Há algo de masoquista num académico. Apanha tareia, e ainda quer mais. Cá estou eu a convidar mais cartas de simples munícipes da Pérola do Índico. Desta vez não vai ser porque ataquei uma autoridade eclesiástica e com ela toda a instituição que ele representa. Vai ser porque terei atacado um académico, o que na lógica municipal simples tem que significar que ataquei toda a instituição académica. Ontem participei em provas de agregação na faculdade de medicina da minha universidade na minha qualidade de membro do senado. A minha função era de ver que nada de anormal acontecia. As provas de agregação na minha universidade são as provas que habilitam a alguém a ser professor catedrático. Como não entendo nada de medicina (e as provas eram em ortopedia, cirurgia e urologia) fui lá com um misto de apreensão e ansiedade. Qual não foi o meu espanto, porém, quando ao longo das apresentações e dos debates que se seguiram me dei conta de ter entendido basicamente tudo o que lá foi dito e discutido. Como assim, perguntei a mim próprio.
A pergunta foi, na verdade, retórica. A ciência é diversa no que diz respeito aos elementos que compõem o conhecimento e é isso que determina a especialização. Mas a ciência bem feita tem uma base comum, nomeadamente a lógica (para simplificar as coisas). Já Gottlob Frege, um grande filósofo alemão, tinha dito isto. Não tive dificuldades em acompanhar o que os meus colegas da medicina estavam a dizer porque assentava na lógica para ganhar plausibilidade e inteligibilidade. A ciência é assim mesmo. No mundo. Não em alguns sectores da Pérola do Índico onde impera a ideia de que a base do conhecimento científico, o que confere plausibilidade e inteligibilidade ao que se diz, é o que sinto em relação à pessoa que fala, as minhas convicções políticas e como eu gostaria que o mundo fosse. É a partir desta base que analfabetos funcionais podem ganhar coragem para questionar as qualificações de alguém com créditos firmados na academia, o que obviamente não quer dizer que créditos firmados confiram infalibilidade a alguém. Só que é preciso muita imbecilidade para alguém questionar as qualificações (repito: qualificações, não o conteúdo do que a pessoa diz) de alguém que leu mais, escreveu mais, pesquisou mais, orientou mais trabalhos científicos e tem nível académico superior ao seu. Esta pode ir para a gaveta “arrogância”.
Pensei nisto ontem e hoje, especialmente hoje depois de ler uma entrevista concedida pelo cientista político João Pereira a uma das poucas-vergonhas que se chama jornal no nosso país, nomeadamente “A Verdade” (que tal como o “Pravda” – verdade em russo – da União Soviética com a verdade pouco tem a ver). Agora ataquei toda a imprensa moçambicana na lógica municipal simples! Gostaria de comentar esta entrevista como forma de ilustrar a unidade da ciência e os perigos a que ela está sujeita quando a promoção da imbecilidade pública pode transformar a intervenção académica em charlatanismo. Para os que não sabem ler bem: não estou a dizer que o que João Pereira disse é charlatanismo. Estou a dizer que sem as devidas interpelações críticas aquilo que ele disse pode deixar o campo da ciência e passar para o charlatanismo por conta das ovações dos imbecis. Não é preciso ter estudado ciência política para interpelar as suas declarações criticamente. A lógica é suficiente.
Começo por resumir o essencial do que ele diz nessa entrevista, depois vou apontar problemas simples de natureza lógica que deitam abaixo tudo quanto ele disse. Peço para que tenham em conta que estou a resumir o pensamento dele a partir duma entrevista feita por um jornal que tem muitas dificuldades em reportar claramente o que as pessoas dizem. O artigo em questão está escrito num Português intragável, o que piora as coisas. De qualquer maneira, o que o entrevistado defende é a ideia de que só um diálogo verdadeiro que culmine com a partilha do poder é que pode trazer a solução para a guerra. Tenho que abrir um parêntesis aqui para dizer que muita gente considera este tipo de conclusão informativa. Não é. O que é um diálogo verdadeiro? É um diálogo em que se fazem concessões pelo simples prazer de fazer concessões? É um diálogo em que o governo ou a Renamo fazem concessões no espírito do diálogo verdadeiro? No texto diz-se que o diálogo tem que ser “sem humilhação”, o que deixa pressupor que a ausência de humilhação seja um critério que define o diálogo verdadeiro. E lá vamos nós de novo com mais uma afirmação vaga. Isto é como astrologia. Toda a gente é livre de interpretar isso da maneira que mais lhe convém. Com ciência tem pouco ou quase nada a ver. Repito: não o que o entrevistado disse, mas o leitor que toma isto como conclusão sem a devida interpelação do que a sustenta. Fecho o parêntesis. Então qual é o argumento? O argumento consiste na proposição segundo a qual nem o governo, nem a Renamo estão em condições de fazer uma guerra prolongada, embora em caso de guerra a vantagem fosse para a Renamo porque conhece melhor o terreno, tem homens motivados, isto é lutam por uma causa (enquanto os membros das FDS estão lá porque querem ganhar dinheiro) e tem apoio popular. Acrescenta um elemento estranho que explica parcialmente porque há guerra no país, nomeadamente o facto de se oporem duas etnias (Makonde e Ndau), o que segundo ele é difícil, pois uma guerra com qualquer destas etnias não acaba. Esta é para a conversa das barracas lá no Museu, mas tenho a certeza que há gente que acredita religiosamente nisso.
Já vi gente a compartilhar a entrevista (foi assim que tive acesso a ela porque o meu masoquismo tem limites e não vai até ao ponto de me torturar a mim próprio procurando informação naquela desgraça de jornal). E há de certeza muitos que consideram estar perante verdades ou, no mínimo, comentários profundos sobre como pôr termo à guerra. Reparem que logo aqui há um erro lógico com consequências dramáticas para o próprio argumento, nomeadamente a ideia de que existe uma guerra em Moçambique à qual tem que se pôr termo. A questão não é retórica. Existe ameaça de guerra, mas não há guerra. Existem confrontos militares, mas não há guerra. Do ponto de vista político pode haver gente interessada em concluir que estamos em guerra. Quando houver guerra em Moçambique o governo vai declarar um estado de emergência, arrumar (ou internar) os membros da Renamo que representam o partido publicamente, suspender o estatuto de partido político, declarar uma mobilização, etc. Ainda não estamos aí e, por isso, só a simples sugestão de que aja guerra torna discutível todo o argumento. Porque encetar um “diálogo verdadeiro” para resolver um problema que não existe? Agora, isto não quer dizer que não aja um problema (uma crise política) que precisa de ser resolvido. Só que havendo essa crise por resolver, a solução pode ser a guerra. Logo, a pergunta que o nosso intelectual tem que responder não é “como resolver o problema da guerra?”, mas sim “porque a guerra não é a solução para a crise política?”. São coisas diferentes e isto só podem entender pessoas sérias que não analisam as coisas com base em emoções. Temos aqui um exemplo dramático, em minha opinião, da falácia da irrelevância. Perceber o que está em jogo aqui exige mais do que ter um diploma universitário. Exige sentido crítico e compromisso com os fundamentos básicos da ciência. E o Facebook não é o melhor lugar para aprender isso.
Mas há mais problemas com o argumento. O segundo é composto. Mistura duas falácias. Uma é a da circularidade que transforma uma premissa na conclusão e a outra é a do apelo a consequências. Vamos por partes. A circularidade consiste na ideia de que só um diálogo que culmine com a partilha do poder é que pode resolver o problema da guerra (vamos esquecer por momentos que este problema é falso). A partilha do poder é o que a Renamo quer, portanto o “diálogo verdadeiro” exigido pelo nosso cientista político é aquele em que a exigência duma das partes é transformada na solução do problema. Repito: há quem ache isto profundo. Eu não. Não faz sentido. O apelo às consequências está contido na ideia subjacente de que se não houver partilha do poder (este é, no fundo, o argumento) haverá uma guerra que nenhum dos dois vai ganhar, ou, a haver vencedor, será a Renamo porque está mais motivada e no passado não perdeu a guerra. Estou a conter-me para não insultar ninguém. Com análise isto tem pouco a ver. É uma ameaça mascarada de análise. Ou o governo partilha o poder ou haverá uma guerra que ele não vai ganhar.
E isto leva-me a uma outra falácia: a falácia da exclusão do meio-termo. O cenário desenhado pelo argumento em análise é dicotómico. Ou há guerra, ou há partilha do poder. Não vou levantar um problema para o qual tenho chamado atenção, a saber porque os cenários de paz e de guerra em Moçambique nunca consideram o que a Renamo deve fazer para que haja paz, mas se remete tudo ao governo. Não vou levantar esse problema. Levanto apenas o problema dos extremos propostos. Entre guerra e partilha do poder vai uma grande distância que passa por um período longo de instabilidade e incerteza política (a alternativa que pessoalmente iria propor ao governo como a melhor abordagem desta crise), por uma implosão da Renamo (que colocou todos os seus ovos na sobrevivência do seu líder como se a natureza obedecesse às ordens do Arcebispo reformado da Beira) até mesmo a uma conferência nacional (solução que também tenho preconizado) que pura e simplesmente manda a Renamo às favas. Esta opção é difícil de tragar porque há uma enorme fixação no poderio militar da Renamo, uma das lendas mais ridículas que circulam no imaginário da Pérola do Índico. Como sempre, confunde-se disponibilidade para destruir, tirar vidas e falta de escrúpulos com capacidade militar. Este problema é particularmente agudo quando se olha para a forma como o nosso cientista político avalia as opções das duas partes. Segundo a avaliação que faz, uma guerra implica investimentos que o governo não pode fazer sem criar lacunas noutros sectores que igualmente precisam de atenção. Bom, depende. A opção “fazer guerra” não implica necessariamente montar uma máquina para acabar com a Renamo. Nenhum militar sério iria fazer isso (aliás, mesmo uma potência militar como os EUA já se deu conta disso nas suas várias aventuras pelo mundo). Existe uma opção mais simples (e que funcionou perfeitamente em 2014) que é simplesmente de asfixiar a Renamo militar. Essa opção é que produziu a disponibilidade do líder da Renamo para participar nas eleições. Bem aplicada agora iria enterrar este partido como força política a médio prazo.
Enfim, podia pegar em mais falácias contidas na entrevista (repito: não sei se foi bem reproduzida porque o jornal é de muito má qualidade) para mostrar porque é perigoso este nivelamento por baixo promovido por pessoas que pensam que ter diploma universitário, ou saber compor frases, é tudo quanto é necessário para participar no debate público de ideias. Não é. Ciência séria não se faz na base de afirmações bombásticas sancionadas apenas pela nossa intuição ideológica e legitimadas pelos nossos gostos particulares. É pensar séria e profundamente. E o nosso país precisa disso. Não vamos resolver nenhum dos nossos problemas com o nível de debate que a imbecilidade assumida tenta promover. Ser munícipe simples é bom porque funciona na base do apelo à misericórdia (outra falácia!), mas até chegar ao nível de raciocínio que permite justificar os títulos académicos vai uma grande distância. Se tudo quanto fosse necessário para percebermos os nossos problemas e identificarmos as soluções fosse apenas que as intervenções fossem do nosso agrado (político e ideológico) não teríamos nenhum problema por resolver (ou se calhar sim).
Não brinquemos com coisas sérias. E valorizemos os diplomas que temos.
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