Elisio Macamo
Conceitos são a pedra angular de qualquer actividade científica. Quanto mais exactos forem, melhor será o trabalho de pesquisa. Pela natureza do seu objecto, as ciências sociais têm algumas dificuldades em lidar com o conceito. Enquanto você pode dizer a uma criança para ir ver se lá fora tem uma pedra, já não é fácil pedir para que faça o mesmo em relação à "sociedade" ou a "relações sociais". O desafio é o mesmo que noutras ciências, mas nas ciências sociais é mais bicudo ainda porque elas são discursivas. É mais pelo discurso, do que pela observação, que as ciências sociais recuperam o seu objecto.
A base disso tudo é o conceito. Só que conceito é animal muito complicado. É como a caixa-negra dum avião. Regista tudo o que se passa durante o voo, mas nem tudo isso é relevante para esclarecer um acidente. Para fazermos isso, precisamos de identificar a parte da gravação ("merda, o coiso encravou") que nos vai permitir explicar porque o avião de repente se despenhou. Para ilustrar a complexidade do conceito podemos pegar num termo como "moçambicano" em "eish, moçambicano é complicado pa!"). Todos nós pensamos saber o que "moçambicano" significa. Mas sabemos? Duvido. "Moçambicano" é uma caixa-negra. É homem ou mulher, do norte, sul ou centro, professa uma religião ou não (ou as duas coisas), é da Frelimo, Renamo ou MDM ou de ninguém, é idoso ou jovem, é formado ou não, é motorista de chapa ou dos TPM, é isto ou aquilo. Quando dizemos que "moçambicano" é complicado o que estamos realmente a dizer? Se calhar dissemos isso depois de ver um motorista de chapa a galgar um passeio para fazer uma ultrapassagem. Então, na verdade o que estamos a dizer é que condutores de chapa são um tipo de moçambicano que é complicado. E mesmo aí corremos alguns riscos de perder a precisão. "Motorista de chapa" é também caixa-negra no sentido em que pode ser religioso ou ateu, militante da Frelimo ou não, alcóolico ou não, etc.
O que quero dizer é que uma boa parte do trabalho que se faz em ciências sociais consiste em tornar os conceitos mais precisos. Conceitos são mais precisos quando neles se identificam os elementos susceptíveis de explicarem (ou esclarecerem) uma determinada relação. Pode fazer parte do conceito "motorista de chapa" ser destemido e desdenhar o perigo. Se quiséssemos perceber o envolvimento dos motoristas de chapa em acidentes de viação teríamos provavelmente de isolar este elemento e mostrar que ele é que é responsável pelo envolvimento desse pessoal em acidentes.
O que suscitou esta reflexão foi a leitura do discurso do Presidente da República por ocasião da celebração do Dia da Paz em Moz. Li num jornal excertos desse discurso algo convoluto, mas um que retive foi o seguinte: "A paz é o condimento mais importante para a persecução de todos os projectos de desenvolvimento económico e social do nosso país. Não podemos continuar a buscar justificativa em processos onde todos nós participamos e testemunhamos para matar a esperança do povo moçambicano". Não percebo o segundo parágrafo, mas se calhar nao é para ele ser percebido, caso contrário teria sido escrito de forma mais clara. Penso ter percebido o primeiro, nomeadamente esta ideia de que a paz seria o elemento (condimento é uma péssima imagem, sobretudo se o resto do parágrafo não insiste na ideia de receita gastronómica) mais importante para a persecução do objectivo de desenvolvimento. Friso a palavra "penso" porque não é mais do que isso. Penso ter entendido que "a paz" teria essa importância. Mas bem vistas as coisas o que quer dizer "paz"? Reparem que a pergunta aqui, do ponto de vista das ciências sociais, não é o que significa a palavra "paz", mas sim que elemento desse conceito viabiliza a persecução do objectivo de desenvolvimento. Há sociedades que se desenvolveram graças à guerra e ao conflito. Estou a pensar, por exemplo, na Coreia do Sul (para não falar das sociedades europeias). Aquela guerra foi uma bênção para que o país beneficiasse do investimento americano, de facilidades nas trocas comerciais, etc. Não estou a querer ser mesquinho, nem cínico. A paz em si não viabiliza nada. Até porque a situação de conflito, bem aproveitada, podia permitir que o governo organizasse melhor a sociedade, declarasse um estado de emergência que pusesse o processo democrático em banho-maria e, aproveitando essa situação, tomasse todo o tipo de decisões que bem lhe apetecessem em prol do desenvolvimento. O saudosismo em relação aos tempos de Samora vai até nesse sentido. Uma dose de autoritarismo não iria incomodar muita gente...
Mas é claro que o que o Presidente da República está a dizer é que a paz num contexto de democracia viabiliza o desenvolvimento. Mas lá está, do ponto de vista das ciências sociais ainda não disse patavina. Se ele se refere às acções armadas da Renamo e, sobretudo, aos ataques a viaturas nas estradas, os assaltos a centros de saúde, etc. que geram um clima de insegurança, podíamos dizer que eles não são o único elemento cuja ausência descreveria o conceito de paz. Aquilo que faz com que essas coisas ocorram, nomeadamente (e agora estou a falar "supostamente" como Renamo) a partidarização do Estado, a fraude eleitoral e a tentativa de liquidar o seu líder seria um elemento constitutivo do que precisa de estar ausente para que sejamos capazes de descrever o conceito de paz. Dizer que precisamos de paz para podermos desenvolver o nosso país e limitar esse conceito apenas ao que uma parte do conflito faz não é suficiente. Na verdade, tenho a certeza de que esta afirmação do chefe de estado foi entendida de várias maneiras por diferentes pessoas. Os que são simpáticos ao lado representado pelo chefe de estado entenderam que ele estava a atribuir as culpas à Renamo. Os mais moderados no seio da Renamo devem ter entendido que ele se refere ao que eles acreditam ser uma paz "genuína".
Da mesma forma que uma das tarefas das ciências sociais é tornar os conceitos mais precisos, o debate na esfera pública também poderia primar por tornar os conceitos que estão na base das nossas discussões mais precisos. Tenho visto várias discussões por aí que se tornam azedas e agressivas (também me envolvo em algumas delas) simplesmente porque não fazemos este trabalho de tornar os conceitos mais precisos. Partimos do princípio de que os conceitos são claros ou que sabemos quais são os seus elementos constituintes que são responsáveis pelo tipo de relações que constatamos. Muito arriscado.
Por vezes, alguns posicionamentos problemáticos na esfera pública também resultam destes equívocos. Há quem não vê nenhum problema em se considerar democrata ao mesmo tempo que acha que pode apelar a um período autoritário e totalitário da nossa história política como inspiração para os desafios do presente. Há quem acredita firmemente na ideia de que o respeito pela constituição passa por violar a constituição como forma de protestar contra aquilo que considera ser a violação da constituição por outros. Há quem acha que pode marchar pela paz lado a lado com representantes dum partido político armado que está envolvido na criação de condições para que não haja paz e ao mesmo tempo pensar que está a contribuir para a paz no país. Há muitas outras incongruências, mas fiquemos por estas para não suscitar o tipo tradicional de discussões que tornam este tipo de post necessário... O que as incongruências têm em comum é a falta de cuidado no tratamento de conceitos, um problema que rouba cientificidade às ciências sociais.
A seguir partilho um texto da autoria de Elísio Macamo, no qual ele explica—de forma bem conseguida, na minha opinião—a causa da questionável cienficidade das ciências sociais.
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Causa(s) da questionável cientificidade das ciências sociais
A seguir partilho um texto da autoria de Elísio Macamo, no qual ele explica—de forma bem conseguida, na minha opinião—a causa da questionável cienficidade das ciências sociais.
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