de África: Dakar, Nairobi, Dar-es-Salam, Kinshasa, Bangui, etc. A maior parte dos estudantes africanos conheceram uma movimentação estudantil considerável e direi mesmo interessante, e falo não só de estudantes universitários, mas de movimentos de alunos, das escolas primárias e secundárias. Para citar um exemplo entre outros, relembro-vos que a queda do imperador Bokassa, na República Centro-Africana, em 1979, está directamente ligada a uma greve dos alunos das escolas primária e secundária.
Neste período, é também fundamental o papel dos intelectuais africanos, a intelligentzia. Para abrir um debate que pode ser objecto de uma discussão ulterior, direi de forma semelhante àquela que em França se costuma usar para classificar esquematicamente os intelectuais. Consideram-se três categorias: os intelectuais engajados, os «específicos», mais propriamente os que estão nos seus laboratórios e que não se ocupam do resto, e os intelectuais do governo. Na primeira fase da pós-colonização os intelectuais africanos, suficientemente numerosos, distribuíram-se pelas três categorias – “específico”, engajado e do governo - e isso teve, consequências para as ciências sociais. Os intelectuais específicos e os engajados produziram um conjunto de paradigmas, um certo número de epistemologias que me parece que hoje devemos ter em conta se quisermos conhecer a pós-colonização no continente africano. Paradoxalmente, foi neste período que entrei para as ciências sociais, e direi, a partir da minha própria experiência, que a autonomia das ciências sociais é tributária dos financiamentos que de uma certa forma levaram – não sei se de forma deliberada – os intelectuais a afastarem-se do movimento social para outros objectos de estudo que eram certamente interessantes. Estes estudos deixavam-nos um pouco míopes, um pouco cegos, em relação aos movimentos sociais. Direi para resumir que os financiamentos nos conduziram para o discurso do Estado, para as práticas do Estado em vez incidirmos na análise dos movimentos sociais. A maior parte dos investigadores interessava-se pelo “desenvolvimento”, pelo Estado, mas pelo Estado não numa perspectiva de antropologia política ou de sociologia jurídica ou de ciência política. O Estado era estudado sobretudo do ponto de vista do direito formal e, evidentemente, fomos também levados ao estudo da nação e da construção da nação. Neste período, há uma outra característica que me parece importante e que tem a ver com a cidadania. Os receios que podíamos ter de que a cidadania jurídica e política podia ser posta em causa rapidamente se revelaram verdadeiros. É uma situação conhecida e que apenas vou citar no geral, os casos de golpe de Estado, quer os efectivamente militares, quer os jurídicos que não eram militares. São disto exemplo os de Léopold Sédar Senghor, no Senegal, ou de Félix Houphouet-Boigny, na Costa de Marfim, que fizeram golpes de Estado «legais» para estabelecerem regimes de ditadura. Esta cidadania jurídica e política foi assim rapidamente esvaziada do seu conteúdo.
Nesta perspectiva, a primeira impressão que podemos ter é que a primeira pós-colonização, durante os anos 60-70, do ponto de vista político lembrava o Estado colonial, sendo porém de manter, algumas reservas. Uma leitura colonialista do pós-colonialismo feita pelos africanos conduziria pela certa, à conclusão de que a colonização não constitui um bloco cronológico, mas antes, que houve vários estádios na colonização. E diria que a colonização na sua fase final, mais ou menos por volta dos anos 40-60 – a que alguns de nós chamaram a segunda ocupação colonial – apresentava características particulares. É evidente que o Estado era um Estado autoritário, havia uma dominação estrangeira, havia o racismo, mas essa colonização havia assumido outras características: em primeiro lugar, tornou-se muito mais técnica, talvez mesmo tecnocrática. Poderemos também dizer que era uma colonização mais científica, integrando na sua prática – e isso é verdade também para a colonização portuguesa se virmos os trabalhos do Instituto de Investigação Tropical – os estudos sobre Botânica, Agricultura, Medicina. Ao mesmo tempo, podemos dizer que devido às exigências africanas, talvez também por causa do contexto da Guerra Fria, a colonização foi obrigada a soltar as rédeas. Como consequência, num certo número de países africanos, as práticas do Estado-providência da Europa Ocidental vão ter algum impacto no continente africano, levando certas categorias sociais a beneficiar dessas práticas do Estado-providência. São estes dois factores – o carácter tecnocrata da colonização na sua fase terminal e o seu carácter providencial – que fizeram com que para um certo número de africanos o recuo da cidadania fosse sentido como um recuo em relação à colonização. Chegamos assim a esse paradoxo que faz com que a pós-colonização possa aparecer como uma regressão em relação à colonização. Essa é uma das razões por que vamos assistir ao recurso à violência e mesmo à violência armada por parte desses cidadãos. (Cont...)
In “3 Fevereiro de 2006 - Auditório da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra -Transcrição e tradução de Raul Fernandes, estudante de doutoramento do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global. Edição e selecção de Margarida Calafate Ribeiro e Maria Paula Meneses”.
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