PATERNIDADE:
Cresce no país o número de pessoas que pretendem adoptar. Vários são os factores que concorrem para essa opção. Mas será que quem quer adoptar está mesmo preparado para fazê-lo? Conhece os contornos jurídicos de tal escolha? E se se arrepender? O que fazer? Os filhos biológicos precisam de ser ouvidos? Nesta reportagem procuramos responder a algumas dessas questões.
O casal Firmino, depois de muito reflectir, decidiu que não queria ter mais filhos biológicos. A hipótese equacionada passou a ser adopção. Materializou-se. Porém, passado algum tempo estava arrependido. Pretendia fazer marcha à ré. Tinha descoberto que lhes sobrava pouca paciência para trocar fraldas à criança, dirigir-se de madrugada à Pediatria devido a um súbito sindroma febril do menor, levar a criança às vacinas, entre outros deveres. O último filho biológico do casal nascera há mais de dez anos. Por outras palavras, estavam esquecidos ou mesmo destreinados na matéria de paternidade.
Já o casal Humberto está mais feliz do que nunca. Sente que a vida retornou ao lar. Há muitos anos que não experimentava tanta felicidade desde que os dois filhos saíram de casa. Tiveram de entender a dura realidade da vida.
Os filhos cresceram e decidiram, por conta e risco próprio, começar a edificar os seus lares longe dos progenitores. Todavia, para este casal, tudo mudou desde que conseguiram a tão almejada adopção. Confessaram que foi exasperante o período entre a formalização do pedido para adopção até a sua efectivação. “Agora está tudo nos carris”. O menor tem de tudo um pouco: boa educação, comida, brinquedos, assistência médica e, sobretudo, amor paternal.
O casal Maria e Pedroto, mais dois nomes por escolha aleatória para usar nesta reportagem, residente na zona do Museu, na cidade de Maputo, experimenta um misto de sentimentos. Por um lado, está feliz por proporcionar uma vida condigna ao filho adoptivo, mas, por outro, sente um aperto no coração quando o adolescente, que tinha aconchego num orfanato, e, diga-se, não tinha condições excelentes como as que passou a ter após ganhar novos pais, lhes decepciona.
Não desanimam porque entendem que pode ser a chamada crise de adolescência. Ainda assim, o que lhes custa engolir são as bocas que por vezes o miúdo desprende das suas cordas vocais do género: “eu não pedi para vocês me adoptarem”.
Reconhecem que dói ouvir aquilo, mas estão decididos a amá-lo e protegê-lo até ao fim. Aliás, aquele é seu filho. “Não há muito por onde escolher porque mesmo de filhos biológicos, às vezes, ouvimos o que jamais imaginaríamos”, confessaram-nos.
Estes são alguns dos relatos que fomos ouvindo à medida que nos íamos embrenhando na recolha de dados para esta reportagem.
Porque ouvir de um filho “bocas” como, por exemplo, “Não pedi para me nascerem”, ainda que ele seja adoptivo dói bastante, procuramos saber da psicóloga Ana Morais qual é que deve ser a reacção dos pais quando isso sucede.
“Quando isso acontece os pais têm de ter a maturidade necessária para perceber, deixar baixar a poeira, porque o filho apenas pode estar contrariado, zangado, acometido por sentimento de injustiça, revolta, e não porque não tenha amor ou afecto por eles”.
A psicóloga aconselha aos pais a não se deixarem dominar pelo pavor, pela desconfiança no sentido de que “bem desconfiávamos que quando ele for grande nos irá abandonar e esquecer tudo o que fizemos por ele”.
Acrescentouque“a desconfiança bastas vezes esconde-se algures no nosso subconsciente. Os pais têm de saber ultrapassar esses períodos menos bons. Quantas mais vezes conversarem com os filhos melhor são os resultados na convivência pais e filhos”, sublinhou.
LEI DA FAMÍLIA
Vasculhámos a Lei da Família e entrevistámos entendidos na matéria, nomeadamente Didier Malunga, académico e docente universitário das cadeiras de Direito da Família e Direito Registral, e o Curador do Tribunal de Menores, Jorge Gimo, para com a experiência e sabedoria que comportam nos falassem dos aspectos processuais.
No nosso país, o processo de adopção é realizado à luz da Lei da Família (2004), sendo que os aspectos processuais são regulados pela Lei da Organização Tutelar de Menores (Lei 8/2008).
Segundo apurámos, o processo conducente à adopção passa por cumprir uma série de trâmites legais que validam os potenciais adoptantes de usufruir desse direito, que incluem ainda a prova da capacidade financeira e o desejo genuíno de adoptar e de se responsabilizar pelo menor. Essa pretensão, que é feita por escrito ao tribunal de menores, “pode ser manifestada por uma pessoa ou por um casal desde que nas duas situações aludidas os requerentes tenham a idade mínima de 25 anos e não superior a 50 anos até à data da adopção. Depois a diferença de idade entre os adoptantes e os adoptados não pode ser inferior a dezoito anos e não superior a 25 anos”. Para além desse requisito, e para o caso da adopção plural, “devem estar casados ou em união de facto há mais de três anos”.
O QUE É ADOPÇÃO?
Adopção é um processo jurídico-legal que tem como fundamento criar uma nova filiação, maternidade e paternidade, isto é, “dar pais a um filho que necessita de pais”
“Não significa que é um filho que não tenha pais, pois, nós partimos de uma regra que todos filhos têm pais. Mas há várias situações: há órfãos, estão no desamparo, estão no abandono; há filhos que têm pais desconhecidos, que antigamente se chamavam filhos incógnitos, nomenclatura esta que foi abandonada, pois era atentatória à dignidade da pessoa”, disse Didier Malunga.
QUEM PODE
SER ADOPTADO
A Lei da Família de 2004 diz que pode ser adoptada “toda a criança com idade compreendida entre 0 e 14 anos em condições de abandono, desamparo ou filho de pais desconhecidos”.
Pode-se igualmente adoptar “todos menores, independentemente da idade, desde que sejam filhos de um dos cônjuges”. Isto equivale dizer que nos casos em que seja a mulher ou o homem que tenha tido um filho anterior ao novo casamento, o filho de um deles pode ser adoptado desde que haja mútuo acordo. Mas não é tudo, como se pode ler no parágrafo que se segue.
O consentimento e a audição são duas figuras que fazem parte do processo de adopção. Em que caso isso acontece? Estará a se interrogar o amigo leitor.
“Ora bem”, segundo Didier Malunga, “o consentimento é exigível para os adoptados que sejam maiores de 12 anos, pois, segundo a Lei, eles devem prestar o seu consentimento perante o Tribunal”.
“Também tem de prestar consentimento o cônjuge que não tenha subscrito o processo. Um parceiro não pode introduzir no meio conjugal uma criança sem que a outra parte tenha consentido”, sublinha.
Malunga afirma ainda que a lei enfatiza que “Se uma das partes não é favorável, este processo não tem como continuar. Portanto, todos os filhos que tenham mais de 12 anos devem consentir que entre para casa um filho adoptado de modo que continue a reinar a harmonia no seio da família”, explicou.
Nota igualmente importante é que “quando os filhos que pretendem ser adoptados forem maiores de 7 anos e os demais filhos do casal forem maiores de sete anos também têm de ser ouvidos (pelo juiz), bem como o menor que está para ses adoptado se tiver mais de sete anos. Logo, está cumprido o segundo pressuposto que é audição”.
Dando sequência, “o juiz vai chamá-los e dizer que o senhor vai ser adoptado. Significa que vai passar a ser definitivamente filho destes adoptantes e vai extinguir o seu vínculo com os pais naturais, seja um filho abandonado ou no desamparo mas com registo de pai e mãe”, esclareceu Malunga. Tendo acrescentado que para o caso de adopção de um recém-nascido “a mãe só pode dar o seu consentimento para adopção passados seis meses após o parto”.
“Não se pode, por exemplo, um mês depois de uma mãe ter dado parto levar a criança à adopção”, sublinhou Malunga.
50 ANOS COMO LIMITE
Outro aspecto a observar impreterivelmente é que a diferença de idade entre o adoptante e o adoptado que não pode ser superior a vinte e cinco anos. Quer dizer: o adoptante não pode ter mais de 50 anos até a data de adopção, “excepto se o filho for do seu cônjuge”.
Malunga elucidou-nos que o requerente à adopção tem de provar possuir condições morais e financeiras para acolher o menor. Este é um dos factores que dita a sentença do Tribunal. “Antigamente a adopção visava salvaguardar os interesses dos pais que não pudessem ter filhos. Hoje, e tendo em conta as normas internas e internacionais, a adopção tem de ter sempre em conta o interesse superior que é salvaguardar a integridade da criança”.
“Uma vez feita a adopção extingue-se automaticamente o vínculo familiar anterior”,explica e acrescenta, “a lei diz claramente que a adopção cria para o novo filho um nível de igualdade de direitos com os filhos naturais (filhos biológicos)”.
Aqui chegados, referir que a adopção é irrevogável, isto é, não vale a pena se arrepender porque não há volta a dar. Quem adoptou, adoptou, razão pela qual tal decisão deve ser tomada em profunda consciência e desprovida de emoções ou paixões momentâneas.
“Uma vez a sentença decretada pelo juiz (adopção) o menor passa a adoptado e a gozar dos mesmos direitos e deveres que os filhos biológicos, excepto se houver uma revisão da sentença que permitiu a adopção”, clarificou Malunga.
CIDADE DE MAPUTO
Brígida Macamo, chefe de Repartição da Criança em Situação Difícil, disse à nossa Reportagem que o número de pessoas que procuram os serviços de Acção Social para adopção está em crescendo na cidade de Maputo. “De Janeiro até ao passado mês de Agosto foram adoptadas 10 crianças de ambos os sexos”.
Mas, como referimos anteriormente, o caminho a percorrer até a adopção não é fácil, porque o fim maior de todo este processo é salvaguardar o interesse supremo da criança ou do menor. Ainda assim, segundo apurámos junto da Direcção do Género, Criança e Acção Social da Cidade de Maputo em 2015 foram adoptadas dezassete crianças contra quinze em 2014.
Segundo referiu Brígida Macamo, nos últimos tempos os pedidos de adopção são de jovens casais que não conseguem ter filhos, outros porque têm filhos crescidos e outros ainda porque decidiram não ter mais filhos biológicos.
Na óptica desta responsável pela Repartição da Criança em Situação Difícil, o instinto maternal tem contribuído para que as mulheres sejam as que por iniciativa própria queiram adoptar crianças especiais por necessitarem de mais cuidados e atenção. E recordou-se de um caso bem sucedido. “Um casal adoptou duas crianças especiais, em momentos diferentes, e elas agora beneficiam de assistência médica fora do país”.
TEMPO DE ESPERA
Segundo apurámos, o tempo de espera para adopção de crianças constitui, neste momento, um dos grandes desafios da Acção Social, porque o número de pais com pedidos de adopção aprovado está a aumentar, todavia a entrega de menores aos novos pais não é imediata.
“Temos estado a receber algumas reclamações porque o processo de adopção é visto como longo. Mas é preciso perceber que se trata de uma vida humana e a nossa maior preocupação é assegurar que a criança esteja em boas mãos. Por isso, depois da adopção(entrega da crianças aos pais), fazemos visitas domiciliárias para aferir a inserção do menor na nova família”, esclareceu Brígida Macamo, tendo referido que, por vezes, se desencadeia mal-estar quando os pais tornam-se impacientes em aguardar pela recepção da criança a adoptar. E… toca a procurar.
Soubemos que derivada da impaciência algumas pessoas que submeteram pedidos de adopção têm procurado, por iniciativa própria, por crianças abandonadas nas maternidades. Aliás, este tem sido um grande quebra-cabeças para a Direcção do Género, Mulher, Criança e Acção Social. Depois há casos em que mal surge um bebé abandonado há quem imediatamente toma conhecimento e levam os dados para aquela Direcção para prosseguir com o processo.
“Os pais em espera devem ter um pouco mais de paciência e aguardar até que sejam contactados”, disse Brígida.
Lar de órfãos e abandonados
O infantário 1.º de Maio é para onde são encaminhadas as crianças abandonadas na cidade de Maputo. É ali onde algumas são adoptadas e outras reinseridas nas respectivas famílias de origem quando identificadas. As crianças estudam, desenvolvem diferentes actividades lúdicas que são suportadas com apoio do Governo e de alguns parceiros e padrinhos da instituição.
Aquando da nossa visita, o infantário albergava sessenta e uma crianças, das quais catorze com idade compreendida entre zero e dois anos; nove com idades entre dois e cinco anos. Em idade escolar contamos trinta e oito crianças.
Segundo nos foi dito, é dali que sai parte considerável de crianças adoptadas na cidade de Maputo.Entre zero e dois anos tem sido a idade preferencial para adopção. Segundo a assistente social Filomena Nuvunga muitos casais optam por esta idade, pois acreditam ser fácil iniciar a educação naquela idade.
domingoconheceu as três crianças mais novas daquele infantário. Lourenço é uma delas. Tem dezasseis meses de idade. Foi parar naquele infantário após a morte da sua mãe por doença. Entretanto, os familiares revelaram não estarem em condições de cuidar dele pelo que por lá deverá continuar, sob cuidado do infantário.
A pequena Clara, de 11 meses, encontra-se há alguns meses no mesmo infantário. Foi abandonada na rua pela própria mãe. Depois de achada pelas irmãs da Casa Madre Maria Clara foi encaminhada para aquele nobre lar de acolhimento. Fortuitamente a Acção Social achou a mãe. Contudo, ela ainda se encontra no infantário porque a mãe é alcoólatra.
A mãe do pequeno José faleceu numa unidade sanitária em resultado de doença, segundo nos revelou Filomena Nuvunga.
O infantário 1.º de Maio é um centro transitório, daí que a prioridade seja a reinserção das crianças abandonadas, perdidas e órfãos nas suas famílias biológicas antes de se optar pela adopção.
Temos como seguir
crianças no estrangeiro
–Jorge Gimo, curador do Tribunal de Menores
De acordo com o curador do Tribunal de Menores da Cidade de Maputo, Jorge Gimo, apesar de Moçambique não ter ratificado a Convenção de Haia de 1993, relativa à protecção da criança e a cooperação em matéria de adopção, está em condições de acompanhar os menores adoptados e residentes fora do país.
“Nas situações em que temos acordos bilaterais judiciários com os países, usamos esta via para fazer o acompanhamento do menor. Entretanto, nas situações em que não temos estes acordos, recorremos a outros mecanismos indirectos para ter informação sobre a criança”, explicou o curador.
Salientou que a lei moçambicana não faz distinção de adopção por estrangeiros ou por nacionais, mas sim a adopção plena. “O cidadão estrangeiro residente no país pode adoptar, se apresentar os requisitos pedidos para o efeito e outros que permitam dar mais informação de quem ele é, assim sendo pode viver com o menor fora do país”, referiu.
O Tribunal também pode impor que o adoptante traga periodicamente a criança para Moçambique ou que mande periodicamente informação sobre o mesmo.
“Caso se perceba que existem sinais que comprometem a integridade do menor, accionamos mecanismo legais que permitam resgatar a criança e responsabilizar os pais quando provados”, explicou.
Sublinhou que é preciso que se tenha em conta que a criança já se tornou filho natural e qualquer coisa que for acontecer com o menor será penalizado, pois quase todos países ratificaram a Convenção sobre os Direitos da Criança.
Devemos ratificar a Convenção de Haia
– Didier Malunga, académico
O académico Didier Malunga entende que para colmatar as lacunas existentes no processo de adopção de filhos que depois vão viver fora do país, Moçambique deve subscrever a Convenção de Haia.
“Esta Convenção impõe aos Estados-membros que criem uma autoridade central de acompanhamento das adopções. Esta autoridade central é encarregue de fazer o mesmo trabalho feito pela nossa Acção Social cá, que é o acompanhamento do menor adoptado até atingir a maioridade”, explicou.
Para a nossa fonte, a ratificação desta convenção vai permitir que haja fluxo de informação para que o que a própria Lei da Família preconiza se cumpra.
Texto de Luísa Jorge e André Matola
Sem comentários:
Enviar um comentário