terça-feira, 11 de outubro de 2016

"Não há tentativa de branquear a história ou de menorizar o que foi criminoso"

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Mia-couto-entrevista-stv-06x13x625x230Entrevista a Mia Couto
Por João Céu e Silva
Desmistificar a figura que fica para a história de Gungunhana é o objectivo da trilogia que o mais importante escritor moçambicano está a escrever. Um romance em parte epistolar e que revela as confissões íntimas dos militares portugueses, numa réplica da guerra colonial de 1961-1974.
"É um momento da história muito rico e por isso como escritor tenho a vida facilitada." O escritor moçambicano Mia Couto sintetiza deste modo o cenário temporal da sua trilogia As Areias do Imperador, um trio de romances em que desenha a figura histórica possível de Gungunhana. Após ter publicado o volume inicial,Mulheres de Cinza, surge agora o do meio, A Espada e a Azagaia. O terceiro, talvez para o ano. Esse é um tema sobre o qual Mia Couto não quer falar muito: "Já tenho uma grande parte do terceiro volume na minha cabeça." E mais não revela.
O escritor veio na semana passada apresentar o romance em Braga e Lisboa, após ter feito o lançamento no seu país e no Brasil, onde Maria Bethania leu algumas páginas. São quatro centenas e meia onde a narrativa é guiada de forma epistolar com a troca de cartas entre o tenente Ayres de Ornellas e o sargento Germano de Melo e com o relato de Imani, a jovem moçambicana que fez o segundo apaixonar-se por ela. Pelo meio, não faltam personagens mas a ausência de Gungunhana enquanto protagonista que se previa estar por ali é ensurdecedora.

Mia Couto explica nesta entrevista porque constrói uma trilogia sobre o imperador do estado de Gaza mas não o planta nas páginas como seria de esperar. Um truque literário que garante ansiedade ao leitor e que também serve para o descrever através da envolvência da natureza, do seu povo e das memórias que deixou. Afinal, garante, Gungunhana teve um comportamento muito ambíguo em relação a Portugal, tinha pouca consistência moral e foi feito um herói moçambicano obrigatório pela revisão histórica de um partido único após a independência, em 1975. Não deixa de explicar a disputa entre o governo português de então e o seu captor, Mouzinho de Albuquerque, ao arrepio das ordens oficiais.
Este volume torna-se importante pelo facto de obrigar os dois leitores, os de Moçambique e os de Portugal, a rever os conceitos de pátria e de cidadão, bem como de história, que foram transmitidos nos últimos 120 anos após a sua prisão. Uma narrativa em que a emoção só se destina à história amorosa; em que a investigação só se preocupa com o desfazer da identidade; em que os diálogos só refazem o potente imaginário de África, e em que o rigor só é possível de ser encontrado num mundo em que se questiona "quantas guerras há dentro de uma guerra?" É um romance onde a azagaia tem o mesmo poder que a espada e que, diz Mia Couto, "aprendi para o escrever".
Por que decide tornar Gungunhana protagonista desta trilogia e mantê-lo ausente?
No primeiro volume - que é o momento da terra, este o do rio e o próximo do mar - tive muita dificuldade em desenhar um plano prévio da trilogia. No entanto, o primeiro faz essa configuração humana, geográfica e do cenário onde se vai passar a história; o segundo é um livro de viagem, porque esta gente que conta a história é arrancada dos lugares e transportada por via de rios para a proximidade da região onde vão desenvolver-se os grandes combates entre o exército português e o do Gungunhana.
Aqui, ele já aparece fisicamente...
E da única maneira que me interessava: com as suas fragilidades humanas, conflitos internos e alguém que, sendo muito poderoso, é profundamente infeliz e solitário. Um homem que tem mais de 300 mulheres e a única que ama é assassinada pela corte. Há um sentido trágico nesta figura humana, que é a única situação que me interessa e não um romance histórico.
Mas os leitores não esperavam uma quase biografia?
Sim, mesmo que sempre tenha confessado que não o faço, porque nem o sei fazer nem me interessa aprender a técnica do romance histórico. Aliás, nem sequer é sobre esse momento histórico, antes sobre a guerra em geral. A grande intenção é mostrar como estes processos de construção de uma guerra começam muito antes de se formarem os exércitos com a aposta no desumanizar e retirar a alma ao outro. Nos dois lados era preciso mostrar que o outro não era humano, ficando-se autorizado a cometer os atos de desumanidade que ficavam à partida legitimados.
Opta pela História do colectivo?
No final dos anos 60 e 70 era a causa do colectivo que nos abraçava, mas o momento em que comecei a publicar - o meu primeiro livro de poesia - coincide com uma tentativa de resgatar a individualidade e a intimidade dos personagens. Esta história é principalmente conduzida pela Imani e pelo sargento Germano que, em textos cruzados, vão revelando o outro no que há de humano. São duas personagens marginais à história para mostrar o processo de negação dessa desumanização da guerra.
Há partes que lembram o desespero dos portugueses por estarem numa guerra colonial (1961-1974) indesejada. Foi de propósito?
Acho que se pode fazer essa leitura, pois repete-se uma guerra colonial com a particularidade curiosa de quem combate o exército colonial português é um exército colonial africano. Há um certo exercício de colonialismo que é feito a partir de dentro de África.
O seu sargento faz lembrar os últimos soldados, os desiludidos. É também um soldado descrente?
Com uma característica mais particular, a de estar completamente marginalizado do exército a que pertence. Nem está num quartel mas numa cantina. Não houve nunca nenhum soldado que estivesse tão alienado do colectivo como ele e a dado momento precisa de encontrar uma identidade numa guerra que não lhe interessa porque fora enviado para uma causa em que não tem crença e, ao mesmo tempo, sabe que o regresso é impossível.
O fim do império de Gungunhana e a independência pós-25 de Abril assemelham-se porque o estado não se estrutura?
Não é equivalente porque já era um vazio antes. As grandes batalhas de Magul e Coolela descritas neste livro ajudam a desmoronar o exército [de Gungunhana] que, por razões internas, estava a ruir. Quando Mouzinho de Albuquerque avança contra as decisões já tomadas pelos seus superiores, decide que não basta derrotá-lo militarmente mas é preciso prendê-lo. E vai à sede do império, Chaimite, com uns 40 soldados e ao chegar não há um tiro sequer. Entra e captura-o à mão, sem sinal de revolta, pois aqueles que deviam defender o imperador saúdam o rei de Portugal. Curiosamente, a verdade histórica mostra que enquanto Gungunhana está a caminho da prisão chega uma mensagem do poder central que diz "aborte imediatamente esta missão porque se correr mal arruína todo o medo que causámos na população local". Mouzinho não recebe essa mensagem e, se a recebesse, também a ignoraria. É um momento da história muito rico e por isso como escritor tenho a vida facilitada.
O romance torna-se um trabalho de reconstituição histórica. Substitui os livros de história de Moçambique?
Substituir não, complementar talvez. Não sei como é que isto é ensinado em Portugal mas em relação a Moçambique houve uma apropriação mítica e ideológica da figura de Gungunhana que foi falseando o que realmente era a figura dele. Espero que haja outras versões, até porque não sou o primeiro a fazê-lo, antes de mim o escritor Ungulani Ba Ka Khosa escreveu um livro muito corajoso na altura, há 20 anos, que já desmistificava esse grande mito de herói nacional. Gungunhana nunca pensou em Moçambique mas no seu império e ninguém o pode criticar por isso, era a sua perspectiva histórica. Por outro lado, teve um comportamento muito ambíguo em relação a Portugal, sendo várias vezes seu aliado, foi sargento do Exército português e tinha hasteada uma bandeira de Portugal à porta da sua casa. Era uma relação de tensões para evitar choques.
É descrito como hábil negociador.
Hoje sim, na altura era um sujeito que não tinha consistência moral e que se vendia ora a um ora a outro. De facto, todos faziam o mesmo e os portugueses eram profundamente contraditórios nas suas alianças.
Refere várias vezes essa colaboração em várias personagens. Não é complicado tendo em conta a reacção dos leitores em Moçambique?
Não, há a percepção de que havia guerras diferentes em Moçambique e que o próprio pai foi colocado no poder por causa da aliança que fez com Portugal, porque ajudou-o a combater o seu rival numa guerra de sucessão. Deve ver-se que é num contexto do Ultimato Britânico e que Portugal tem de ocupar efectivamente o território. O estado de Gaza tinha relações diplomáticas com o poder colonial e até uma espécie de embaixador português lá. Era uma relação de respeito, ao contrário da ideia que às vezes temos do que foi a colonização, que é construída de forma maniqueísta, pois a maior parte da população não foi tocada pela colonização portuguesa durante os primeiros quatro séculos.
Não receia passar a ideia de que o passado está a ser branqueado?
Não, só acontecerá a quem não o ler bem, nem o livro precisa que eu vá em seu socorro. Ele mostra claramente onde houve crueldade - dos dois lados - e que não há uma tentativa de branquear a história, nem de justificar ou menorizar o que realmente foi criminoso. Como a escravatura, apesar da interdição dos tratados, até porque ela não foi feita só por europeus mas teve participação de elites locais, que lucraram muito com isso.
A estrutura da obra assenta na troca de cartas entre dois militares portugueses. Essa importância também não o preocupou?
Nem pensei nisso. O sargento é quem conduz essa via epistolar do livro e ele está na iminência de deixar de ser português, pois está a procurar uma outra identidade. Está a ficar dissolvido por África. Interessa-me mais o sentido de se estar a perder uma fronteira de identidade, porque todas estas personagens estão numa condição especial e vivem uma travessia interior.
Como acha que os leitores portugueses olharão para esta África?
O que existe é uma simpatia por África, mas os portugueses também padecem do mesmo tipo de desinformação que têm outros países europeus. Imaginam África como uma coisa única, o que é uma chatice porque é mais grave pensar que se sabe do que admitir que não se sabe.
Ex-colonizados e ex-colonizadores têm uma visão distorcida?
Sem dúvida e a construção da figura de Gungunhana é um caso bem típico. Moçambique fez dele uma coisa que nunca foi e Portugal criou um Gungunhana maior do que era. No fim da vida era um infeliz e desgraçado sem poder.
A história pode ter mais glória com estas cartas do que através de uma leitura oficial?
Sim, porque são revelações íntimas e confissões que nunca poderiam ter sido feitas em relatórios oficiais. Só é possível chegar a essa espessura por via dessas cartas.
Visitou os Açores - onde Gungunhana esteve preso e morreu - para fazer pesquisa. Era necessário para elaborar a trilogia?
Sim, para mim era muito necessário, mesmo que não tenha encontrado nada de concreto além do que já conhecia. Mas a informação que existe no arquivo da Fortaleza de São João Baptista [ilha Terceira] interessava-me porque como escritor importa-me saber quem foram os comandantes da praça. E foram vários, porque Gungunhana esteve ali durante pouco mais do que uma década mas eles mudaram uma dúzia de vezes. Vi as fotografias e as biografias desses comandantes, que são dados importantes para pressentir o lugar.
Diz no livro que os portugueses quando iam para África transformavam-se em peixes para atravessar o mar. Também se sentiu como um peixe ao ir até aos Açores?
Não, mas senti uma coisa que me ajudou muito na ilha Terceira: há ali uma coisa que se impõe, uma religiosidade daquela gente e uma atmosfera que me ajudou bastante a ficar fora do mundo e de tudo o que fosse realidade.
Após o fim da trilogia vai continuar no romance histórico?
Não me vou meter nisso. Este tema interessou-me devido a querer falar de como foi deformado o passado, de como foi simplificado e reduzido. Há duas situações que me preocupam. A primeira, como é que a elite dos vencedores se apropria de uma única versão do passado e faz apagar as outras. Isso acontece sempre que nos privam de ter relação com esses passados que foram múltiplos. Nós, moçambicanos, precisámos disso, tal como os portugueses de perceber que houve várias leituras. Em segundo lugar, porque estamos todos num tempo de preparação de um grande momento de conflito, mesmo aonde ele ainda não se desencadeou militarmente.
O que quer dizer com conflito?
É visível a nível mundial a preparação de um processo mental de retirada do carácter humano ao outro que é a grande ameaça. E a criação de um clima mundial de medo em curso já ultrapassou a fase do início.
Veio agora do Brasil. Como observa a situação política?
O Brasil neste momento não existe, nem ninguém pensa criticamente por si próprio. É mais um caso da construção do outro como um demónio.
DN(Lisboa) – 11.10.2016

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