sábado, 13 de fevereiro de 2016

Brincar com brincadeiras


É o que se diz em Xai-Xai quando se quer dizer que alguém está a tratar assuntos sérios com ligeireza (kuteka ‘mabrincadeira’ u thlanga hi wona – pegar em brincadeiras e brincar com elas). Não me perguntem donde vem a expressão, nem se o pessoal que diz isso tem sentido de lógica. Foi, contudo, a primeira expressão que me ocorreu quando li, esta manhã, que a Pérola do Índico tem uma estratégia nacional para a prevenção de casamentos prematuros. Escondida nesse documento de 28 páginas há uma frase que dá conta de que há 10 anos que os índices estão a baixar, mas não encontro nada no documento que diga que a estratégia tem como objectivo acelerar a queda. Mas depois de se ver que a coisa é promovida pela UNICEF fica tudo claro. Esse pessoal tem muito tempo nas mãos. E vai nos enchendo de trabalho. É trabalho deles, como também se diz na minha língua materna.

O que me chamou mais atenção ainda nessa estratégia foi a linguagem utilizada, toda ela típica do discurso normativo da indústria de desenvolvimento que sistematicamente aborda as coisas da nossa vida como um problema a ser resolvido. E antes de ser apedrejado online: não sou a favor de casamentos prematuros e sou pela igualdade de oportunidades entre os sexos. Mas tenho problemas sérios com a elaboração de políticas de seja que natureza forem que dão a racionalidade por detrás da formulação dos problemas por adquirido. É preguiça de pensar. Mas é uma preguiça sintomática de muita coisa que não está bem e que tenho vindo a deplorar esta semana, sobretudo no que diz respeito a nossa própria responsabilidade como partes interessadas. Não nos faltam recursos para nos libertarmos destas amarras cognitivas. Há aí, por exemplo, uma socióloga nigeriana brilhante, Oyeronke Oyewumi, que tem uma excelente reflexão sobre a noção de gênero susceptível de enquadrar as preocupações que os casamentos prematuros nos criam muito melhor do que o discurso normativo da burocracia internacional.

O discurso normativo parte do princípio de que o gênero constitui um princípio regulador das relações de poder. Sendo assim, o que acontece às raparigas ou mulheres é visto quase sempre como uma manifestação da forma como a diferença biológica é usada para subordinar certos grupos na sociedade. Oyewumi não concorda com esta leitura. Ela diz que a leitura corresponde a uma perspectiva ocidental alicerçada em dois parâmetros, nomeadamente a separação entre o corpo e a alma (separação essa, a propósito, que é rejeitada pelo filósofo ganês, Kwasi Wiredu, numa excelente reflexão sobre a tradução de conceitos) e na superioridade do visual. Sobre o dualismo corpo e alma ela não diz nada que outros não disseram e que se reduz essencialmente à ideia de que o corpo é associado a certas funções biológicas que servem como critério de discriminação, enquanto a alma é vista como o quartel onde a razão acampou e é propriedade dos homens. A razão quando se aloja no corpo feminino está em parte incerta, por assim dizer. Sobre a supremacia do visual a ideia é de que a visão conduz sempre ao que parece óbvio e que depois é essencializado e serve de base para tudo. É assim, por exemplo, que nascem dicotomias problemáticas como homem/mulher, preto/branco, etc. Ela ainda acrescenta uma nota muito interessante quando diz que a noção de “visão do mundo” é ocidental; para a África o mais apropriado seria falar num “sentido do mundo”, pois é no sentido (no sentido de social) que se constrói o conhecimento no contexto das nossas culturas. Este é obviamente um ponto de vista que merece mais discussão.

A parte mais interessante da reflexão que Oyewumi faz diz respeito ao que ela considera serem os princípios reguladores das relações de poder. Para o caso Yoruba, seu grupo étnico de origem, ela diz que é a senioridade, não o gênero. É difícil aceitar isto para muitos de nós que fomos socializados numa cultura cristã, ou islâmica, que enfatiza a prioridade destas distinções de gênero. É engraçado, só para dar um exemplo, que muitos livros de missionários que têm traduções de provérbios xangan traduzem “pessoa” (munhu) por “homem”, introduzindo sorrateiramente distinções que, no fundo, não existem necessariamente ou se existem são feitas de acordo com outros critérios. O papel subalterno da mulher nas nossas sociedades não reflecte necessariamente uma atitude patriarcal natural dos “africanos”. Muitas vezes essa atitude patriarcal é uma reacção (problemática) das nossas comunidades a transformações estruturais introduzidas pelo contacto com o mundo, transformações essas que impõem essas distinções. Só para dar mais um exemplo. Existe a forte convicção de que Gaza é uma província machista que se farta. A forma como eu fui criado e educado (e esta foi a experiência de muitos dos meus amigos de Xai-Xai) deu pouco destaque às diferenças de gênero. Quando fui estudar fora do país um dos primeiros choques que tive foi constatar que jovens do sexo masculino desses países (Inglaterra, Alemanha) não sabiam fazer metade das coisas que eu sabia fazer no âmbito doméstico, nem achavam que fosse algo que lhes dissesse respeito. Não foi apenas o mérito dos meus pais, aliás em xangan a gente diz que as palmas da mão são minhocas (isto é, sem trabalho apodrecem) e isso vale para homem e mulher. Alguns desses jovens, assim que se tornaram “cooperantes” na nossa terra, passaram a acreditar que os africanos são machistas… Também é verdade, pelo bem da honestidade, que há muito xangan por aí que investe muita energia em desaprender tudo que os pais lhe ensinaram só para parecer mais “homem”.

O documento que relata a estratégia não procura nenhum sustento neste tipo de ideias. Expõe o problema numa perspectiva extremamente insensível aos critérios locais de diferenciação. Inevitavelmente, o problema dos casamentos prematuros acaba sendo o problema da pobreza e de práticas culturais problemáticas. A solução, como não podia deixar de ser, consiste em educar o povo através de campanhas de sensibilização, lutar contra a pobreza e, curiosamente, produzir mais dados sobre o fenómeno. Eu não tenho paciência para este tipo de pensamento. Irrita. O conhecimento científico é um recurso muito valioso para ser desperdiçado desta maneira. A questão não é se existe um conhecimento africano ou ocidental, mas sim o que fazemos com os recursos intelectuais que nos são proporcionados pelo conhecimento que vamos buscar na universidade. O desafio é de pensar. E a melhor maneira de pensar é começar por interpelar as bases sobre as quais aquilo que damos por adquirido assenta. É o que a nigeriana faz. Qual é o princípio regulador das relações de poder no nosso país? É o gênero? E se for, em que condições, como, onde e com que efeitos? Sei que me exponho a todo o tipo de críticas do pessoal que anda nas lides do gênero, mas o uso irreflectido de conceitos nunca foi aconselhável. Isto aplica-se ao conceito do gênero como também se aplica a todos os outros conceitos que cada vez mais pensam por nós, tipo democracia, corrupção, boa governação, liberdade de expressão e por aí fora. Acho muito triste que cada vez mais sejamos reduzidos ao estatuto de tambores de repercussão de significantes vazios.

Felizmente, encontro na música uma atitude mais crítica em relação aos empréstimos como revela esta belíssima composição de Bebe Manga, “Ami oh”, retrabalhada de forma brilhante por Manu Dibangu, Angelique Kidjou e Papa Wemba numa amálgama de ritmos, instrumentos, vozes, culturas, países que confundem todo o tipo de categorização estanque. Aqui não se brinca com brincadeiras... canta-se a sério!



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Comments
J.p. Paulo Traduzindo o último parágrafo professor se me permite. A lani aku tlanguiwe hi matlanguela, ku vuhmiwa hi ntiyisso. Abraço.
Emilio Meque Só quem é de Xai-xai conhece essa metáfora...
Elisio Macamo mas todos podem entender.
Emilio Meque Acho interessante esta reflexão...mas uma coisa me salta ao pensamento...estratégias a parte...práticas a parte...agora como é que estas duas coisas dialogam e o que resulta disso...
Alcídes André de Amaral Mas com a nuvem de relatorios, apoios que tem a cara do dolar... fica dificil! No fundo somos obrigados a confirmar... confirmar o que `e dado por adquirido! Dai entramos num duplo constragimento: ou seguimos as redeas pre-definidas ou de fome morremos. Sera?

Elisio Macamo há disso também, fazer o que os outros querem por conveniência. continua a ser preguiça..
Edgar Cubaliwa Ha um debate minimamente similar na vizinha África do Sul. Uma prefeita decretou o fornecimento de bolsas de estudos a meninas virgens. E como não podia ser diferente na era das liberdades sexuais, os gritos apareceram. Por ser um assunto tão internacionalizado, fui entrando em muitas páginas e comentários de mulheres europeias/brancas e algumas feministas brasileiras e seguidoras. Todas lamentanvam. Fui ver a nivel de Moçambique que a pagina do Mia Couto (não sei se ele é que gere) ergueu-se tambem um murro de lamentações: "em pleno seculo XXI!!!!". E em nenhum momento achei um questionamento situacional, que olhasse a realidade dentro dos sentidos de sua produção. Se é mau para Europa e a sua industria de valores universais, é mau para nós, se é bom, também é bom. Penso que no continente africano, o ocidente precisa de uma missa.
Elisio Macamo sim, há esta repetição acrítica de slógans que enjoa.

Fernanda Nene Zaqueu Ou por outra: Unga tlangui hi mabrincadeira! Pena não ter tido acesso a esse documento! Hiláriante a tua análise "à la mode xangan"!
Sergio Left Eye Puita É muita informação junta professor. A forma como é abordado o assunto dos casamentos prematuros nas zonas urbanas e suburbanas é diferente das zonas rurais, existe uma africa ocidentalizada e outra tradicional, ha choque de cultuas. Por um lado, influenciado pelo consumismo associado a um fraco poder de compra, por outro a rapaiga ainda é fonte de riqueza na familia associado a fenomenos como lobolo. Ex: Se a rapariga é engravidada obrigatoriamente deve passar a casa do rapaz.. O que esta em causa? questões economicas? Moral? Nossa cruz é vivermos entre alienação cultural e a tradição. VOLTO PROFESSOR!
Gabriel Muthisse Elisio Macamoeu venho insistindo num facto que contradiz o evangelho entusiasticamente pregado pelas organizações nacionais que tratam das questoes do género. Pregacao que encontra inspiração nas teses da indústria do desenvolvimento. O facto que venho repetindo é o seguinte: no contexto da sociedade tradicional em que nasci e fui primariamente socializado, nem a minha avó, nem a minha mãe foram, jamais, tratadas como escravas. Elas tinham um poder imenso dentro da casa, que ia desde a educação dos filhos até à tomada das principais decisões. Um Shangana ( Khambane) que se preza, nao anuncia nenhuma decisao importante sem conferenciar, sem obter o sentir da(s) esposa(s). E, normalmente, essas decisões reflectiam o que, em local próprio, a esposa teria aconselhado. E uma mulher Shangana (Khambana) que se preza sabe, sempre, levar a agua ao seu moinho. Com meiguice, com inteligência, com sedução e sem, nunca, contrariar em publico o seu marido. Vi isso acontecer em minha casa, nas casas dos meus tios, nas casas dos vizinhos e nas casas de amigos da minha familia. Uma decisao tomada contra o sentimento das mulheres da familia correria o risco de ser torpedeada. Alguns podem dizer que isso era ou é assim nas comunidades cristianizadas. Mas nao é assim. Existem ramos da minha familia que sao animistas ou pagãos. E mesmo aí assisti a grandes manifestações de poder das mulheres.
Gabriel Muthisse Em relação aos casamentos prematuros, julgo que haveria que indagar as razões sociológicas, antropológicas, historicas, demograficas, económicas e culturais desse fenômeno. É aí onde pode ser encontrada a racionalidade do fenómeno. Nao é, como a indústria de desenvolvimento (e as ONG's nacionais) nos ensina(m), uma simples questão de campanhas de sensibilização e de seminarios, com perdiems e tudo.

Peguemos as questoes economicas e demograficas. Há cerca de 100 a 150 anos atrás, com quantos anos casavam as europeias? Pois com menos de 15 anos. Há muitos casos de rainhas que casaram com menos de 15 anos. E porque isso acontecia? Simplesmente porque a esperança de vida das mulheres, nesse tempo na Europa, andava um pouco por cima dos 40 anos. É logico que o instinto de reproducao e sustentabilidade demográfica detetminava que as pessoas casassem e tivessem filhos cedo. Se as pessoas (em especial as mulheres) cssassem aos 30 anos como agora acontece, como iriam acompanhar o crescimento dos seus filhos, se a esperança de vida era de 43 ou 44 anos?

Qual é a esperança de vida em Africa (e Moçambique) hoje, sobretudo no campo? O que nos dizem os estudos económicos e demográficos a esse respeito? Nao tenho os números exactos, mas há uns cinco anos pouco ultrapassava os 40 anos. Os africanos têm racionalidade demográfica. E esta diz-lhes que devem começar a fazer fihos a tempo de os ver crescer. A tempo de acompanhar o início da capacidade de proverem pelo seu sustento.

Quando a esperança de vida, a educação, o nivel de vida melhorarem em África, este factor económico/demografico perderá relevância. Até lá, pouco irá mudar apesar das estratégias, dos seminários, das sensibilizacoes, dos cartazes e dos perdiem.
Certamente que os sociólogos, os antropólogos, os historiadores e outros especialistas podem trazer outras dimensões para este complexo fenómeno.
Devo, a terminar, dizer como Elisio, que sou por definicao e por propensao pessoal, contrário aos casamentos prematuros. Não vá o diabo tece-las..
Alcídes André de Amaral Sim. E o problem `e aquele de dar os problemas por isto `e como se os nossos problemas fosse "estes problemas" e a. solucao deles tambem sao aquelas pronto-a-vistir. E somos reduzidos a uno do tipo os "Shangana sao assim" e assim somos estupidamente generalizados. Porem, cabe a. nos interpelar perguntando quais mashanganas sao assim? Todos? Sera isso possivel? Mas generalizando torna facil o problema e facil soluciona-los mesmo sem.se interessar se se trata mesmo de um problema ou, se.for verdade, se este. problema esta bem abordado. Nao. Sabemos que sao problema e, de repente, sabemos quais sao as solucoes. E estes problemas, nao sao. como as minas, parecem nao acabar apesar de. tudo e.insistimos em derramar rios de. dinheiros em campanhas de. sensibilizacao. So. `E irritante!
Alcídes André de Amaral Lembro-me de um debate que a TVM organizou tratando sobre "Trafico de menores" e estava la a de sempre, UNICEF mais representantes do Governo. E estavam os cientistas e. os estiudiosos na area: sociologos, psicologos e meicos. Enquanto estes apelavam estudos empiricos sobre a. problematica... a Unicef Insistia na "Sensibilizacao das Comunidades" - pude notar como isso irritou o sociologo Carlos Serra! Bom, sao coisas... e veja, que. os membros do Governo seguiram a onda da famosa UNICEF nestas materias que envolvem criancas. Mas, no fundo, perbe-se esta posicao do Governo...
Enfim!
Alexandre Oliveira Professor! A questão de prematuridade do casamento depende da visao cultural. Aquilo que o outro diz que é prematuro para mim pode não ser. Então o que se está fazendo é imposição de visão de alguns a outro grupo. 
Há zonas em Moçambique em que uma menina de 17 anos já está na idade do casamento. Porque elas basta donzelarem ja estão prontas. Recordemos que nessas regiões e ou sociedades a primeira menstruação é sinal de ser mulher. Por isso imediatamente é levada para os ritos de iniciação. 
A visão do mundo ocidental ou urbana é responsável de matar alguns usos e costumes em nome do desenvolvimento humano. 
Por mim não vejo o porque é desencorajado o tal casamento prematuro. Mas nao estou a dizer que estou A favor. 
A forma e a constituição física de uma do campo e da cidade é Bem diferente.

Gabriel Muthisse Na minha terra, em Madzukane, la para a dedada 70, se uma moca ficasse atee aos 25 anos sem noivo e sem casar, perdia de vez a possibilidade de arranjar noivo. Era vista como bastante crescida, algo assim como possuída por espíritos maus. Os jovens casadoiros evitavam-nas como o Diabo da Cruz. A altura ideal para uma menina assegurar um casamento era entre os 18 e os 23 anos. Mais tarde que isto ja era perigosamente arriscado. E estou a falar de uma comunidade onde a valorização do homem e da mulher passava pelo casamento. Não casar-se era colocar-se aa margem da sociedade.

Dinis Miguel Machaul O problema é que a maioria de nós Africa is fazemos a analise da nossa cultura numa abordagem eurocentrista. Näo nos vemos Como actores da nossa cultura.

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