Omar Ribeiro Thomaz
Universidade Estadual de Campinas
RESUMO: Nos dezessete anos que se seguiram à independência, boa parte
da população moçambicana foi objeto de deslocamentos forçados, ora como
conseqüência de projetos específicos de desenvolvimento ou expedientes repressivos
levados a cabo pelo regime socialista, ora em função da cruel guerra
civil na qual mergulhou o país. Entre os projetos de desenvolvimento,
destacam-se as grandes empresas agrícolas que tinham como propósito concentrar
a população camponesa do país, ou mesmo operações de deportação
massiva de indivíduos classificados como “improdutivos” para regiões longínquas,
onde deveriam transformar-se em mão-de-obra rural; milhares de
indivíduos foram ainda objeto de expedientes repressivos, os quais se traduziram
nos “campos de reeducação” ou em campos de prisioneiros políticos,
para onde eram enviados aqueles considerados inimigos do processo revolucionário
em curso. Por fim, o “rapto” foi freqüentemente utilizado pela
Renamo, movimento que se opunha ao regime socialista do partido Frelimo,
e mesmo pelo exército governamental para engajar jovens do conflito
bélico. A experiência de desterritorialização acompanha assim a memória de
parte significativa da população moçambicana. Neste artigo sugerimos que
tal experiência é percebida por aqueles que a viveram, particularmente no
sul de Moçambique, como parte de um processo histórico mais longo que
tem raízes nos conflitos que assolaram a região entre meados e fim do século
XIX. Por outro lado, rapto e deportação são interpretados como mecanismos
próprios de construção, pacificação e até mesmo eliminação daqueles
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indivíduos classificados como “inimigos”, e que caracteriza a dinâmica social
do sul de Moçambique.
PALAVRAS-CHAVE: Moçambique, campos, revolução, socialismo e póssocialismo.
A “Operação Limpeza”
No dia 7 de novembro de 1974, foi desencadeada pela Frente de Libertação
de Moçambique (Frelimo), em conjunto com as forças portuguesas,
a então denominada Operação Limpeza.
1 Grupos de militares bloquearam
a então Rua Araújo e outras ruas, becos e praças do centro de
Lourenço Marques, hoje em dia Maputo, com o propósito de deter “agitadores
e marginais”, afetando sobretudo as trabalhadoras do sexo que
atuavam na região.2
Ao final da operação, foram detidos 284 indivíduos,
dos quais 192 eram mulheres e 92 homens; das 192 mulheres, 50 foram
postas em liberdade e 142 foram transportadas em autocarros para destino
não revelado sob escolta do Exército Popular de Libertação de
Moçambique. Dos 92 homens, 42 foram postos em liberdade e os demais
ficaram detidos na capital.3
A esmagadora maioria das mulheres
detidas, soube-se depois, foram enviadas para os campos de reeducação,
localizados em regiões distantes da capital do país.
Desde os primórdios de Lourenço Marques, a Rua Araújo, antiga Rua
dos Mercadores, na baixa da cidade, era conhecida como centro da
boemia e das casas de tolerância. Nas primeiras décadas do século XX, e
em meio ao processo de higienização e disciplinamento da cidade colonial,
prostitutas negras e mulatas foram obrigadas a restringir seus servi-
ços aos subúrbios de Lourenço Marques, enquanto prostitutas francesas,
espanholas, portuguesas, inglesas e alemãs pareciam garantir aos
abastados colonos um encontro com a civilização européia (Zamparoni,
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1998, p. 354 e seguintes). Já pelos anos 50 e 60, e seguindo uma maior
diversificação do tecido urbano e social laurentino, prostitutas brancas
passam a disputar com negras e mulatas uma clientela diversificada de
brancos das mais diversas origens – os “naturais” (brancos da terra), os
portugueses ali estabelecidos, os sul-africanos que procuravam em Lourenço
Marques a permissividade duramente castigada pelo recém-instalado
regime do apartheid, marinheiros de distintas nacionalidades e, em
número cada vez maior a partir de meados da década de 1960, os soldados
ali deslocados em função da “guerra colonial”.
Não deixa de ser significativo que uma das primeiras medidas
implementadas pelo governo de transição, já sob a evidente batuta da
Frelimo, tenha sido o cerco à prostituição e a atividades associadas à vida
boêmia. Tratava-se do anúncio do caráter moral da revolução em curso:
homens e mulheres deveriam ser trabalhadores exemplares, e a constru-
ção do socialismo passaria pela necessária eliminação dos inimigos e pela
superação de comportamentos associados aos vícios do colonialismo e
do capitalismo. Os guerrilheiros da Frelimo, na altura em via de se transformarem
em membros de um aparato militar nacional, haviam entrado
na cosmopolita e agitada cidade de Lourenço Marques fazia pouco
tempo, e sua ação traduzia o firme propósito dos novos dirigentes de
livrar a sociedade moçambicana de mazelas associadas ao mundo colonial,
burguês e capitalista, rumo à construção do Homem Novo, que
passava necessariamente por um processo de “reeducação”, no interior
do qual os indivíduos seriam introduzidos numa nova ordem.4
Trabalho
disciplinado, despojamento material, superação de antigas lealdades
(étnicas, religiosas, de classe, de raça, regionais) e comportamento moral
inatacável passaram a fazer parte deste ideal de Homem Novo, no
qual todo o moçambicano deveria se transformar.
Nos anos que se seguiram a independência, a idéia da construção do
Homem Novo passou a estar diretamente conectada a territórios excep-
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cionais que eventualmente acabaram corporificando a idéia de “campo”.
Para os campos de reeducação iriam todos aqueles que, de uma forma
ou outra, traziam consigo ou em si elementos da velha ordem que se
desejava eliminar – régulos (autoridades tradicionais), feiticeiros, “comprometidos”
(indivíduos sobre quem pesava a suspeita de algum tipo de
compromisso com a antiga ordem colonial), prostitutas; para os campos
de trabalho, todos os que deveriam passar por uma ressocialização
marcada pelo trabalho em grandes campos de cultivo (machambas): sabotadores,
inimigos, vadios. Em ambos os casos, estavam previstos, e
foram realizados, cursos intensivos de “marxismo-leninismo”. Para os
distantes campos do Niassa, os inimigos ou a maioria daqueles que, em
1983, foram vítimas da Operação Produção – da qual falaremos mais
adiante. E, por fim, a esmagadora maioria da população deveria ser concentrada
em grandes machambas, ora organizadas não segundo parâ-
metros “tradicionais”, mas a partir de uma cuidadosa análise “científica”
da realidade camponesa.
O processo que presidiu a construção e o funcionamento destes campos,
que existiram em Moçambique de 1975 até meados da década de
1980, quando a guerra se alastrou pelo país e inviabilizou sua existência,
constituem ainda um desafio para cientistas sociais e historiadores.
O propósito deste artigo é: (1) realizar uma primeira aproximação à
dimensão e ao impacto dos campos na história recente de Moçambique;
(2) estabelecer uma relação entre a experiência das distintas formas
de desterritorialização forçada promovidas quer pelo Estado da Frelimo
– na forma de deportações massivas aos campos de reeducação ou aos
campos de trabalho e colonização – e a experiência do rapto, recorrente
ao longo da guerra civil e geralmente associada à atuação do grupo antagonista,
a Renamo, mas freqüentemente promovida pelo próprio Estado;
(3) dotar as experiências de desterritorialização forçada de profundidade
histórica, fazendo justiça aos depoimentos que as associam ao
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chibalo – trabalho forçado – ou ao trabalho escravo; (4) apontar para
um questionamento das interpretações anteriores existentes sobre a formação
do Estado moçambicano entre o período colonial e o revolucionário,
procurando encará-lo em sua especificidade histórica: um Estado
que se quer forte mas que o é na medida em que é fraco e, portanto,
interage dinamicamente com as condicionantes locais de expressão do
poder e da dominação, particularmente com elementos de ordem cosmológica,
tais como a percepção dos inimigos, que devem ora ser pacificados,
ora ser eliminados.
Nashingwea5
Em inflamado discurso, Samora Machel recupera a experiência de
Nashingwea na formação de um conjunto de práticas e idéias que marcariam
os primeiros anos de Moçambique como país independente:
Política e militarmente foi forjada a unidade, a partir de um pensamento
comum, consciência patriótica e de classe. Entramos em Nashingwea como
Macondes, Macuas, Nianjas, Nyngues, Manicas, Shanganas, Ajauas,
Rongas, Senas; saímos moçambicanos. Entramos como negros, brancos,
mistos, indianos; saímos moçambicanos. Quando chegamos, trazemos
nossos vícios e defeitos, egoísmo, liberalismo, elitismo. Nós destruímos
estes valores negativos e reacionários. Nós aprendemos a incorporar os
hábitos e os comportamentos de um militante da Frelimo. Quando entramos,
temos uma visão limitada, pois conhecemos apenas nossa região.
Lá, aprendemos a escala do nosso país e os valores revolucionários. Chegamos
supersticiosos; no confronto entre a superstição e ciência, adquirimos
o ponto de vista científico. Nós éramos desorganizados, suscetíveis ao rumor
e à intriga, à corrupção, incapazes de analisar e interpretar os fenôme-
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nos. Lá aprendemos a viver de forma organizada, a interpretar corretamente
a realidade e a agir. Com freqüência chegamos motivados só pelo ressentimento
e ódio com relação ao opressor; saímos com uma clara definição do
inimigo. É por isso que dizemos que Nashingwea foi o laboratório onde
forjamos os moçambicanos. (Samora Machel, discurso realizado em Maputo
no dia 5 de novembro de 1981).6
Se a primeira pergunta que nos orienta gira em torno do porquê da
opção pelo “campo” como lócus privilegiado de repressão, disciplinamento
e, particularmente, formação de um determinado ideal de superação
em Moçambique, nos colocamos diante da necessidade de investigar
a tensão entre a história singular da Frelimo, da guerra de
libertação e da opção socialista neste país e a construção de um aparato
institucional que acompanhou processos revolucionários alhures – na
União Soviética, na China e no Sudeste Asiático, na Europa Oriental e
em Cuba.7
Nashingwea constituiu uma fonte de inspiração para os acontecimentos
ulteriores à independência de Moçambique, particularmente no que
diz respeito à construção das machambas comunais. Quando quer que
se mencione o ideal de auto-superação e de transformação pelo trabalho
que caracterizou esse período pós-revolucionário, é Nashingwea, campo
de treinamento estabelecido na Tanzânia nos anos 60, que surge uma
e outra vez na memória dos revolucionários. Tratava-se de um campo
de treinamento militar, mas muito mais do que isso: constituía a materialização
de um ideal igualitário, expresso em rituais de passagem e no
dia-a-dia do trabalho na machamba, nos trabalhos de manutenção do
campo e no treinamento militar. Todos os que se dirigiam a Nashingwea
deveriam passar por um tipo de ritual em que, numa espécie de catarse
coletiva, narravam à coletividade o momento em que tinham alcançado
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a consciência da natureza da opressão colonial, como sujeitos ou objetos
da exploração.8
Concomitantemente, deveriam falar de sua terra
de origem, de seus costumes, no sentido de construir uma identidade
coletiva que deveria extrapolar os limites da “aldeia”. Colocava-se à prova
o desejo de deixar um determinado mundo para trás e embarcar
na construção do Homem Novo, desafio que se reproduzia cotidianamente
na machamba, na limpeza das instalações, no treinamento militar,
no comportamento moral. Um laboratório do que deveria ser o
porvir de Moçambique.9
O depoimento de uma moçambicana branca que, voluntariamente,
foi à Nashingwea é esclarecedor:
Há anos que fazia parte do grupo de moçambicanos que, do exílio, militá-
vamos pela independência do nosso país. Passei por Portugal, pela Argélia,
pela França e, por fim, consegui exílio político na Suécia. Cada uma destas
passagens era difícil, pois sobre os brancos pesava constantemente a desconfiança
de sermos informantes da PIDE, de não sermos realmente
moçambicanos. Na Suécia, e após estudar o idioma com uma bolsa do
governo sueco, consegui ingressar na faculdade de filosofia – isso quando
já tinha passado o 25 de abril em Portugal, e quando era evidente que caminhávamos
para a independência nacional. Foi então que o presidente
Samora me chamou para Nashingwea – e não se recusava um chamado do
Samora. (...) Fui para o setor feminino de Nashingwea. Eu era a única branca
em meio a milhares de negras. Pensava que ali faria apenas treinamento
militar para ajudar o meu país na revolução. Mas não, grande parte do
tempo era dedicado à machamba. E para mim ficavam as tarefas mais duras
do campo: eu tinha que limpar todas as latrinas, porque era branca.
Às vezes, me desesperava. Logo me acalmava, e pensava que era o que tinha
que fazer para provar que era realmente moçambicana.
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Foi com base na experiência de Nashingwea, bem como com referências
às ujumaa da Tanzânia de Julius Neyrere, que a Frelimo avançava
e criava “zonas libertadas” e alcançou, por fim, todo o território nacional.10
Malyn Newitt lembra que, logo no início da luta armada, quando
a Frelimo controlava apenas zonas do território maconde e pequenos
territórios no interior do Niassa – o que reunia uma população de cerca
de 200 mil indivíduos –, os camponeses começaram a ser concentrados
em aldeias comunais para “efeitos de proteção”, ao tempo em que eram
criadas cooperativas de produção e comercialização e montaram-se campanhas
de educação e saúde (Newitt, 1997, p. 454).
Mas os altos quadros da Frelimo faziam parte de um amplo circuito
internacional de indivíduos de diferentes países do mundo associados a
distintas experiências revolucionárias. Parte deles passou por centros
como Paris ou Roma, e ali, bem como em diversas outras metrópoles
ocidentais, narrativas em torno da virtude dos campos em países socialistas
eram propagadas por certos setores da esquerda ocidental. Outros
foram treinados na Argélia, antes de se dirigirem para a Tanzânia, ou
visitaram países socialistas controlados por um regime de partido único.
Fica, assim, o desafio de compreender a construção de um modelo em
torno do campo a partir de múltiplas influências e referências: de um
lado, a experiência peculiar da Frelimo em Nashingwea; de outro, um
universo de circulação internacional que acabava por conectar a excepcionalidade
territorial do “campo” a uma espécie de “necessidade” colocada
pela própria experiência revolucionária.11
As machambas comunais, institucionalizadas nos anos que sucederam
imediatamente a independência, tinham como propósito evidente
promover uma sorte de modernização do país e de suas gentes.12 Suas
fontes de inspiração encontram-se em Nashingwea e em sua reprodu-
ção nas zonas libertadas ao longo da guerra de independência. Não é
pouco relevante que, aos olhos de parte da população rural concentra-
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das pela Frelimo nas novas unidades produtivas, as machambas comunais
em muito se aproximavam dos aldeamentos promovidos pelos portugueses
nos últimos anos de sua presença em Moçambique. Sob controle do
exército colonial, os aldeamentos pretendiam não apenas controlar a
população camponesa e evitar seu contato com os guerrilheiros da
Frelimo, mas também materializar um imenso esforço de propaganda
em torno da melhoria das condições de vida da população rural
moçambicana levada a cabo pelo Estado colonial português em sua última
década de presença no continente africano. O trabalho de Thomas
H. Henriksen é claro ao contrapor as diretrizes postas em funcionamento
nas zonas libertadas da Frelimo aos dos aldeamentos portugueses
(Henriksen, 1983, pp. 143-170). No entanto, ambas as experiências
terão um profundo impacto nas populações tradicionais submetidas às
concentrações promovidas pelas machambas comunais, não apenas em
função de suas virtudes – oferta de assistência médica, educação, experi-
ência técnica e profissional aos agricultores etc. – mas, sobretudo, como
conseqüência de seu caráter compulsório, de sua natureza disciplinadora
e das inversões e impugnações que promove no que diz respeito ao universo
social e hierárquico tradicional. Some-se ainda a escolha da Frelimo
de, em algumas províncias, particularmente em Tete e no Niassa, construir
as novas machambas comunais nos mesmos territórios dos aldeamentos
portugueses (cf. Kaplan, 1984, p. 105; Borges Coelho, 1993).
Segundo Christian Geffray (1991), as machambas comunais estavam
diretamente associadas ao marxismo que informaria integralmente a
percepção do que deveria ser o desenvolvimento para o conjunto do
país.13 A dimensão ganha pela machambas comunais nas distintas regiões
foi bastante diferenciada, assim como seu impacto junto às populações
do país. Em 1982, das 1.352 machambas comunais, 543, ou seja,
40%, estavam concentradas na província de Cabo Delgado, ao passo
que 260 (19% do total) encontravam-se distribuídas por Nampula.
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A sulista província de Gaza possuía cerca de 139 machambas comunais,
um pouco mais de 10% do total. Das três províncias com maior número
de machambas comunais, somente duas – Cabo Delgado e Gaza –
concentraram parte substancial de sua população nestas unidades produtivas.
Em Cabo Delgado, cerca de 45% da população total da província
foi deslocada para as machambas, enquanto que em Gaza foram
concentradas 17% da população total, o que representava 30% de sua
população rural (Kaplan, 1984, p. 106). Segundo Geffray, no início dos
anos 80, o crescimento das machambas comunais foi considerável, assim
também como a constatação do seu fracasso, o que, por outra vez, acompanhava
a nacionalização territorial da guerra (Geffray, 1991, p. 21).
As machambas comunais deveriam dispor de todo um aparato institucional,
tais como hospital, escola, lojas do povo, cooperativa etc., mas
não só: seu funcionamento dependia diretamente dos Grupos
Dinamizadores (GDs) que, espalhados por todo o país, no campo e nas
cidades, deveriam servir como instrumento de socialização política das
massas, como elo de comunicação entre a população e as lideranças da
Frelimo, bem como de vigilância junto aos potencialmente sabotadores
funcionários do aparato estatal remanescentes da antiga burocracia colonial
(Serapião & El-Khawas, 1979, pp. 146-147). Os GDs, inicialmente
responsáveis por engajar a população no processo revolucioná-
rio, acabaram por ganhar um caráter cada vez mais associado à vigilância
e ao controle da população, particularmente no que diz respeito a sua
liberdade de circulação.14 Entre as lembranças mais freqüentes com relação
aos GDs por parte da população, a dificuldade para a obtenção
das “Guias de Marcha” são os mais freqüentes.15 Ainda segundo Geffray,
o projeto das machambas comunais e sua progressiva institucionalização
acabou por criar um verdadeiro sistema de vigilância da população, particularmente
a população rural (Geffray, 1991, p. 21).
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O trabalho comunitário em machambas não estava restrito apenas às
populações rurais. Muitos citadinos tiveram que, em determinados períodos,
dedicar-se ao trabalho na machamba, que podia localizar-se no
seu próprio bairro residencial ou a alguns quilômetros da cidade, para
onde se dirigiam em algum dia particular da semana a pé ou em caminhões
do Estado. Assim, outras coletividades também passaram pela
experiência de deslocamento espacial e, assim, a idéia do trabalho na
machamba comunal como parte de uma experiência associada ao período
socialista extrapola os grupos camponeses e é conseqüência direta de
um ideal de trabalho igualitário e disciplinado.16 O entusiasmo de John
Saul diante de um determinado tipo de interferência na vida urbana é
revelador do espírito de uma época:
Politização era uma prioridade igualmente premente nas áreas urbanas,
especialmente numa cidade tão grande como corrupta como Lourenço Marques.
Observando o processo pela primeira vez, não pude deixar de simpatizar
com os cambojanos no afã de evacuar sua capital após a libertação!
(Saul, 1979, pp. 86-87; grifos meus)17
Inimigos, suspeitos, improdutivos e vadios
Acompanhando a institucionalização das machambas comunais, os campos
de trabalho e reeducação constituem uma das marcas do que a população
denomina de “tempo Samora”.18 Se a lógica do trabalho e a ruptura
com lealdades anteriores instituem uma sorte de continuidade entre
as machambas comunais e os campos, estes últimos se caracterizam fundamentalmente
pelo caráter punitivo.19 Trata-se de espaços para onde
eram enviados os considerados “inimigos” ou potencialmente sabota-
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dores do novo projeto socialista. Uma imensa gama de indivíduos podia
ser objeto de um expediente punitivo que tinha como base a acusa-
ção e como conseqüência o confinamento, sem contudo qualquer tipo
de regulamentação ou sequer definição do procedimento institucional
que levava de um ao outro.
Embora a relação dos campos com o sistema legal moçambicano ainda
não tenha sido objeto de nenhum estudo sistemático, o trabalho recente
de João Carlos Trindade (2003) nos dá elementos suficientes para
percebermos a tentativa de instauração de um novo marco jurídico-legal,
uma institucionalidade basal que abarcasse o sistema de campos de
reclusão dos mais diferentes tipos. Segundo este autor, em meio a um
processo revolucionário que previa “a destruição de todos os vestígios
do colonialismo e do imperialismo, para a eliminação do sistema de exploração
do homem pelo homem, e para a edificação da base política,
material, ideológica, cultural e social da nova sociedade”20, não apenas
os sistemas de ensino ou saúde viram-se diretamente afetados pelas nacionalizações,
mas também o sistema jurídico, que procurou acompanhar
a transformação radical do aparelho do Estado. Nos meses seguintes
à independência, destaca-se o Decreto-Lei n. 21/75 (11 de outubro),
que criava o Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP), a cuja
direção são concedidos poderes excepcionais entre os quais o de “deter
pessoas, determinando-lhes o destino que achar mais conveniente, nomeadamente
o de as remeter à autoridade policial competente, aos tribunais,
ou aos campos de reeducação” (Trindade, 2003: 106), e o Decreto
n. 25/75 (18 de outubro), que transforma a Polícia Judiciária em
Polícia de Investigação Criminal e a integra nas estruturas do Ministé-
rio do Interior, com o propósito de “evitar a dispersão da autoridade e
garantir a coordenação e eficácia [...] de serviços públicos da mesma
natureza exercendo fins idênticos” (ibid., p. 106).
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Sabe-se que, em diferentes momentos, um complexo marco institucional
atuou no que diz respeito ao envio e manutenção dos indivíduos
nos campos. Complexo este marcado pela existência de cortes, pelos
ministérios da Justiça e do Interior, pelos Tribunais Revolucionários, pela
polícia secreta (SNASP), pelos Grupos de Vigilância Pública e pelos
Grupos Dinamizadores. Devemos estar atentos, contudo, ao caráter
eminentemente extrajudiciário associado à experiência dos campos,
muitas vezes qualificado como excessos ou mesmo desvios.
21
Parece ser que, nos primeiros anos que se seguiram à independência,
o que definiu a possibilidade de confinamento num campo de reeduca-
ção estava associado diretamente ao passado do indivíduo ou à lógica
inquisitorial da “acusação”22. Os “comprometidos”23 são um bom exemplo:
no início, tratava-se de indivíduos que, entusiastas da independência
ou da revolução, tinham alguma passagem comprometedora em sua
trajetória individual anterior e deviam, de bom grado, dirigir-se para a
“reeducação”. Tudo leva a crer, contudo, que as “acusações” foram responsáveis
por boa parte das deportações, e estavam diretamente associadas
ao potencial anti-revolucionário do indivíduo ou ao seu comportamento
moral. Assim, mulheres acusadas de prostituição e indivíduos
acusados de feitiçaria, vadiagem24, alcoolismo ou compromisso direto
com o antigo regime (o caso dos antigos régulos), podiam ser enviados
para os campos de trabalho e reeducação25. Acusados ou suspeitos que
possuíam nacionalidade portuguesa foram, geralmente, beneficiados
com a expulsão do país, o célebre “20/24”, objeto ainda de múltiplos
comentários nos dias atuais, ou seja, 20 quilos, 24 horas: acusado de
sabotagem ou atuação contra-revolucionária, o indivíduo deveria deixar
o país com no máximo 20 quilos de bagagem e em menos de 24 horas.
Aos moçambicanos, a acusação não deixava alternativa: levava diretamente
ao campo.
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Inimigos do projeto revolucionário foram diretamente enviados a
campos de reclusão no distante Niassa. É o caso de Joana Simeão e Uria
Simango26, capturados e presos ainda no período de transição. Ambos
tinham passagens pela Frelimo e, nos anos que antecederam o 25 de
abril de 1974 e nos meses que o sucederam, aproximaram-se de grupos
que pretendiam ser uma alternativa ao movimento revolucionário em
curso. Foram enviados para um campo de reeducação em outubro de
1975, com mais 3 mil indivíduos acusados de serem “inimigos”27, foram
fuzilados em data e circunstâncias jamais esclarecidas. O episódio
segue sendo objeto de especulações, comentários e rumores por parte
de diversos setores da população até os dias atuais. O que fizeram ao
longo do tempo que permaneceram no campo, o seu quotidiano, e o
que levou a sua execução sumária, não se sabe.
Estima-se que, em 1980, cerca de 10 mil indivíduos estariam
concentrados em 12 campos de reeducação (Rinehart, 1984, p. 65;
Tartter, 1984, p. 200; Howe, 1984, p. 283), número que cresceria nos
anos subseqüentes. Em duas ocasiões, foram anunciadas cerca de mil
detenções (Howe, 1984, p. 283), e em 1982, num expurgo realizado
junto aos órgãos policiais moçambicanos, anunciou-se a suspensão de
mais de 500 funcionários públicos e a necessidade de enviá-los para a
reeducação (Howe, 1984, p. 280). Os centros de ensino e a universidade
foram particularmente afetados pela crescente dureza do regime, e
muitos estudantes foram também enviados aos campos.28 Em 1983, a
Faculdade de Direito foi fechada (Trindade & Pedroso, 2003, p. 297) e
seis estudantes da Universidade Eduardo Mondlane foram condenados
por atividades subversivas a 48 chibatadas cada um e em seguida enviados
para a reeducação (Howe, 1984, p. 279). No início dos 80, praticamente
todos as Testemunhas de Jeová estavam concentrados na reeducação
(ibid.).29
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Mas será em 1983 que uma iniciativa alcunhada “Operação Produ-
ção” terá um imenso impacto junto à população, fazendo parte, até hoje,
de inúmeros relatos e rumores. Desencadeada logo a seguir às decisões
do IV Congresso da Frelimo (Maputo, 26 a 30 de abril de 1983), cujo
lema foi Defender a Pátria, Vencer o Subdesenvolvimento, Construir o Socialismo,
tratou-se de uma ação policial de natureza repressiva destinada
a enviar para zonas rurais com baixa densidade demográfica, em particular
ao Niassa, aqueles que, nas grandes cidades, “viviam na delinqüência,
no ócio, no parasitismo, na marginalidade, na vadiagem, na prostitui-
ção”. O propósito seria transformá-los em “elementos úteis, trabalhadores
dignos, cidadãos cumpridores dos seus deveres cívicos, responsáveis merecedores
de aceitação social ”.30 Os números de deportados para o Niassa oscilam
entre 50 mil (Tartter, 1984, p. 201) e 100 mil pessoas (Howe,
1984, p. 277). Lá, concentrados em campos, deveriam machambar ao
longo do dia e ter aulas de marxismo-leninismo no final da tarde.31
Ao longo da Operação Produção, as redadas poderiam ocorrer a qualquer
momento, quando as forças de segurança saíam pelas ruas e avenidas
de Maputo e da Beira e solicitavam aos transeuntes comprovantes
de trabalho, no caso dos homens, e de casamento ou trabalho, no caso
das mulheres. Quando não podiam comprovar sua atividade ou seu
status, eram confinados em caminhões, concentrados nas redondezas da
cidade e logo, à noite, enviados nos aviões das Linhas Aéreas de
Moçambique, ou em aviões militares, para o Niassa, ou em caminhões
para distintos campos espelhados pelo país. Longe de encontrarem um
campo organizado, eram entregues ao abandono, e indivíduos que muitas
vezes nunca tinham tido nenhum contato com a vida rural, eram
obrigados a fazer machamba, a construir sua palhota e as instalações comuns.32
A fuga era impossível ou levava à morte certa: o Niassa é uma
imensa e desabitada província, em grande parte coberta por selvas e ter-
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OMAR RIBEIRO THOMAZ. “ESCRAVOS SEM DONO”...
renos inóspitos. Na atualidade, o retorno daqueles que há mais de vinte
anos foram enviados para esta região ainda é notícia, e são inúmeras as
histórias sobre os que foram devorados por leões, mortos por picadas de
cobra ou vítimas da malária e outras doenças.
Dada a situação crescentemente precária do país, não se pode esperar
que as condições dos campos fossem minimamente adequadas. Às crises
na produção nos anos que sucederam a independência – que devem
ser atribuídas não apenas ao fracasso econômico das machambas comunais,
mas ao êxodo massivo dos portugueses e outros grupos associados
a determinadas atividades profissionais especializadas e mesmo ao
boicote e à sabotagem sistemática de antigos colonos – devem-se somar
as condições climáticas, secas e enchentes que se sucedem e, sobretudo,
a guerra que, inicialmente localizada, finalmente acaba por se espalhar
por todo o país. A hostilidade da Rodésia de Ian Smith, da África do Sul
do apartheid e de antigos colonos estabelecidos nestes países de fronteira
foi decisiva para a formação de grupos de rebeldes que, denominados
pelo regime de “bandidos armados”, viriam a dar origem à Renamo (Resistência
Nacional Moçambicana) e a uma guerra que, até os dias atuais,
resiste a interpretações gerais pelo caráter diverso e violento que assumiu
em todo o território nacional. Em meio à crise, podemos imaginar
não apenas o estado de abandono ao qual foram lançados os indivíduos
enviados para os campos de trabalho e reeducação, mas também o caos
que acompanhou o seu progressivo desmantelamento. Em entrevistas
realizadas em Inhambane, os últimos dias do “campo” foram narrados
com grande intensidade por aqueles que, subitamente, e após anos longe
de sua terra natal, viam-se obrigados a lançar-se num caminho que,
em meio à guerra, poderia durar meses.33
Uma mesma pergunta caberia aos que foram confinados nos campos,
os que garantiram o seu funcionamento e os habitantes de suas re-
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dondezas: qual a percepção que tinham do que realmente estaria acontecendo?
E aqui pretendemos estabelecer um diálogo com a percepção
de Günther Schlee sobre os conflitos numa região localizada entre a
Etiópia e a Somália (Schlee, 1998, p. 200). O etnólogo procura demonstrar
como um mesmo conflito admite múltiplas interpretações em fun-
ção do interlocutor e que, no limite, sua inteligibilidade local escapa
completamente à visão que dele têm as lideranças ou representantes do
Estado-nação. Assim, um conflito que surge associado à idéia de “movimento
de libertação nacional” pode traduzir uma outra conflitualidade
que ganha inteligibilidade numa lógica de linhageira, numa disputa envolvendo
terras ou água, em acusações de feitiçaria ou mesmo no simples
desejo de um indivíduo de se apropriar de bens alheios. Estamos
convictos de que muitos dos que foram enviados aos campos, na condi-
ção de acusado ou de funcionário, não compreendiam o que estava ocorrendo
como parte de um processo “revolucionário”, mas sim como algo
que fazia parte de ciclos de suspeitas e acusações cujo significado último
é absolutamente local. Da mesma perspectiva, interessa compreender a
forma como os camponeses da região onde eram instalados os campos
compreendiam aquela inédita situação.
Os rumores sobre aqueles que foram enviados aos campos, e os relatos
que pudemos recolher, salientam que se trata de pessoas marcadas,
que não conseguiram recuperar efetivamente a vida anterior a esta experiência
que passou a fazer parte de sua própria identidade social, algo
semelhante ao que Michael Pollak (1990) percebe em seu trabalho sobre
a memória dos que passaram pela a experiência concentracionária.
A reconstrução de sua identidade pessoal e social passa pela referência
ao campo: os que foram enviados para os campos destacaram-se da sociedade
e passaram a carregar uma marca corporal, pois para o campo
levaram apenas aquilo que lhes é irredutível: seu corpo biológico.34
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Histórias e rumores
Os campos de reeducação, de trabalho ou de prisioneiros já não existem
em Moçambique, assim como tampouco as antigas machambas comunais,
boa parte abandonada ou transformada em localidade. Assim,
uma aproximação de tipo etnográfica clássica é impossível. No entanto,
os campos se fazem presentes no quotidiano de seus habitantes na forma
de histórias, lembranças e, sobretudo, rumores. Ter passado por um
campo de reeducação, ter sido objeto da Operação Produção, constitui,
sem dúvida, uma marca. Sempre que manifestamos o interesse pelo assunto,
entre os mais distintos grupos sociais, a referência a fulano ou
sicrano que teria passado parte de sua vida confinado é constante. Todos
conhecem alguém que passou por um campo, e isso se expressa em sugestões
como “você deve falar com sicrano,ele esteve no Niassa, na época
da operação produção”; “você conhece fulana? Ela esteve na reeducação”.
Foi em Homoíne, capital do distrito do mesmo nome, na província
de Inhambane, que ficamos sabendo que para Chichinguire, onde se
estabeleceram oriundos da antiga luta de libertação nacional, foram enviados
indivíduos para a reeducação. E foi lá também que soubemos
que a localidade de Inhassune, a cerca de 50 quilômetros, fora fundada
a partir de remanescentes da Operação Produção que lá permaneceram.
Localizada entre Panda e Inharrime, num terreno claramente inóspito
para a agricultura familiar e portanto com baixa densidade populacional,
Inhassune se assemelha a inúmeras localidades de beira de estrada, com
seu mercado vibrante, algumas casas de alvenaria cercadas de palhotas,
alguns estabelecimentos para venda de bebidas, capulanas e outros produtos
como óleo, sal, açúcar e sabão, e muitos pontos vendendo milho,
arroz, amendoim, caju, mandioca, batata, peixe seco... Caminhar pelas
searas do mercado pode nos levar ainda a pontos mais escondidos, onde
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encontramos carne de caça – supostamente proibida, mas evidentemente
tolerada –, o marcado de bebidas alcoólicas tradicional ou mesmo produtos
usados por curandeiros e feiticeiros.
Quando chegamos a Inhassune, e sem saber ao certo como abordar a
origem da localidade, nos dirigimos à primeira barraquinha, logo à entrada
do que seria o mercado. Como é recorrente, fomos recebidos com
curiosa simpatia. Manifestei interesse por adquirir algumas capulanas,
sempre um bom pretexto para dar início a uma conversa, e perguntei à
senhora da barraquinha se ela era da região. Rapidamente ela me respondeu:
“não, vim para cá com a Operação Produção”. Mais uma vez
me deparei com a extraordinária disponibilidade para a narrativa por
parte dos moçambicanos. Ao contrário do risco de não conseguir informações
– risco para o qual fora advertido inúmeras vezes, quer por parte
de colegas que imaginam a dificuldade de ter acesso a um relato evidentemente
traumático, quer por parte das elites de Maputo, que
insistem na existência do silêncio em Moçambique – dona Esther, assim
se chamava, escancarou seu “antes” e seu “depois”, e se ofereceu para
me apresentar aos remanescentes da Operação Produção que permaneciam
em Inhassune.
Em outras ocasiões em Inhassune, pudemos nos reunir com Dona
Esther e sua filha – Dona Esther é uma espécie de líder local e a ela se
atribui a fundação da localidade e, sobretudo, do mercado que lhe dá
sentido hoje em dia – e com o senhor Lapso Navane (também fundador
do mercado), senhor Moisés, senhor Luis Magakagaka e senhor Carlos
Xintanica. Recuperarei aqui alguns termos das diversas conversas que
tive com eles, sempre numa das barraquinhas de dona Esther, com refrigerantes,
às vezes vinho ou cerveja, sanduíches de ovo, milho e batata
doce. Nesta apresentação não recuperarei a história de vida de cada um
deles, apenas algumas passagens que, na conversa coletiva gerava uma
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OMAR RIBEIRO THOMAZ. “ESCRAVOS SEM DONO”...
aprovação geral da platéia, comentários ou gestos de desgosto com rela-
ção aos agentes do governo, ou àqueles que eram responsabilizados por
seu engajamento na Operação Produção.
Dona Esther e senhor Moisés atribuíram à inveja o fato de terem
sido enviados à Inhassune. Dona Esther era uma próspera comerciante
na Maxixe, tinha várias barraquinhas no início dos anos 80, e tinha dois
filhos, embora não fosse casada. Segundo Dona Esther, o fato de ter
filhos sem estar casada foi utilizado por aqueles que tinham inveja de
sua prosperidade, ela foi acusada de prostituta. O pai dos seus filhos
assumiu apenas a paternidade do rapaz, e a menina, que na altura tinha
cerca de cinco anos, foi enviada num caminhão junto com a mãe a um
lugar inóspito, onde não havia nada além dos militares da Frelimo que
cercavam a zona, já naquele momento atacada constantemente pelos
chamados bandidos armados. Senhor Moisés era de uma localidade costeira
de Nhassoro, tinha três redes e seis empregados, duas mulheres e
dez filhos, e chegou mesmo a ser chefe de bairro: foi denunciado como
improdutivo por aqueles que se queriam fazer com sua redes e seus barcos,
e enviado para Inhassune. Não voltou a ver sua família. No momento,
não quer dinheiro, não quer nenhuma forma de indenização:
disse querer um agradecimento, pois vive como se tivesse uma ferida
aberta. Dona Esther afirmou mais de uma vez que quer reconhecimento:
um documento oficial, dizendo pelo que passou, pois não quer voltar
a ser raptada e deportada mais uma vez no futuro.
Senhor Carlos era de Mabote, região interior distante. De Mabote
foi para a Maxixe, onde havia um escritório da Wenela, empresa que
controlava o contrato dos mineiros que iam para a África do Sul. Foi
quando teve a necessidade de renovar seu registro civil, e pegou um barquinho
para ir à capital da província, Inhambane, e lá estava quando
teve início à Operação Produção. Os grupos dinamizadores e autoridades
locais comunicaram que todos os bairros deveriam enviar um nú-
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mero determinado de improdutivos. Como ele era de fora, matswa, um
estrangeiro, foi acusado de improdutivo. Se no caso de Dona Esther e
senhor Moisés a “inveja” foi a explicação, no caso de Carlos, o termo
usado foi “tribalismo”. Afinal, ele era um trabalhador, já havia ido à
África do Sul, e deixara mulher e filhos em Mabote – os quais acabaram
por ser seqüestrados e mortos pela Renamo. Segundo o senhor Moisés:
“fui raptado sem julgamento; e trabalhei como escravo durante anos,
sem esclarecimento e sem vencimento”. O Senhor Magakagaka também
atribuiu ao tribalismo seu rapto pelo governo. Curandeiro, ia e vinha
constantemente da África do Sul. Também estava fora de sua terra, de
suas alianças, de seus amigos, parentes e xarás. Bastava não ser conhecido
para ser suspeito, bastava ser suspeito para ser acusado.
O senhor Lapso possui uma deficiência visual provocada na guerra
do Ian Smith: combateu junto com a Frelimo no Chimoio e no
Zimbábue, e também estava em Inhambane quando foi denunciado.
De nada lhe serviu ter documentos militares, pois não possuía documentos
de trabalho: segundo Lapso, o governo ofendeu a liberdade e
a tranqüilidade.
Todos eles fizeram parte dos cerca de 375 indivíduos que foram concentrados
e permaneceram durante anos em Inhassune. Quando lá chegaram
não havia nada, dormiam ao relento, eram vigiados pelos militares
e mal tinham o que comer – viviam basicamente de folhas de cacana,
bananas e comiam cinzas. Tiveram que construir suas casas e começar a
plantar roça para comer, mas não só: Inhassune se transformou numa
verdadeira empresa estatal, que, nos seus termos, funcionava como no
tempo colonial, na base do chibalo, regime de semi-escravidão, na base
da bofetada e da ameaça constante dos militares e de alguns comandantes
cruéis. Chegaram a plantar algodão, milho, girassol, abóboras, mandioca,
feijão e batata, mas nada ficava com eles: os caminhões do Estado
vinham e levavam tudo. Segundo eles, muitos mulatos da Maxixe e de
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Inhambane também foram concentrados ali, mas todos morreram de
fome: os mulatos, ou mistos, constituem um grupo fundamentalmente
urbano, não possuindo nenhuma memória do trabalho na machamba.
As associações não eram apenas com o chibalo, e muitos falaram em
escravidão, mas de um tipo peculiar:
- Éramos como escravos...
- Escravos?
- É verdade. Pior que chibalo. Não sabíamos quem era o patrão. Escravo
tem dono, no chibalo tem patrão. Éramos escravos sem dono.
Muitos morreram nos ataques da Renamo. E então me lembrei da
história de Belinha, que me foi contada em Inhambane. A bela mulata
foi acusada de prostituição, e enviada para a reeducação, cerca de
Homoíne. Lá aprendeu a plantar e conseguiu sobreviver à fome, sendo
morta, após dez anos de confinamento, no massacre de Homoíne, responsável
pela morte de cerca de quinhentos indivíduos em apenas um
dia, em julho de 1987.
Assim, em Inhassune e Homoine voltei a me encontrar com histó-
rias de guerra, de deportações e seqüestros, que já havia escutado no
Chimoio e em Inhambane. Como a história do senhor Alberto, que foi
enviado com toda a família para o Niassa, onde permaneceu por quase
uma década, tendo que fugir quando a guerra tornou inviável a permanência
do campo. Ou a história de dona Madu, indiana que permaneceu
por três anos no mato raptada pelos bandidos armados, e conseguiu
escapar em meio a um bombardeio e voltou para a sua cidade com o
filho de um guerrilheiro.
Mas são muitas as histórias de raptos, deportações e seqüestros, geralmente
contadas com certa tranqüilidade, e diante de uma platéia que
acompanha com atenção a história. Uma profusão de narrativas que nega
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a imposição do silêncio, que parece vir das elites moçambicanas, ou
mesmo dos intelectuais, na forma de: “eles não vão contar”. Em
Moçambique nos deparamos com um cenário oposto ao de outros contextos
de pós-guerra: não há uma fala oficial, e a enunciação de um debate
público parece constituir uma ameaça de retorno à guerra. Não há
um comitê de verdade e reconciliação, ou uma associação dos antigos
deportados... Os sobreviventes ou voltaram para as suas aldeias e cidades,
ou permaneceram nos locais para onde foram levados, negando a
possibilidade de reatar o fio perdido de sua vida anterior. E aí, nos bairros,
nas localidades, nas vilas, encontramos tudo menos o silêncio. São
novamente as histórias de guerra que se impõem, numa naturalidade
desconcertante para o antropólogo. É quando percebemos que estamos
conversando com gente, que além de histórias para contar, parecem ser
portadores de outras histórias, as histórias de seus antepassados que, digase
de passagem, convivem com eles no presente, enviando sinais, exigindo
presentes, retribuições ou vinganças.
E aí raptos e seqüestros nos levam a experiências antigas, que passam
pela guerra do Gugunhana e pelos exércitos formados por cativos, ou
para a escravidão para as ilhas do Índico, que alcança a primeira década
do século XX; ou para as deportações em massa promovidas pelos colonizadores
portugueses, sedentos de terras para o estabelecimento de colonos
ou para empresas agrícolas; os mesmo colonizadores que faziam
uso do chibalo, ou trabalho forçado, lembrado por todos os meus
interlocutores como análogo ao trabalho exigido pela Frelimo.
A explicação última para o sofrimento de alguém, contudo, não se
esgota na atuação arbitrária do governante, seja ele o Gugunhana, o Estado
colonial ou o Estado da Frelimo, ou mesmo os guerrilheiros da
Renamo. São as disputas locais, que envolvem vivos e mortos, autóctones
e estrangeiros, ciclos de feitiçaria e conflitos ditos tribais, que fazem
eco aos desejos de um Estado central, que se apropria de formas institu-
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OMAR RIBEIRO THOMAZ. “ESCRAVOS SEM DONO”...
cionais normalmente associadas a estados totalitários, mas que encontra
sua força justamente na sua fraqueza, e na sua rendição às formas locais
de disputa e reprodução do poder.
Aceder a esta dinâmica exige atenção a estas histórias, muitas vezes
fragmentárias e expressas na forma de rumor. Nossa experiência no terreno
fez com que desconfiássemos de narrativas altamente estruturadas,
geralmente construídas tendo em vista o que o nosso interlocutor acredita
que queremos escutar, quase que seguindo um modelo e perseguindo
a revelação de uma tragédia pessoal. É na forma de conversas, histórias
fragmentárias e rumores que encontraremos peças preciosas a nos indicar
o funcionamento e a dinâmica dos campos. Rumores que nos indicam
as representações sobre as estruturas repressivas, sobre as transformações
pelas quais passou o país, sobre a natureza do socialismo e
sobre as relações entre indivíduos e famílias de diferentes estratos sociais
no interior dos campos. É no rumor, fragmentado, sem pretensão de
coerência, e sem o compromisso com a sedução do interlocutor – que
encontraremos um dos elementos centrais desencadeados pela instauração
dos campos: ciclos de vingança, suspeitas e acusações, ferramentas
continuamente presentes na tessitura da instabilidade e da insegurança
sentida aguda e cotidianamente por diversos grupos vulneráveis
em Moçambique.
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Notas
1 Nesse período, Moçambique estava sob o governo de transição, que tomara posse
no dia 20 de setembro de 1974, após semanas extremamente turbulentas. O governo
de transição contava com um alto-comissário português (Victor Crespo) e
com um primeiro-ministro de Frelimo (Joaquim Chissano). A independência política
de Moçambique com um governo da Frelimo foi no dia 25 de junho de 1975
(cf. Souto, 2007). 2 Jornal Notícias, Lourenço Marques, 08/11/1974, p. 14. 3 Jornal Notícias, Lourenço Marques, 09/11/1974, p. 5. 4 Sobre a concepção de “Homem Novo” em Moçambique, ver, entre outros, Geffray
(1991). 5 Os dois próximos itens deste artigo foram trabalhados da perspectiva da inserção
da experiência dos campos no universo da cooperação internacional em Thomaz
(2007). 6 Machel (1985, p. 196-197). 7 No momento está em curso um levantamento sistemático da bibliografia histórica
e sociológica existente sobre a experiência dos campos em diferentes países. Saliente-se,
contudo, que, com exceção da União Soviética e de alguns países da Europa
do Leste, em particular a Bulgária, a bibliografia é escassa. Chama atenção a bibliografia
de natureza “confessional”, particularmente para o Sudeste Asiático, com
pouco interesse para o tipo de trabalho que pretendemos realizar. Cf. Stien (1993);
Thanh (1994); Vu (1988). 8 São várias as referências a este momento quase que transcendental entre os que
passaram por Nashingwea (entrevistas pessoais). A partir do relato de Daniel
Mbanze, Vice Ministro do Interior no primeiro período pós-independência, Barry
Munslow afirma: “In the first Frelimo camp at Bagamoyo, Tanzania, endless
discussions took place. Each recruit spoke about his personal experience of colonial
oppression and exploitation in his home of origin, and also of the culture and
traditions of his people. In this way people were able to pool their knowledge and
gain an over-all view to fight in different parts of the country, then they had to
understand and win the support of the people wherever they were operating
(Munsolw, 1983, p. 88).
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9 Nashingwea não foi a única instituição vinculada aos movimentos de libertação
nacional moçambicanos, prematuramente reunidos sob a bandeira da Frelimo, instalada
na Tanzânia. A tendência socialista de Julius Nyerere foi particularmente
favorável à Frelimo, e permitiu o estabelecimento de outras organizações, das quais
destacamos o “Mozambique Institut”, em Dar es Salam, à espera de um estudo
detalhado, sobretudo em função dos conflitos internos da Frelimo, que ali encontraram
eco no final dos anos 1960 (cf. Munslow, 1988). 10 Sobre a ujamaa como projeto, ver Nyerere (1968, pp. 337 e seguintes). Sobre os
resultados produtivos da implantação da Ujamaa, ver Stein (1979). Devemos salientar
que a proposta de Nyerere opunha-se ao que o dirigente africano chamava
de “teologia do socialismo”, socialismo produto de uma “doutrina verdadeira”,
canônica. Da sua perspectiva, o socialismo deveria existir para além dos conceitos
marxistas-leninistas, e assim poder-se-ia buscar um “socialismo africano” que não
teria como ponto de partida a experiência européia. A idéia de um “socialismo
africano” de tipo “não-científico”, e que teria por base a experiência, história e
singularidades africanas, teria profundo impacto na Gana de Nkrumah, no Egito
de Nasser, e na Argélia, Guiné-Conacry, Somália, Madagascar, Tunísia e Mali.
Numa outra direção, Moçambique foi o primeiro país africano a afirmar sua
filiação ao marxismo-leninismo. Assim, devemos enfatizar que a experiência das
ujamaa na Tanzânia foi profundamente distinta daquela levada a cabo pela institucionalização
das machambas comunais em Moçambique (Serapião & El Khavas,
1979, pp. 138-139). Para o debate em torno do caráter “nacional” da experiência
socialista na Tanzânia, cf. Saul (1979). “It was in this training camp that Frelimo
first introduced collective production methods, and the army was to be at the
forefront of their later implementation in the liberated zones. The seeds of Mozambique’s
future progressive development strategy were to be found here. But
the importance of the camp was more than just this. As Samora Machel later commented:
‘When we arrived here in 1964, we came divided, and it was the unity
which we managed to obtain here that permitted us to win Mozambique’.”
(Munslow, 1983, p. 89). 11 Nas resoluções sobre a justiça da “Ofensiva Política e Organizacional Generalizada
na Frente da Produção”, por ocasião da 8a
sessão do Comitê Central da Frelimo,
reunida em Maputo em fevereiro de 1976, afirmam-se explicitamente três itens a
orientar a reestruturação jurídica do país: (a) as experiências da luta de libertação
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nacional; (b) as experiências da luta de classes; (c) as experiências revolucionárias
de outros povos (apud Trindade, 2003, p. 107). 12 Já em marcha nos anteriores à independência nas zonas liberadas, as machambas
comunais também ganham institucionalidade na “Ofensiva Política e Organizacional
Generalizada na Frente da Produção”. Entre as resoluções aprovadas, o
item sobre as aldeias comunais “estabelece um conjunto de princípios a respeitar
no processo de estruturação, estabelecimento, organização da produção e do trabalho,
bem como as condições a observar na (sua) implantação” (Trindade, 2003,
p. 107). 13 Geffray esteve, ao longo dos anos 80, envolvido num intenso debate sobre a guerra
em Moçambique, no qual este autor defendia fundamentalmente suas causas
internas (cf. Geffray, 1991). 14 É importante lembrar que, num primeiro momento, os GDs foram não só bem
recebidos, como interpretados como indispensáveis no interior de um projeto efetivamente
socialista que fosse capaz de prescindir da militarização e a burocratização.
Segundo Luís de Brito, os GDs foram responsáveis pelas primeiras experi-
ências de “participação popular” na vida política do país, sobretudo no que diz
respeito à libertação da palavra, em especial no período que vai de 1974 a 1979
(Brito, 181). O entusiasmo do intelectual canadense John Saul em sua experiência
em Moçambique no período que sucedeu a independência diante da atuação
dos GDs é reveladora deste estado de espírito (cf. Saul, 1979, p..85-86). 15 Para ir de uma localidade a outra, sair de qualquer cidade ou visitar um parente,
os indivíduos necessitavam de uma autorização especial, denominada de “guia de
marcha”. Sua obtenção dependia de uma solicitação ao GD, que podia demorar
vários dias ou semanas para concedê-lo. As associações entre os guias de marcha e
formas de controle de movimentação da população “indígena” ao longo de boa
parte do período colonial são constantes (entrevistas realizadas no Chimoio, em
1997, e em Inhambane, entre 2001 e 2004). 16 Em Inhambane, em pesquisa de campo realizada em diferentes períodos entre
2001 e 2004, indivíduos da coletividade indiana hindu, geralmente vinculados a
atividades comerciais, fizeram referências a períodos em que deviam dedicar um
ou dois dias da semana ao trabalho na machamba do Estado, para onde se dirigiam
em caminhões. Em Maputo, várias narrativas fazem referência ao trabalho
em machambas que, localizadas nos bairros de residência ou nos arredores da cida-
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OMAR RIBEIRO THOMAZ. “ESCRAVOS SEM DONO”...
de, estavam sob controle dos GDs. Negar-se a realizar este tipo de trabalho podia
ter várias conseqüências, da acusação de sabotagem ou de “inimigo do povo” às
chibatadas, prática colonial reintroduzida pelo regime no início dos anos 80.
A Lei nº 5/83 de 31 de março introduz a pena de chicotada para punir autores,
cúmplices ou encobridores de crimes graves consumados, frustrados ou tentados
(Trindade, 2003, p. 111). 17 Para Saul, e seguindo o pensamento das lideranças da Frelimo, particularmente
Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos, o campesinato deveria ser a força
motriz da revolução africana (Saul, 1979, pp. 313 e ss.). 18 A partir de diferentes pesquisas realizadas entre as regiões centro e sul do país,
procurei interpretar as narrativas em torno do “tempo” e das “transformações”
como representações coletivas cruciais para a compreensão de um sentido de pertença
(Thomaz, 2002). 19 Nos campos ou nas machambas comunais, os indivíduos deveriam “nascer de
novo”, por meio do trabalho disciplinado a partir de rigorosos princípios científicos
e pelo abandono de suas lealdades anteriores, familiares, religiosas, étnicas, de
classe etc. No caso das machambas comunais era decisivo, assim, afastar os camponeses
de suas terras tradicionais, geralmente ligada ao culto aos antepassados. 20 “Decisões do Conselho de Ministros” in Boletim da República, I Série, n. 15,
de 29 de julho de 1975 (apud Trindade, 2003, p. 97). 21 Ao contrário de um certo lugar comum existente entre certa intelectualidade de
“esquerda” que combina a idéia de “necessidade” com a complacência do “excesso”,
exploraremos a noção de campo como algo sistêmico de um certo tipo de regime
político. Procuramos escapar, assim, daquilo que Hannah Arendt percebe como
um “fascínio” pela idéia de “necessidade” como forma de explicar a arbitrariedade
(Arendt, 2004, p. 91). 22 As referências aos campos de reeducação aparecem aqui e acolá, em textos de diferentes
matizes ideológicos e na memória dos moçambicanos. O jornalista José Pinto
Sá foi responsável por uma reportagem que teve um impacto razoável em setores
da sociedade portuguesa. Recentemente, e na tentativa de recuperar o período
da mal denominada descolonização, temos a sistematização de uma certa memó-
ria por parte de indivíduos das forças armadas portuguesas (cf., entre outros,
Bernardo, 2003) e daqueles portugueses politicamente imbricados com o processo
político de transição (cf. Almeida Santos, 2006a e 2006b).
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23 Categoria vaga aplicada em diferentes circunstâncias e momentos. No início, vá-
rios intelectuais ou profissionais que teriam tido alguma sorte de intimidade com
o regime colonial foram classificados como “comprometidos” e deslocados por um
período determinado para a reeducação, geralmente em campos em províncias
distantes, onde deveriam machambar e ter aulas de marxismo-leninismo. Em outros
momentos, os acusados de serem comprometidos com o regime anterior, eram
obrigados a fazer um mea culpa público – que se aproximava, em grande medida,
aos rituais iniciáticos de Nashingwea – antes de serem enviados para a reeducação. 24 A categoria vadiagem inicialmente sugere a idéia de “vagabundagem” ou “desocupação”;
contudo, determinados comportamentos associados à sexualidade podem
enquadrar-se em língua portuguesa nesta categoria. 25 Curiosamente, membros das antigas “tropas negras” coloniais – um imenso contingente
africano integrado ao exército colonial – parecem não ter sido sistematicamente
enviados aos campos (ao contrário daqueles que teriam colaborado com
a antiga polícia política portuguesa). Em 2002 tivemos a oportunidade de realizar
uma longa entrevista com o senhor Jeremias, em Inhambane, antigo “tropa” português
que não foi submetido a nenhum tipo de confinamento, mas simplesmente
perdeu qualquer possibilidade de conseguir um emprego e foi “esquecido” no
subúrbio da cidade. Segundo João Paulo Borges Coelho, “estigmatizados por uma
nova sociedade politicamente muito coesa e definida, estes moçambicanos reintegraram-se,
silenciosamente, no tecido social da região ou atravessaram fronteiras
em busca de outros lugares” (Borges Coelho, 2003, p. 195). 26 O trabalho de Barnabé Lucas Ncomo (2004) constitui uma das poucas tentativas,
claramente ideológica e num contexto marcado por uma disputa surda não menos
ideológica, de enfrentar o desaparecimento de Uria Simango e de outros que, como
Joana Simeão e Lázaro Nkavandame, foram detidos ainda no período de transi-
ção e enviados para um campo de reclusão no Niassa. 27 A estimativa de 3 mil indivíduos é citada por Rinehart (1984, p. 61). 28 É John Saul novamente a celebrar a interferência do Estado revolucionário nas
instituições de ensino, particularmente na Universidade Eduardo Mondlane, nos
meses que sucedem a independência: “Even at the university – most hierarchical
and deeply colonized of inherited institucions – the ‘grupos’ iniciative was in train,
throwing up, in addition, a new kind of structure for the faculty boards. From
now on the latter are to be constituted by three representatives from the teaching
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faculty, three from the students, and three from the staff (typists, cleaners, etc.) –
the dean to be chosen, in turn, from that number. Seven years spent teaching in
an African university helped me to realize how startling a beginning it was” (Saul,
1979, p. 87; grifos meus). 29 Destaque-se que a Frelimo, como partido de vanguarda marxista-leninista, em
princípio não possuía boas relações com as lideranças de nenhuma das religiões
existentes no país. No entanto, as relações eram muito diferenciadas, e se a Igreja
Católica e seus quadros viram-se afetados pelas nacionalizações do ensino e da
saúde e foram sistematicamente acusados de colaboracionismo com o antigo regime,
as confissões protestantes e os muçulmanos vangloriaram-se muitas vezes de
suas predisposições anti-coloniais e anti-lusitanas. No caso dos muçulmanos, especula-se
inclusive sobre a simpatia de seus líderes para com Samora Machel e
sobre alguma medida de reciprocidade (cf. Macagno, 2004). Não há notícia, contudo,
de expurgos em função da fé religiosa, com exceção das Testemunhas de
Jeová, como conseqüência de sua recusa em prestar o serviço militar, jurar a bandeira
e gritar “viva a Frelimo”. 30 Preâmbulo da Lei n. 7/83 de 25 de dezembro de 1983 (apud Trindade, 2003,
p. 111). Curiosamente, João Carlos Trindade, fazendo referência à natureza que
estas e outras resoluções do Partido e do Estado, salienta que, apesar de suas “retas
intenções”, ter-se-ia produzido muitas “vítimas inocentes”, ao que supõe a existência
de “culpados” (cf. ibid.). 31 Dados obtidos a partir de entrevistas. 32 A idéia de “abandono” sugere, certamente, uma aproximação aos campos de trabalho
soviéticos – distintos dos campos de trabalho nazistas, caracterizados pelo
extermínio associado a uma lógica burocrática e rigorosa “organização” (cf. Arendt,
1990, p. 348). Recentemente, a jornalista Anne Applebaum insiste nos longos
períodos de absoluto caos e abandono que teriam caracterizado os gulags na União
Soviética (2004). 33 É impossível não pensarmos em A trégua de Primo Levi (1997), onde recupera o
dia-a-dia do “retorno” (como retornar para o que já não existe?) dos remanescentes
dos campos de concentração nos anos que sucederam a II Guerra. 34 O “campo”, a excepcionalidade que supõe, os mecanismos extrajudiciários que
definem seu caráter administrativo, constitui o espaço por excelência de uma rela-
ção quase que direta, sem mediação, entre o Estado e o indivíduo, despossuído de
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ABSTRACT: Through 17 years following independence, a great part of
Mozambique population was object of forced dislocations, either resulting
from the socialist regime specific developing projects or from repressive
deeds, either resulting from the cruel civil war. Among the developing
projects, there were large agriculture enterprises which aimed to concentrate
the rural population of the country, or even massive deportation operations
to faraway regions of individuals classified as “unproductive”, who should
be turned into rural labor force. Repressive programs sent thousands of people
to “reeducation fields” or to political prisoners’ fields, destined to keep
those considered enemies of the revolution. Finally, Renamo (the movement
against the socialist party Frelimo) and the government army frequently used
practices of kidnapping in order to engage youngsters in the conflict. Therefore,
significant part of Mozambican population has the memory of de-territorialization
experience. This article suggests that such experience is perceived
as part of a longer historical process that comes from the conflicts in
the Southern part of the country in the 19th century. On the other hand,
kidnapping and deportation are seen as mechanisms resulting from the construction,
pacification and even elimination of those classified as “enemies”
and which characterize social dynamics in the south of Mozambique.
KEY-WORDS: Mozambique, fields, revolution, socialism, post-socialism.
Recebido em agosto de 2008. Aceito em dezembro de 2008.
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