ANÁLISE
1.O que vai fazer a Europa perante o Brexit? Ontem foi ainda o dia das reacções a quente e no formato habitual. Toda a gente lamenta, toda a gente considera que foi uma grande perda para a Europa, toda a gente reafirma a sua vontade de prosseguir a integração europeia, agora com um novo e urgente impulso. Basta, no entanto, prestar alguma atenção para perceber como esse desejo sincero de não destruir uma realidade extraordinária que garantiu à Europa a paz e a prosperidade, está muito longe de uma ideia conjunta, viável, realista e, sobretudo, que consiga ser percebida pelos europeus. Ninguém estava preparado para o resultado do referendo britânico. O que, em si mesmo, causa alguma perplexidade. Entre a negação e o choque, os responsáveis europeus não se conseguiram entender sobre o que estava a acontecer no Reino Unido. Ontem, as reacções não evitaram a habitual ordem dispersa. Na fotografia ficaram apenas divergências e desorientação.
2.Já se sabia que tinha sido muito difícil (se não impossível) um entendimento entre Paris e Berlim para uma iniciativa comum destinada, em qualquer dos cenários, a retirar a Europa do seu torpor. O euro foi o grande obstáculo para esse entendimento, e o euro é aquilo que ainda resta de mais forte no coração da Europa. A reacção da chanceler alemã, pedindo calma e tempo, não dá qualquer indício do que tenciona fazer o que, só por isso, é inquietante. François Hollande carregou nas tintas. Admitiu que a saída britânica foi um “choque explosivo” e alertou para o que em seu entender é primordial: a economia e a necessidade de recentrar a Europa “no essencial”. “A Europa não pode manter-se como antes, perante um perigo imenso dos extremismos e dos populismos”, ignorando a desconfiança dos cidadãos. O que é essencial ficou por esclarecer. Estendeu a mão ao Reino Unido, lembrando que é um velho parceiro da França no que toca a defesa e à segurança.
Ontem, o "Handelsblatt", jornal económico de referência, escrevia que “ a decisão britânica assinala o dia mais negro da história da União Europeia”. Sven Afhuppe lembrava as responsabilidades da chanceler para salvar o projecto europeu e para travar a ascensão, também na Alemanha, da extrema-direita nacionalista. Os europeus estão fartos da “burocracia e da arrogância de Bruxelas”. “Estão descontentes”. Por isso, concluía, “maior integração não pode ser a resposta a esta crise, mesmo que alguns políticos a queiram”. Mero bom senso. Desta vez, pouca gente se atreveu a responder com “mais Europa”. A chanceler convocou para Berlim, segunda-feira de manhã (antes do Conselho Europeu), o Presidente francês, o primeiro-ministro italiano e Donald Tusk. Esqueceu-se de Jean-Claude Juncker, o que é manifestamente uma novidade. Justificou esse encontro dizendo que a Alemanha “tem um interesse particular e uma responsabilidade particular em garantir que a unificação europeia continue.” Há um confronto indisfarçável entre o presidente do Conselho Europeu e o presidente da Comissão sobre como lidar com a saída britânica. Juncker quer que Londres accione depressa o Artigo 50 do Tratado de Lisboa, quer separar a negociação em duas etapas (primeiro sai, depois negoceia), quer que tudo se faça rapidamente. Tusk defende que é o Conselho Europeu quem tem de negociar, e não a Comissão, inclinando-se para um mero acordo político que não se sabe exactamente o que é. De que lado está a chanceler? A bola está nas suas mãos, porque toda a gente olha para ela. A saída do Reino Unido tem um efeito imediato: torna a hegemonia alemã ainda mais visível.
3.Outro sinal de que não há grande esperança numa resposta de quem percebeu a lição, foi a reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros e dos Assuntos Europeu no Luxemburgo. Os ministros francês e alemão estiveram presentes. As divisões também estiveram . “Respeitamos, mas lamentamos”. Todos quiseram tirar carga dramática a uma situação que não podia ser mais dramática. Acreditam que podem colocar em cima da mesa uma visão global da Europa, “numa atitude ofensiva”, disse ao PÚBLICO uma fonte diplomática. É uma mensagem ambivalente que se pode resumir assim: “É um choque mas podemos tirar partido dele”. Querem também pressionar Londres, ainda que de forma discreta, para que resolva depressa o assunto. Precisamente, o assunto acaba de tirar à União a segunda economia europeia, Exército europeu mais forte, uma força nuclear, uma diplomacia de primeira e um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU.Talvez a resposta não pudesse ser outra. O que se sabe em Bruxelas é que se mantêm divergências profundas nos três grandes trabalhos que a Europa tem pela frente: preservar o euro; desenvolver uma política de segurança e defesa; gerir a crise dos refugiados e dos imigrantes. Não há entendimento sobre estas três frentes. A Alemanha dá prioridade total à questão dos refugiados e imigrantes, aceita alguma coisa na defesa (sobretudo na segurança das fronteiras) e já disse que ia aumentar o orçamento para a Defesa, mas sobretudo “não quer mexer na questão do euro nem um milímetro”. Hollande, pelo contrário, quer uma resposta forte em matéria de defesa e segurança (sobre a qual discutiu com Merkel em Verdun), não gosta de falar muito de refugiados e contesta a forma como a crise do euro está a ser gerida. É possível ultrapassar esta distância? Ninguém verdadeiramente acredita.
4. A reunião dos quatro presidentes também não trouxe grande clarificação.Jean-Claude Juncker insiste numa resposta rápida. Curiosamente, em Londres, o novo poder conservador que ganhou o referendo, diz que não tem pressa (talvez nem tenha pensado a sério no assunto, como a campanha indiciou), quer adiar as coisas para Outubro, depois da mudança de Governo. Juncker (não está sozinho) defende este “tratamento de choque” convencido que só assim pode estancar o efeito dominó, acreditando que pode dissuadir outros países a não caírem na tentação da renegociação ou do referendo. Pura ilusão. A extrema-direita já começou a reclamar uma consulta popular (da Holanda à Dinamarca, passando pela França) e a sonhar com o seu próprio “exit”. Juncker, um veterano, não terá percebido que foi esta lógica do castigo ou da ameaça que afastou as elites políticas europeias dos respectivos povos, como ficou demonstrado no Reino Unido. Outra lição que não foi aprendida. São exemplos que cheguem para, num só dia, se compreender até onde vão as divisões na União Europeia, a falta de visão dos seus líderes, a distância a que as elites estão da realidade, e a perigosa ascensão dos nacionalismos. O contágio já não pode ser estancado com meia dúzia de ameaças. Na Suécia, na França, na Holanda e um pouco por toda a parte, há gente a beber champanhe e a esfregar as mãos de contente e há governos suficientemente frágeis para não conseguir travar a onda. O que os responsáveis europeus também não conseguiram perceber foi o efeito inevitável que as suas decisões têm na paisagem política europeia, com o colapso ou o enfraquecimento dos grandes partidos do centro. Hoje, a revolta contra o establishment é mais forte do que se suponha (basta olhar para o lado de lá do Atlântico), e a Europa é vista cada vez mais como uma coisa distante. Mas ontem a velha retórica sobre o caso excepcional de um país que foi sempre eurocéptico (o que não é exactamente verdade) foi também largamente enunciada. A realidade aponta em sentido contrário. O eurocepticismo já não é uma marca britânica e começa a ser um fenómeno geral. O medo da globalização, a desconfiança das decisões europeias, tomadas demasiado longe, a revolta contra os que vêm de fora, vistos como uma ameaça às vidas e as expectativas de muita gente, são um problema europeu.
Finalmente, uma outra reunião, convocada para Berlim pelo chefe da diplomacia alemã (social-democrata Franz-Walter Steinmeier), juntou os representantes dos seis países fundadores. Para quem já não se lembre, França, Alemanha, Itália, Bélgica, Luxemburgo e Holanda. A primeira pergunta é: para quê e a que propósito? Não há entre eles unanimidade sobre o futuro da Europa, e o que eles significaram está há muito ultrapassado pela nova realidade da Europa unificada e pela zona euro, que é comum a 19 países. Querem uma “cooperação estruturada” em matéria de defesa, prevista mas já esquecida no Tratado de Lisboa, que poderia fazer algum sentido embora não venha na melhor altura? Tentam encontrar uma fórmula alargada para disfarçar o desentendimento franco-alemão? Na reunião dos ministros no Luxemburgo, falou-se na importância de uma iniciativa na Defesa (sobre a qual Merkel e Hollande conversaram longamente em Verdun), porque os europeus são hoje particularmente sensíveis à necessidade de combater o terrorismo e olham com desconfiança para o que se passa a Leste. E também, valha a verdade, porque os Estados Unidos não vão ficar eternamente a garantir a segurança europeia. Federica Mogherini tratou de contrariar rapidamente a ideia com bons argumentos. Seria patético que a União Europeia tivesse uma iniciativa na Defesa quando o país com maior capacidade militar acaba de abandoná-la e quando estamos a meia dúzia de dias de uma cimeira da NATO. Mogherini, a quem o Conselho Europeu encomendou a revisão da Estratégia de Segurança europeia, já cumpriu a tarefa. Decidiu não a apresentar aos líderes, justamente porque não considera oportuna.
5. Falta dizer que a crise que a Europa enfrenta atinge hoje uma dimensão incalculável. O Reino Unido corre o risco de se transformar numa “Little England” caso a Escócia insista na independência. A Europa vive um dos momentos mais negros da sua história do pós-guerra, depois de décadas de paz e de prosperidade. Os seus líderes ainda podem evitar o abismo, mas já não terão muito tempo. Lá fora o mundo pasma-se com a capacidade de autodestruição de uma União que continua a ser rica, livre e socialmente justa. “Não quero dizer que o céu está a cair”, disse Nicholas Burns, antigo embaixador americano na NATO. Para acrescentar: “Com a combinação da agressão russa, a crise dos refugiados, a crise económica e agora o Brexit, este é o mais crítico momento da história da Europa, desde o fim da Guerra Fria”. Jan Techau, da Carnegie Europa, sublinhava que “a reputação da Europa lá fora sofreu um golpe massivo”. Cá dentro, a procura de uma resposta credível começa da pior forma. Espera-se de Merkel e dos outros líderes europeus que sejam mais responsáveis do que David Cameron. Não é pedir muito.
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