Presidente vetou diploma na véspera da eleição presidencial e divulgou decisão no dia a seguir à ida às urnas. Assunto volta ao Parlamento já no início de Fevereiro. PS, PCP, BE e PEV vão confirmar a lei para “ultrapassar veto”, obrigando Cavaco a promulgá-la em Fevereiro.
O Presidente da República anunciou nesta segunda-feira que vetou o diploma que permitia a adopção plena por casais gay, e também as novas regrasaprovadas pela esquerda parlamentar da interrupção voluntária da gravidez, mas já é certo que Cavaco Silva acabará por ter de promulgar ambos os diplomas três semanas antes de deixar o Palácio de Belém. Isto porque os partidos de esquerda já disseram que dentro de duas semanas, quando estes decretos forem reapreciados em plenário, vão confirmar o conteúdo agora vetado, aprovando-os novamente por maioria absoluta. Nestes casos, pela Constituição, o Presidente está depois obrigado a promulgar as leis no prazo máximo de oito dias, sem poder repetir o veto.
A 4 de Janeiro — por coincidência o mesmo dia em que os dois diplomas deram entrada no Palácio de Belém para Cavaco Silva os apreciar —, no debate na SIC Notícias com a bloquista Marisa Matias, Marcelo Rebelo de Sousa, eleito no domingo para a Presidência da República, afirmou então quenão vetaria os diplomas.
Falta um “amplo e esclarecedor debate público” sobre a adopção plena por casais do mesmo sexo para que se possa introduzir uma alteração tão “radical e profunda” na lei, argumenta o Presidente da República ao anunciar esta segunda-feira o veto do diploma que lhe fora enviado pelo Parlamento. A mesma razão é apontada para a recusa do decreto com as novas regras para o aborto, que acaba com a taxa moderadora e reduz a obrigação de acompanhamento psicológico durante a decisão da mulher, e que Cavaco Silva classifica como um “retrocesso” no direito de informação da grávida.
As duas mensagens estão assinadas com a data de 23 de Janeiro, ou seja, o dia de reflexão prévio às eleições presidenciais deste domingo, mas só foram divulgadas pela Presidência da República esta segunda-feira de manhã.
Os diplomas regressaram já esta segunda-feira ao Parlamento, que os deverá reagendar em conferência de líderes para o plenário entre os dias 10 e 12 de Fevereiro – o regimento exige que sejam discutidos pelo menos 15 dias depois de entrarem, numa espécie de período de ponderação. Segundo as reacções da esquerda, a vontade é reafirmar o seu conteúdo. Devem, por isso, ser votados logo no dia da discussão, seguirão para Belém e o Presidente tem então oito dias para, obrigatoriamente, os promulgar, descreveu ao PÚBLICO o deputado Duarte Pacheco, vice-presidente da Assembleia.
Na mensagem que enviou ao Parlamento, juntamente com a devolução do diploma para que os deputados o reapreciem, como determina a lei, Cavaco Silva desconstrói a argumentação jurídica usada pela maioria de esquerda.
O Chefe de Estado lembra que o pressuposto de que parte o decreto que lhe chegou às mãos é o da “existência de uma discriminação dentre casais de sexo diferente e casais do mesmo sexo no que respeita à adopção”, ao passo que é comummente aceite que a adopção “deve reger-se pelo superior interesse da criança”, o qual “deve prevalecer sobre todos os demais, designadamente o dos próprios adoptantes”.
“É consensual que, em matéria de adopção, o superior interesse da criança deve prevalecer sobre todos os demais, designadamente o dos próprios adoptantes. O interesse da criança é a linha-mestra condutora que deve guiar não apenas as opções legislativas sobre adopção como a própria decisão dos processos administrativos a ela respeitantes”, afirma Cavaco Silva.
Não é uma questão de igualdade
O Presidente recusa também a justificação de que a adopção plena por todo o tipo de casais resultaria de uma imposição constitucional ou legal, defendendo que “o princípio da igualdade não impõe necessariamente a solução agora consagrada”. Cita acórdãos do Tribunal Constitucional de 2009 e 2010 sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo para concluir que a igualdade de tratamento entre casais de sexo diferente e do mesmo sexo é uma matéria do “domínio da liberdade de conformação do legislador” e não uma “imposição constitucional”.
Cavaco Silva considera que “está, ainda, por demonstrar em que medida as soluções normativas agora aprovadas promovem o bem-estar da criança e se orientam em função do seu interesse”. Conta que recebeu uma exposição sobre o diploma de um grupo de “reputados juristas e professores de Direito” que defende, precisamente, que este regime tem “fundamentos descentrados da tutela jurídica destas crianças”.
O Presidente vai ainda buscar o exemplo da co-adopção, é uma questão legal “muito mais circunscrita” do que a adopção plena, e que envolveu a audição de duas dezenas de associações e especialistas no Parlamento, ainda que o processo não tenha ficado concluído.
Isto para dizer, continua Cavaco Silva, que a adopção plena e irrestrita a casais do mesmo sexo é uma “matéria de grande sensibilidade social” e implica uma tal “alteração radical e muito profunda” do ordenamento jurídico, que não deve entrar em vigor sem se fazer antes um “amplo e esclarecedor debate público, que envolva múltiplas correntes sociais e especialistas em diversos domínios”, de forma a que se chegue a uma solução consensual que “garanta que nos processos de adopção seja acautelado prima facie o superior interesse dos menores”.
Liberdade da mulher não está em causa, insiste Cavaco
Sobre as alterações ao regime da interrupção voluntária da gravidez (IVG), Cavaco Silva também cita o TC para se justificar, lembrando que a consulta obrigatória de aconselhamento prévia à decisão de interrupção da gravidez é comum em sistemas jurídicos que nos são próximos”, como a Alemanha, em que o período de reflexão é de pelo menos três dias, ou a Espanha, em que a lei impõe o dever de informar a mulher sobre direitos sociais na maternidade. Por isso, insiste que o diploma do anterior Governo que a esquerda quer agora alterar vai ao encontro das suas preocupações.
Agora, ao “diminuir os direitos de informação e ao eliminar a obrigatoriedade do acompanhamento técnico especializado durante o período de reflexão”, a esquerda opera um “retrocesso” no direito da grávida à informação, sem se ter feito o “devido debate público e uma adequada ponderação”. O Presidente pede então aos deputados que façam uma “auscultação de entidades ou personalidades com relevância neste domínio e uma mais amadurecida reponderação sobre as soluções legislativas” numa área que considera de “grande sensibilidade política, ética e social”.
A Federação Portuguesa pela Vida já saudou o veto presidencial: muitos portugueses, afirma em comunicado, não concordam com esta lei e não aceitam que "uma mulher seja deixada sozinha às circunstâncias adversas ou até à pressão de terceiros, na opção pelo aborto legal".
Sobre as taxas moderadoras no aborto e a redução do processo de acompanhamento, Marcelo assumiu que também as deixaria passar ainda que tenha uma “posição pessoal” diferente sobre o que deve ou não ser cobrado na área da saúde. “Não há como vetar”, afirmou, realçando que o fim das taxas moderadoras na IVG estava no programa eleitoral, foi “sufragado” nas eleições e “a maioria parlamentar decidiu”.
O PS já veio dizer que vai reconfirmar a aprovação no Parlamento dos diplomas agora vetados pelo Presidente da República (quer o da adopção quer o que revoga as alterações introduzidas à lei de interrupção voluntária da gravidez). Esta posição foi transmitida à agência Lusa pelo vice-presidente da bancada socialista Pedro Delgado Alves: "Não podemos deixar de lamentar que o Presidente da República, na recta final do seu mandato, continue empenhado em criar obstáculos e não em resolver questões de direitos fundamentais. Estamos perante vetos que não são definitivos e, por certo, a Assembleia da República vai ultrapassá-los."
Especificamente no que respeita ao veto aplicado ao decreto sobre a abertura à adopção de crianças por casais do mesmo sexo, Pedro Delgado Alves considerou "inexplicável" o conjunto dos fundamentos invocados pelo chefe de Estado.
"Pelos vistos, passou ao lado de Cavaco Silva todo o debate que foi feito publicamente sobre esta questão. Por isso, ignora até as evidências científicas que justificam a evolução constante no diploma, já que ficou demonstrado que a solução proposta é a que melhor protege os direitos das crianças", alegou Pedro Delgado Alves.
"Da parte do PCP há uma total disponibilidade para, o mais breve possível, ultrapassar este veto presidencial. Provavelmente, com discussão já na próxima quarta-feira, porque quando há um veto torna-se prioritário, e, se possível, a votação na sexta-feira", disse também à Lusa a deputada comunista Rita Rato.
Segundo a parlamentar, "estas matérias são da maior importância no que respeita aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e ao direito de todas as crianças crescerem numa família que cuide delas, as ame e garanta, de forma plena, o seu desenvolvimento integral".
"Não tem fundamento o que é invocado porque, quer no Parlamento, na sociedade e em todo o país este assunto tem sido profundamente discutido e tem tido grande acolhimento", disse Rita Rato.
Também a porta-voz do Bloco de Esquerda acusou o Presidente da República de "pura mesquinhez política". Numa curta declaração, lida na sede nacional, em Lisboa, Catarina Martins lamentou que a acção do chefe de Estado possa vir a ter "consequências", designadamente porque, diz, prolonga "o tratamento indigno a mulheres que recorrem à IVG" e adia "por alguns dias os direitos de crianças às suas famílias por inteiro".
"Estes vetos são um acto de pura mesquinhez politica. Acontecem um dia depois das eleições presidenciais para permitirem que a direita escondesse as suas contradições durante a campanha. Permitem também recordar-nos como o tempo de Cavaco Silva acabou há muito."
Catarina Martins lembra que "existem condições para o Parlamento confirmar com urgência os diplomas que Cavaco Silva vetou, obrigando à sua promulgação". E sublinhou: Cavaco Silva "vai acabar o seu mandato menorizado pela Assembleia da República e socialmente isolado por escolha própria."
Para a deputada bloquista, estes "foram temas debatidos, sufragados e houve uma escolha socialmente maioritária e essa escolha vai ser reconfirmada na Assembleia da República com urgência".
"Os Verdes" qualificam como "lamentável" o facto de o Presidente da República ter exercido o seu direito de veto político, assumindo "uma postura profundamente retrógrada e que vai contra aquelas que são as pretensões já amplamente demonstradas na sociedade portuguesa". Em comunicado adiantam que contribuirão para "reconfirmar estes diplomas na Assembleia da República".
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