domingo, 24 de janeiro de 2016

ENTREVISTA A ALMEIDA SANTOS


Sexta-feira, 22 de Janeiro de 2016

Almeida Santos.jpg

"Quem mandou no processo de descolonização foi o MFA"


Público, 10/04/2004 


Presidente do PS e ex-presidente da Assembleia da República, António de Almeida Santos, hoje com 78 anos, foi um dos protagonistas da descolonização como ministro da Coordenação Interterritorial.

Iliba Mário Soares e a si mesmo também das "culpas" na descolonização. Confessa que tentou "influenciar" no sentido da "moderação". Não poupa, porém, Spínola – cujas teses "à altura eram inviáveis eram impossíveis e que envenenaram o processo" – e lembra que em Lisboa se vivia um clima de esquerdismo que não dava azo a outras soluções.
Paulo Portas tem feito críticas a Mário Soares sobre a descolonização. As criticas, ao longo dos anos, têm-no atingido também a si. Quais são as suas culpas?
Tenho encarado as críticas com uma grande serenidade porque sempre tive e continuo a ter bons argumentos para poder defender-me. Simplesmente, para me defender eu tenho de acusar.
Bom, mas então...
O problema é que quem tem consciência do valor das instituições, quando tem que fazer acusações que podem envolver o desprestígio de algumas instituições, por exemplo a instituição militar, as Forças Armadas Portuguesas, tem que pensar um pouco se deve fazê-lo e em que momento. Por isso, eu deixei passar 30 ano, não vou deixar muito mais porque estou exactamente a escrever um livro em que, sem preocupações defensivas - não é a minha alegação de defesa longe disso -, eu digo a verdade sobre a descolonização, doa a quem doer. Não identifico pessoas, não digo o senhor fulano de tal fez isto ou aquilo, mas digo aconteceu isto, aconteceu aquilo. A simples ocorrência de determinados factos absolve os descolonizadores. Não tenho a menor dúvida em poder demonstrar e demonstrarei que os descolonizadores, nomeadamente o doutor Mário Soares que, como disse, está a ser objecto de críticas actuais, indirectamente eu próprio também, teve uma responsabilidade mínima, eu diria mesmo nula na descolonização e teve até uma actuação positiva.
Até que ponto é que Spínola estava isolado na ideia de uma África branca e de uma África federal?
O Spínola era um patriota, não há dúvida nenhuma sobre isso. Sonhou com a ideia de comunidade, um bocado fora de época, mas é uma ideia nobre, generosa. Foi pena que as ex-colónias não tivessem concordado com isso, porque teriam vivido estes trinta anos muito melhor do que viveram e quando fosse de cortar o cordão umbilical cortava-se sem dor. Ele esqueceu-se de que quando há guerra só podemos obter a paz negociando com quem nos faz a guerra. Ele queria negociar não só com quem nos fazia a guerra, mas com todos os partidos que surgiram, com todas as forças sociais, com a comunidade em geral. É uma ideia bonita, simplesmente irrealizável.
Ele chegou a reunir-se com a comunidade branca de Angola, não foi?
Teve aqui uma reunião, dois dias antes de renunciar ao mandato de Presidente. Mas era uma ideia fora de época porque o MFA não concordava com isso, nem concordavam os três movimentos de libertação de Angola, que exigiam negociações directas com eles próprios. Por isso é que a lei 7/74 foi publicada, um pouco a "contre-coeur" do Spínola.
Foi tirada muito a ferros?
Não, nem foi. O que acontece é que houve a crise Palma Carlos. [O primeiro-chefe de Governo pós-25 de Abril] Palma Carlos tentou uma solução de legitimação do Presidente da República através de um referendo. Tentou também a aprovação referendária de uma Constituição. O MFA e a generalidade dos partidos, tirando quatro ministros que se solidarizaram com o primeiro-ministro, estavam contra.
Quem eram?
Sá Carneiro, Magalhães Mota, Firmino Miguel e Vasco Vieira de Almeida, que também pediram a demissão. A crise Palma Carlos fragilizou o Presidente da República. Foi ele próprio quem propôs aquilo aos partidos e ao Governo. O Conselho de Estado aproveitou essa fase de fragilização de Spínola para lhe propor a lei 7/74. A lei tem uma génese curiosa porque aparece publicada no "Diário de Governo" sem eu ter sido ouvido. Eu era o ministro da pasta, fui direitinho a Belém dizer ao Spínola: "Eu venho aqui pedir a demissão.". Ele perguntou porquê. "Por isto, sempre defendi o que a lei diz, sem ser ouvido vejo isto consagrado numa lei, sou como os maridos enganados, sou o último a saber, não posso admitir". E ele diz-me assim: "Mas eu não assinei essa lei.". Mandamos vir o dossier e de facto a lei não estava assinada.
Mas foi publicada como? Quem mandou?
Não me peça para explicar como foi publicada que eu não sei, não faço ideia, nem sei qual foi a intenção. O que sei é que eu próprio fiz algumas críticas à lei. E disse: "Além do mais, está mal redigida e precisa de um artigo terceiro que diga como se faz a descolonização." É o tal artigo terceiro que diz que é por acordo negociado e assinado pelo Presidente da República. Não estava previsto o formalismo da negociação directa com os movimentos. Anulou-se a lei anterior, publicou-se a lei. No dia seguinte, Spínola faz um discurso histórico de elogio fabuloso à lei. Defendeu aquilo que nunca tinha defendido, há uma mudança radical na sua posição. Naquele momento, recuperou a confiança do MFA. Quando voltou a perdê-la? Quando reuniu com as forças vivas de Angola. Foi quando ele declarou: "Agora Angola é comigo!" Aí ele ditou a sua sentença como Presidente da República. Pouco depois, virá a renunciar depois do 28 de Setembro. O 28 de Setembro não está muito bem explicado, mas, digamos assim, foi a ultima tentativa que ele fez de poder retomar o processo de descolonização nas mãos. Renunciou. Veio o Costa Gomes que estava mais identificado com os pontos de vista do MFA.
Há um outro protagonista da época a quem se refere sempre, que é a Comissão Nacional da Descolonização.
Foi um órgão criado sob sugestão de Veiga Simão, que era muito amigo de Spínola. Foi útil. Reunia para os problemas da descolonização, na Presidência da República. Era constituída pelo Presidente da República, pelo primeiro-ministro, por Melo Antunes, por mim, pelo Mário Soares. O Governo, enquanto órgão, nunca quis saber da descolonização.
Não eram aí tratados os problemas da descolonização?
Pôs-se à margem. Quando eu queria levar lá qualquer problema não encontrava eco.
Portanto, quem tratava da descolonização era este órgão.
Não direi que tratava, mas acompanhava, dava consulta. Antes de irmos para Lusaka [Zâmbia] discutimos o documento que o Melo Antunes tinha pré-negociado com a Frelimo.
Todas as personagens que integravam esse órgão concordavam com o processo em curso?
É evidente. Reconheciam que não havia mais nada a fazer senão aquilo que se fez, que apesar de tudo o que se fez era o melhor que havia a fazer.
Quando se a analisa o processo de descolonização, o discurso dos civis envolvidos é que aquilo foi o fruto da vontade dos militares.
Mas não tenha dúvidas nenhumas, quem mandou no processo de descolonização em relação aos principais processos foi o MFA. Não tanto em relação à Guiné, estava arrumado.
A ideia que passa muitas vezes é que os militares eram todos esquerdistas, mas quando se vê os militares envolvidos temos: Moçambique, Vítor Crespo; Angola, Silvino Silvério Marques; Timor, Lemos Pires; São Tomé, Pires Veloso. Não são esquerdistas.
Não são esquerdistas, mas o ambiente em geral no pós-25 de Abril foi um ambiente de esquerda. Mesmo os que não eram esquerdistas defendiam, sem esforço nenhum, posições de esquerda.
Silvino Silvério Marques defendia uma Angola branca, uma solução rodesiana.
Sempre foi um homem de direita, não sei se defendia uma Angola branca. Antes defendeu, depois não sei. Mas todos não faziam esforço em tomar posições de esquerda. Toda a gente em Portugal.
Era então uma questão de espírito do tempo?
O clima geral era de esquerda, era difícil que alguém dissesse: "Eu não sou de esquerda." Antes disso tinha ido para o Brasil.
Na sua opinião, a descolonização podia ter sido melhor, foi o melhor possível ou foi o pior possível?
Pior possível não foi. Se comparar com outras descolonizações, a França só apertou a mão ao Governo da Argélia 13 anos depois. As pontes ficaram lançadas.
Mas foi o melhor possível ou podia ter sido melhor?
O melhor possível não digo que fosse, podia ter sido melhor necessariamente. Houve condicionalismos. Se em Portugal não existisse o clima político que existiu, todo ele propenso a um esquerdismo extremo a influenciar as decisões,a entusiasmar tudo o que era de esquerda, a condenar tudo o que era moderado, já não digo de direita. Fomos vítimas do clima que se vivia em Portugal, quer nas Forças Armadas quer no civil. Eu posso reivindicar para mim que me mantive sempre com uma certa moderação.
O senhor, que era ministro da Coordenação Interterritorial, lutava por quê, o que eram os seus desejos, o que era essa moderação?
Era, no fundo, lutar pelas soluções mais harmoniosas e mais sensatas, dentro do condicionalismo em que eu tinha que trabalhar. Eu não tinha a decisão isolada, havia o MFA, havia o Presidente da República. Durante o Spínola havia o Spínola, que era um decisionista, depois havia o MFA, que tinha os seus centros de decisão, nos quais eu não mandava nada, mas procurei sempre influenciar. Onde pude influenciar, fui para soluções moderadas e sensatas. Mas quem tinha o poder era o MFA.
Foi sempre da opinião que não havia outra coisa senão descolonizar?
Não havia outra coisa a fazer e mais: tive muita pena que não se descolonizasse depressa. Repare, a lei 7/74 veio permitir negociações directas com quem nos fazia a guerra e aí podemos fazer a paz e a partir da paz a descolonização. Eu estava em Portugal quando foi o 25 de Abril, o "Século" pediu-me uma entrevista e eu nessa entrevista defendo negociações directas com os movimentos de libertação. Antes de ser ministro defendi aquilo que veio a ser consagrado na lei 7/74. Portanto, eu não tenho culpa que tenhamos perdido aqueles três meses que envenenaram completamente a situação militar, provocaram a indisciplina militar.
Há uma responsabilidade maior do Spínola?
Responsabilidade sim, culpa não. Ele fê-lo por bem, a intenção dele era saudável e era boa e tinha apoiantes, não estava isolado. Dentro das Forças Armadas tinha quem o apoiava, o Firmino Miguel. Foi pena que ele tivesse de defender aquelas teses que à altura eram inviáveis, eram impossíveis e que envenenaram o processo. A prova disso é que ele veio a corrigir a atitude e assinou e elogiou a lei 7/74.
O senhor está ligado à democratização portuguesa por dois pilares, um que é a via jurídica, como autor da maior parte do edifício jurídico do regime de Direito pós-25 de Abril, e outro que é a descolonização. Se pudesse voltar atrás o que faria de novo ou de diferente o que corrigiria para ficar de bem com a história?
Se fosse egoísta não tinha aceitado a pasta da descolonização, mas não só capaz de ser egoísta, nem sou capaz de ser calculista. Sei fazer cálculo, lá burro não sou. Sabia que a descolonização ia ser uma fogueira, sabia isso. Mas, também me atraem as dificuldades, o fugir às dificuldades por comodismo, não sou capaz disso. O desafio da descolonização de algum modo seduziu-me por ser difícil. Depois vim aceitar a pasta pior: comunicação social. Por que é que aceitei? Porque ninguém a queria. Era uma pasta terrível na altura, os órgãos de comunicação social estavam todos na mão da esquerda. Tirá-los da mão da esquerda não era fácil sem ser acusado de fascista como fui muitas vezes. Mas tirei e deixei a comunicação social normalizada, ainda que tendo de recorrer a um instrumento que eu não gostava que foi a nacionalização das partes não públicas da televisão e da rádio e dos jornais, para poder nomear novos administradores e eles poderem nomear novos directores. Depois a Justiça, era uma pasta terrível, era a adaptação de toda a legislação portuguesa à nova Constituição. De momento tudo ficou inconstitucional. Tinha ano e meio para regularizar aquilo, revi os códigos, reorganizei a organização judiciária, o Ministério Público, o estatuto dos magistrados, o estatuto dos Açores e da Madeira, tudo isso, a lei sindical. Era o desafio que me seduzia. 
São José Almeida.pngSão José Almeida

Esta entrevista foi publicada no PÚBLICO a 10 de Abril de 2004


publicado por Henrique Salles da Fonseca às 13:47
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Quinta-feira, 21 de Janeiro de 2016
TUDO TÃO LONGE

Moçambique.jpgA propósito de um texto publicado no “A Bem da Nação”- uma entrevista a Marcelino dos Santos, e em resultado de uma conversa telefónica que o Dr. Salles da Fonseca manteve com João Cabrita, autor do livro “Mozambique”, The tortuous road to Democracy”, o qual lhe telefonou de Mbabane (Suazilândia), para saber mais dados sobre Joana Simeão, após ter lido no “A Bem da Nação” um seu texto sobre a sua relação pontual com aquela, propôs-me o Dr. Salles , sabendo que eu a conhecera, que escrevesse sobre Joana Simeão. Mas o meu conhecimento só resulta de memórias, mais ou menos apagadas, embora não esquecidas, de uma voz estridente numa mulher vistosa e espampanante, na cabeça um espectacular turbante, e isso ficou registado em texto vagamente poético “Assim é Joana” de “Pedras de Sal”. Foi uma altura de muito sofrimento, ou antes, de muito terror e estupefacção que vivi em esperança de reversão, continuando a trabalhar e a ironizar por escrito, tal como agora se faz também, a respeito do que se pratica na nossa democracia laracheira – mas não criminosa, como a que se tentou implantar em Moçambique. Só para rir o afirmá-lo – democracia – ou, pelo contrário, para chorar. A entrevista de Emílio Manhique com Marcelino dos Santos mostra a crueza de um regime comunista implantado nessa ex-colónia, como, mais ainda, talvez, em Angola:

O QUE OS COMUNISTAS FAZEM A QUEM SE LHES OPONHA
Entrevista com Marcelino dos Santos por Emílio Manhique, Televisão de Moçambique.
(colaboração de João Cabrita, Mbabane, Suazilândia)

O que posso fazer, é transcrever outro texto de “Pedras de Sal” (contido em “Cravos Roxos”), com um parágrafo que se refere a Joana Simeão. E como contém referência a Almeida Santos, servirá justamente para o homenagear, lembrando acções passadas, do agrado de toda a gente agora, como é costume quando se morre, mas que justamente reconhece nele o homem inteligente que foi e que teve ocasião de continuar a revelar-se por cá, protegendo os seus amigos, com a sua voz maviosa, que – mais uma voz – ficaria gravada na minha lembrança, através do fado doce que lhe ouvi cantar em Lourenço Marques, e que a internet me faz ressuscitar:


Lá Longe

Lá longe ao cair da tarde
Vejo nuvens d'oiro que são os teus cabelos
Lá longe ao cair da tarde
Vejo nuvens d'oiro que são os teus cabelos
Fico mudo ao vê-los, são o meu tesoiro
Lá longe ao cair da tarde
Lá longe ao cair da tarde
Quando uma saudade se esvai ao sol poente,
Lá longe ao cair da tarde
Quando uma saudade se esvai ao sol poente,
Como canção dolente duma mocidade
Lá longe ao cair da tarde.

Transcrevo pois, o texto – “Movimentação” - sobre um passado morto, lamentando a crueldade com que foi tratada a figura esplendorosa de Joana Simeão, e, afinal, recordando uma figura marcante, de voz branda e expressiva, Almeida Santos, cuja morte inesperada chocou, após o gesto de apoio a Maria de Belém, como acto de cavalheirismo e amizade que o elevou, para mim, por altivamente se revelar indiferente aos comparsas do apoio a Nóvoa.

Movimentação

Desde 25 de Abril, aproximadamente, toda a gente se movimenta para fazer coisas – partidos, manifestos, comunicados, discursos, reuniões, pareceres, propostas de saneamento, peditórios, tentativas de ilustração das massas..

Os peditórios e as tentativas cabem às senhoras, por natureza generosas e apóstolas da tentação, como as sereias.
Cá por mim, sinto-me baralhada, pois as opiniões são muito desencontradas.

Os partidos que se apelidam de democratas, parece que são mais que um, pois por vezes desmentem-se. Uns mandam telegramas de repúdio a umas palavras elegantemente levianas – e parecem, pois, repudiar a leviandade. Logo outros democratas desmentem tal telegrama – o que parece apoiar a leviandade. Por outro lado, um dos partidos democratas propõe saneamentos onde não se inclui o da prostituição e logo outro partido democrata inclui o saneamento da prostituição.

Um outro chamado MIMO deseja mimosamente a independência total, mas em idêntico telegrama de repúdio às mesmas palavras levianas expõe que jamais renegará a pátria portuguesa – contradição que me deixa atordoada pela desorientação de princípios manifesta.

Um partido chefiado por uma mulher – nem só os peditórios e os partidos são pertença das senhoras – experimenta auto determinar a massa negra informando-a de que se não deve amotinar contra a massa branca – maneira cavilosa de lhe lembrar que pode.

Um ilustre advogado, num artigo de muito génio que ficará na posteridade como marco simbólico das qualidades humanitárias e cavalheirescas de um povo – aconselha com muita finura a que deixemos estas terras aos seus naturais, afirmando que se ele fosse negro era isso mesmo que desejaria. Esqueceu-se de analisar a questão do outro ponto de vista – do seu – e de se afirmar numa atitude corajosa e não cordialmente desleixada, de quem se está nas tintas, ou prefere uma retirada elegante, porque teve tempo de se estruturar melhor “ailleurs” durante o regime tão criticado, mas com tantos resultados positivos para si próprio e tantos outros, derrotistas como ele.

Um homem igualmente chique – tem-me chamado muito a atenção o pormenor do requinte de maneiras (com raras excepções) em todo este fervilhar – depois de se mostrar, reservadamente embora, conivente com a Junta, manifesta agora, decididamente, a sua não adesão a respeito do Ultramar. Como é um homem, ao que se tem visto, habituado a levantar voo frequentemente, cuida tarefa fácil levantarmos todos voo com ele, e aconselha resignação e calma ordeira, para tudo se fazer com compostura, na hora do embarque, de acordo com os seus ideais.

E no meio de tanta leviandade e garotice com que se debatem os destinos de um povo, de tanto egoísmo e cobardia mascarados de filantropia, de tanto partido apressado, poucos deles seguem o da sensatez e do respeito pelas normas do seu Governo, o partido daqueles cidadãos verdadeiramente livres, ou seja, os que sabem obedecer.

Berta Brás.jpg
 Berta Brás


publicado por Henrique Salles da Fonseca às 07:39
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Segunda-feira, 18 de Janeiro de 2016
O QUE OS COMUNISTAS FAZEM A QUEM SE LHES OPONHA

Marcelino dos Santos.pngEntrevista com Marcelino dos Santos por Emílio Manhique, Televisão de Moçambique.
Data: 19 de Setembro de 2005
Programa: “No Singular”
(Excertos)

Emílio Manhique: Lázaro Nkavandame, Gwenjere, Joana Simeão foram mortos depois da independência, mas a Frelimo tinha dito que iam ser reeducados, que iam servir de exemplo. Porque é que foram mortos sem sequer nenhum julgamento?
Marcelino dos Santos: Naturalmente... primeiro porque consideramos que era justiça.
Manhique: Justiça popular?
Marcelino dos Santos: Altamente popular, exercida...
Manhique:... mas foi uma justiça de um movimento guerrilheiro, não de um partido.
Marcelino dos Santos: Justiça contra traidores porque qualquer um deles se aliou ao colonialismo português.
Manhique: Mas porque é que a Frelimo primeiro disse que iam servir de exemplo?
Marcelino dos Santos: Sim, e depois sobreveio a acção, a tentativa do inimigo de buscar elementos moçambicanos descontentes, em particular aqueles que pudessem ser-lhes bastante úteis. Então, aquela consciência que nós tínhamos inicialmente de que são traidores e que, portanto, deveriam ser executados. Bom, numa certa medida podemos dizer que surgiram as condições que forçaram a implementação de uma preocupação e de um sentimento muito, muito, muito antigo porque é bom não esquecer que Lázaro Nkavandame...
Manhique: E porque é que não se informou o povo?
Marcelino dos Santos: Porque aí é preciso ver o momento em que isso acontece e naturalmente embora nós sentíssemos a validade da justiça revolucionária, aquela construída, fecundada pela luta armada revolucionária de libertação nacional, havia, no entanto, o facto de que já estávamos em Estado independente. Quer dizer, Moçambique se tinha ja constituído em Estado embora a Frelimo fosse realmente a força fundamental desse Estado. Então foi isso, talvez, que nos levou, sabendo precisamente ainda que muita gente não estava certamente apta a entender bem as coisas, que nós preferimos guardar no silêncio esta acção realizada. Mas que se diga bem claramente que nós não estamos arrependidos da acção realizada porque agimos utilizando a violência revolucionária contra os traidores e contra traidores do povo moçambicano.

JC-The tortuous Road to Democracy.jpg


















(colaboração de João Cabrita, Mbabane, Suazilândia)


publicado por Henrique Salles da Fonseca às 13:27
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Quarta-feira, 9 de Setembro de 2015
PERTO DO RIO DOS ‘BONS SINAIS’ DE VASCO DA GAMA

 

QUELIMANE.jpg

Caminhei cerca de oito quilómetros a pé da ‘cidade de cimento’ deQuelimane ao bairro periurbano da Madal, no norte de Moçambique. Passada a primeira povoação, continuei na única estrada de terra batida ladeada por mangais despovoados. Ao início da manhã havia muita gente a caminhar em sentido contrário em direcção à cidade. Iam a pé e sobretudo de bicicleta, muitas fazendo de ‘táxi’. Também circulavam umas poucas motorizadas. Em qualquer caso, algumas transportavam sacos com sal, farinha, carvão, milho, amendoim, fardos de lenha, havia um cabrito rechonchudo torturado a cordas contra o suporte da bicicleta, entre outros bens que, em geral, iriam ser negociados nos mercados da cidade. Como eu e o guia que me acompanha, poucos eram os que ao início da manhã se afastavam da cidade. Entre esses, uns quantos transportavam bens trazidos da cidade: tábuas polidas, portas de casas, grades de bebidas como a ‘2M’, a cerveja nacional, entre outros. Entretido com a paisagem, a caminhada, o movimento ou a conversa, a certo passo alertou-me um sinal do poder estado, ou melhor, da sua ausência. Atravessava uma ponte metálica, herança colonial que passa por cima de um dos afluentes do rio. Junto à margem oposta havia um pequeno engarrafamento. Ora passavam os de um sentido, ora os do sentido contrário. De perto vi que naquela parte só é possível prosseguir a pé porque o tabuleiro da ponte fica reduzido a uma largura pouco maior do que a de uma das vigas metálicas. Bicicletas e motorizadas têm de ser levadas pela mão. Algumas das cargas exigem destreza aos que as transportam porque o risco de queda não deixa dúvidas. Daí a ausência de carros ou camiões naquele circuito.

A ponte serve muita gente que habita numa das províncias mais populosas e economicamente mais periféricas de Moçambique, a Zambézia. A sua restauração ou reconstrução valerá um quase nada comparado com os sofisticados investimentos em betão que todos os dias vemos crescer em Maputo, a capital no extremo sul.

Quem andar pelo país apercebe-se do fascínio civilizacional, cultural, ideológico pela cidade e pelo que ela representa, muito em particular pela cidade grande, os mesmos espaços que num passado não muito longínquo eram a reserva civilizacional do colono. Há semanas na Matola (Maputo), um dos indivíduos comuns com quem vou falando opinou (cito de cor): ‘A diferença é que no tempo colonial os brancos iam para o mato e agora os nossos dirigentes ficam só na cidade’. Tese exagerada, porém sintomática.

Ela conduz ao enigma das raízes culturais dos africanos habitualmente rotuladas de ‘profundas’. Ou são de tal modo profundas que dificilmente se rompem ou, por serem profundas, os próprios rompem-nas sem retorno para abrirem caminho a uma alteridade identitária ultra-acelerada. Por essa razão, escudam-se num mal disfarçado estado de negação antieuropeu.

Não faz muitos anos, um intelectual e político negro moçambicano criticava com aspereza o facto de a sua sociedade ser regulada pelo que designava por “norma branca”, uma herança colonial perversa ainda não ultrapassada. Por sua causa, explicava, os autóctones abandonaram a sua matriz identitária, cultural e civilizacional africana. Curioso é que esse mesmo intelectual e político sugeriu que a entrevista que lhe solicitei decorresse no luxuoso hotel Polana, em Maputo, vestia-se da mais apurada indumentária de origem europeia, exprimia-se num português límpido de fazer inveja e é descendente de uma família de assimilados, a elite autóctone criada no tempo colonial. Ainda que não quisesse julgá-lo, saltavam à vista as dissonâncias entre discurso e práticas, entre atitudes e comportamentos. Prosseguindo a caminhada na estrada de terra batida e quando a ponte metálica se perdeu da vista, aproximei-me de um troço no qual a areia solta dificultava um pouco mais a circulação. Nova revelação: afinal o poder do estado dava um ar da sua graça junto das pessoas comuns. Cerca de meia dúzia de polícias municipais mandavam parar os transeuntes para lhes exigirem a licença da bicicleta e o documento da permissão de condução. Os azarados ou distraídos tinham de pagar uma multa para seguirem viagem. O guia informou-me que era de cinquenta meticais e, de seguida, tinham de ir tratar da legalização na cidade. O custo era de cento e cinquenta a duzentos meticais, valor muito acima de um salário diário médio, se se quisessem livrar de futuros incómodos.

Como o mangal que ladeia a estrada tinha zonas sem água, em vez de regressar à procedência, um ou outro ciclista indocumentado metia-se pelo mangal lodoso, por vezes com passageiros ou carga, e saía mais à frente contornando as autoridades, um ou outro a barafustar contra os abusos do poder e contra o matope (lama) agarrado ao calçado.

Não sei se tal controlo policial faz sentido. O que sei é que o episódio trouxe-me à memória relatos dos piores dias da guerra civil (1976-1992) quando as pessoas dificilmente conseguiam passar por certos controlos nas estradas sem que fossem molestadas por militares. Estes poderiam confiscar-lhes bens conseguidos e transportados a muito custo ou cometer todo o tipo de abusos no caso de os viajantes serem renitentes. O tempo passa e as pessoas vão suportando os fardos da vida.

No destino, o bairro periurbano da Madal, tive a sorte de falar longamente com o régulo. Conserva na memória a permanência por seis meses em Portugal, no ano de 1958, e de então ter ouvido falar na campanha presidencial do general Humberto Delgado. Tinha treze anos quando começou a trabalhar, em Quelimane, como empregado doméstico do comandante do navio ‘Lúrio’. Próximo do rio que Vasco da Gama baptizou de ‘Bons Sinais’, entre outros assuntos, o régulo contou a sua versão da história do império colonial, a que sobrevive com as pessoas que (também) o viveram. A outra é a versão rainha, a dos livros e das universidades. Por alguma razão vou preferindo o sentido atribuído à vida e ao tempo que passam pelas pessoas comuns antes que os mais velhos se desliguem da vida e, com eles, as suas subjectivas e indiscutíveis verdades.

16/8/2015

 Gabriel Mithá Ribeiro


publicado por Henrique Salles da Fonseca às 14:16
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Quarta-feira, 8 de Abril de 2015
MAGAÍÇA

Magaiça.jpg

NOTAS PRÉVIAS:  
1. Magaíça – trabalhador moçambicano nas minas da África do Sul. A aculturação foi feita de tal modo que os homens do sul de Moçambique só são aceites para casamento depois de terem estado dois anos nas minas sul-africanas.
2. Mamparra – rapaz
3. Nhanisse – de certeza, é verdade, tenho a certeza.

MAGAÍÇA 

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
Engoliu o mamparra,
Entontecido todo pela algazarra
Incompreensível dos brancos da estação
E pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
Seu coração apertado na angústia do desconhecido,
Sua trouxa de farrapos
Carregando a ânsia enorme, tecida
De sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
O comboio voltou, arfando, arfando...
Oh nhanisse, voltou.
E com ele, magaíça,
De sobretudo, cachecol e meia listrada
E um ser deslocado
Embrulhado em ridículo.

Às costas – ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?
Trazes as malas cheias do falso brilho
Do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
Magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
À cata das ilusões perdidas,
Da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
Lá nas minas do Jone...

A mocidade e a saúde,
As ilusões perdidas
Que brilharão como astros no decote de qualquer lady
Nas noites deslumbrantes de qualquer City. 


noemia_sousa.jpg
Noémia de Sousa (Catembe, 20/9/26-Lisboa, 4/12/02) 

* * *
(…) Estes últimos dias de rapaz foram passados com os outros iniciados e achei a camaradagem agradável. O abrigo era perto da casa de Banabakhe Blayi, o rapaz mais rico e mais popular da escola de circuncisão. Era um rapaz cativante, campeão do jogo do pau e um galã cujas muitas namoradas nos mantiveram a todos fornecidos de petiscos. Embora não soubesse ler nem escrever, era um dos mais inteligentes entre nós. Regalou-nos com histórias das suas viagens a Joanesburgo, um lugar aonde nenhum de nós jamais tinha ido. Entusiasmou-nos tanto com histórias das minas que quase me convenceu que ser mineiro era mais interessante do que ser monarca. Os mineiros tinham uma mística; ser mineiro significava ser forte e ousado, o ideal da masculinidade. Muito mais tarde dei-me conta que eram as histórias exageradas de rapazes como Banabakhe que faziam com que tantos jovens fugissem para trabalharem nas minas de Joanesburgo, onde muitas vezes perdiam a saúde e a vida. Nesses tempos, trabalhar nas minas era quase tanto um rito de passagem como a escola de circuncisão, um mito que ajudava mais os proprietários das minas do que o meu povo. (…)

Nelson Mandela.jpg Nelson Mandela

in «LONGO CAMINHO PARA A LIBERDADE – Autobiografia» (pág. 35)


publicado por Henrique Salles da Fonseca às 18:35
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Segunda-feira, 23 de Março de 2015
UM ECLIPSE DO SOL
eclipse.png 

Eclipse do Sol, total nalguns lugares no centro de Moçambique, Zâmbia e Angola. Um eclipse do Sol é sempre um espectáculo interessante, não só pela raridade, mas sobretudo quando é total. A Zâmbia tirou grande proveito turístico do evento; Angola, a muito custo, conseguiu reunir um pequeno número de cientistas; e Moçambique? Podia ter ficado quieto, mas...

Moçambique soltou um alarme de tal forma aterrorizante sobre os efeitos do eclipse, que o povo, não só o povo simples do interior, mas o evoluído da capital, ficou à espera de nova catástrofe! Habituado a catástrofes – secas, inundações, guerra, pragas de insectos, inundações – agora chegava mais este: o eclipse do Sol.

Um dos jornais publica, página inteira, um artigo dedicado ao assunto com quase duas semanas de antecedência e com a manchete:Cuidado com o eclipse, as pessoas podem ficar cegas! Entrevista aos Drº (sic) Rogério Utui, especialista em Física Nuclear e Cardoso Homem (do Aeroclube). Começa assim o artigo: “Isto é perigoso. As pessoas podem ficar cegas.” Outro jornal publicou que “mais cego é quem não quer ver e que existem dados segundo os quais no dia do eclipse será instalada uma barraca em Quelimane (?) para os curandeiros porem à prova dos turistas os seus dotes em matéria de medicina tradicional em trabalho a ser feito em conjunto com a AMETRAMO (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique). Isto é ridículo.” Mais adiante: “É bonito sim senhor. O fenómeno é espectacular mas as pessoas devem resistir à tentação. O País pode cegar. ... fica um bocadinho frio, os animais ficam baralhados, os galos cantam. Mas deixemo-nos de rodeios. O eclipse para as condições nossas é um risco à saúde pública. Com ele pode aparecer um “boom” de doenças de vista, o que logo à priori poderia significar ter alunos sem estudar e, por exemplo, uma povoação cega.”

E seguiu por aí fora a quantidade de artigos nos jornais. Até a Administração de um Distrito distribuiu um Aviso que colocou em lojas e escolas: “Avisa-se a população em geral e as Direcções das Escolas, que no dia 21 de Junho do ano em curso haverá eclipse do Sol durante algumas horas a observância da luz solar nesse dia será perigosa. Se insistir, poderá perder a vista ou ter problemas mais complicados com a vista ou desaparecimento total da retina. Apela-se à compreensão que será o bem da saúde.” (sic)

O Governo chegou a antever a possibilidade de, ainda mais uma vez, pedir ajuda internacional para atender aos flagelados do eclipse. O drama era a possibilidade de cegueira! “Se não se usarem óculos próprios, é alto o risco de cegueira!

Ninguém disse nem como, nem porquê se corria esse risco, que é muito maior sem eclipse, com o Sol na sua plenitude! Em qualquer dia do ano olhar demoradamente para o Sol pode causar danos, irreversíveis, aos olhos, é verdade. Mas quem aguenta abrir o olhão e encarar de frente o astro rei? Nem com óculos escuros que para pouco mais servem do que enfeitar a cabeça de meninas e meninos que se julgam assim mais... E partem as rádios e Tevês a anunciar: “Cuidado com o eclipse. NESSE dia não olhe para o Sol. Pode cegar!” “Não SAIA DE CASA sem óculos especiais!” e outras barbaridades na mesma tónica!

O Governo, face ao implacável e imparável avanço desta nova calamidade, decreta tolerância de ponto. (Atenção: tolerância de ponto só para os nacionais! Os estrangeiros, era lá com eles e quem sabe se estariam equipados com alguma tecnologia de ponta que os preservasse da desgraça!). As mães avisam que nesse dia não poderão ir trabalhar porque têm que segurar os filhos dentro de casa, o pastor aflige-se porque o gado está no pasto e não tem como recolhê-lo e abrigá-lo dos apocalípticos efeitos do eclipse e boi cego marra de lado. O país aterroriza-se.

Houve até quem, recolhido com a família dentro da sua palhota, mas através do inseparável telefone celular, consultasse a emissora de rádio sobre a capacidade de protecção do teto de palha! Na capital, no Maputo, a partir do meio-dia (o eclipse começava às 14h e 30m) as ruas desertificam-se, as pessoas recolhem a casa.

Se aqui estivesse o Astérix, ao ouvir todo este alarmismo, deveria pensar que desta vez é que o céu lhe ia cair em cima da cabeça!

Passou o eclipse. Foi interessante. Reportaram-se as autoridades administrativas: “Não aconteceu nem um só caso de cegueira. Nem nas pessoas nem nos bois!

Moçambique perdeu a oportunidade de pedir nova ajuda internacional!

Atenção: isto não é ficção! Aconteceu, mesmo!


Moçambique, Maputo, 21 de Junho de 2001

Francisco Gomes de Amorim, Junho 2013, Lisboa.jpg
Francisco Gomes de Amorim

Escrito na Casa do Gaiato, Obra da Rua, Boane, Distrito de Maputo, em Junho de 2001





publicado por Henrique Salles da Fonseca às 08:15
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Segunda-feira, 29 de Setembro de 2014
HISTÓRIAS A CONTAR AOS NETOS


Lourenço Marques, hoje Maputo, 1971

Quando fui para Moçambique, trabalhar na “Mac-Mahon” – cervejas e refrigerantes – a desorganização na companhia era um desastre. Aliás tinha um administrador, mandado de Lisboa, uma das mais “raras avis” de arrogância e incompetência que se me depararam durante a vida. Um cretino.

Os carros da companhia todos machucados, mal pintados, avariavam a toda a hora, etc.

Tudo isto exposto aos olhos dos consumidores davam ideia da qualidade dos produtos. Entre essa sucatada, que me apressei a reformar, a “2M” tinha uns quantos carros de serviço que andavam completamente a cair da tripeça, impróprios para circularem nas ruas, horrivelmente pintados e com o logotipo da companhia.

Eram pelo menos três Variant, Volkswagen, podres. De chaparia, mecânica, pneus, tudo. Foi decidido vender-se para a sucata, quando me lembrei de dizer que devíamos fazer primeiro um leilão entre os empregados. Tudo bem.

Para que o leilão não demorasse muito, também se estabeleceu que se faria ao contrário, isto é, partindo-se de um preço, alto, absurdo, e vinha-se baixando até que alguém se manifestasse e fechasse a compra. Como se faz com algumas lotas de peixe em Portugal onde num instante se despacha todo o peixe apanhado.

Começou-se por quatro contos. Uma loucura. Quatro, três e novecentos, três e oitocentos, etc.... foi baixando até que, ao chegar aos quinhentos mireis eu, que não estava nada interessado em sucata, acabei comprando o primeiro.

Nessa altura o pessoal ficou com inveja! Tinham perdido um carro, velho e tudo, mas por somente por quinhentos paus! Começa a venda do segundo. O mesmo início, e lá vai o preço caindo até que ao chegar aos mil, eu voltei a fechar. Já estava dono de dois trastes velhos. E os outros circunstantes com mais inveja.

Começou a venda do terceiro e alguém fechou ao chegar a mil e quinhentos.

Quando tudo terminou perguntei-me para que queria eu aquela sucata toda? Vendi ali mesmo um deles pelo preço que me custou e reboquei o outro para casa, para espanto dos filhos que também não entendiam a vantagem ao comprar um lixeirol daqueles.

Deixei-o ficar, e enquanto transferia o carro para meu nome, fui mentalizando todos os que sabiam do negócio, inclusive os filhos, que tinha feito um acordo com uma oficina, que ia pôr aquele carro novinho em folha. E por um preço bem camarada, incluindo a troca dos estofos, todos rasgados. Oficina fora da cidade. E fomos falando nisso.

Um dia, depois de me ter precavido com uma corrente e boa corda, para reboque, avisei em casa que ia levar o carro para a tal oficina. O trabalho deveria demorar umas três semanas. O mecânico e pintor, etc., era ótimo e estava com pouco trabalho.

Saímos de manhã cedo de Lourenço Marques a caminho da Namaacha. Estradas sem subidas, a decrépita Variant lá se mexia mas só enquanto a estrada era plana! Atrás, a minha mulher, mãe da turma, no nosso Jaguar lindão, um Mk-X prateado de 1965, dando apoio,levava as cordas e a corrente. Perto da fronteira com a Suazilândia e África do Sul aparecem os morros. As cordas entraram em acção, rebocaram a velharia até que chegámos ao alto, procurando não atrair muito as atenções de passantes, muito menos da polícia. Dali para a frente era fácil. Já tinha sido previamente explorado, e sabia até para onde ir, sempre a descer, até um pequeno posto de venda de gasolina, com uma espécie de oficina e sucataria, território suazi.

Chegou. Era a descer, foi moleza. O dono do posto, um africano, meia idade, forte, tranquilo, que via ali passar um carro quando o rei fazia anos, aproximou-se.

Good morning.
- Good morning to you too.

Depois desta simples troca de galhardetes, propus o negócio ao homem:

- Eu ofereço-lhe este carro, e você me deixa levar somente as placas de matrícula e os documentos.

Ele olhou-me de alto a baixo, meio desconfiado, e respondeu:

Se não me contar a história completa não vai deixar aqui o carro.Please go ahead and tell me ALL the story.
-Well. Não precisa ficar preocupado. Não tem polícia, roubo, crime algum envolvido. Eu vou deixar o carro aqui, você desmancha, vende peças, faz o que quiser, e eu com os documentos e as placas vou comprar um outro, em bom estado, em Johannesburg e levo de volta para Moçambique!

O homem mostrou os dentes. Satisfeito. Riu. Gostou da ideia. Não só ficou com o carro como me convidou para bebermos um copo em sua casa.

A mãe, passado pouco chegava com o nosso carraço. Seguimos por outra estrada, para não chamar a atenção das alfândegas portuguesas, e voltámos a Moçambique, saindo por Koomati Poort e entrando por Ressano Garcia.

A Variant tinha ficado na oficina!

Cerca de três semanas depois tive que ir a Johannesburg, em serviço. O que já naquela época não faltavam eram lojas de venda de carros usados, e Variants, fabricadas naquele país, havia de montão, em óptimo estado, baratas. Escolhi uma, impecável, paguei e meti-me de volta a casa. Como os documentos tinham sido carimbados na saída para a Suazilândia, foi por lá que regressei, e no meio do caminho, num pequeno e meio escondido canto da estrada, troquei as placas.

A Suazilândia é um país muito simpático. Bonito, pequeno, no meio de montanhas, um belo casino, um pequeno mas muito bem cuidado parque de caça para visitantes, gente afável, óptimo clima.

O meu objectivo não era o casino nem o parque de caça, mas chegar a casa com a Variant recondicionada! Lindona. Da mesma cor – bege – mas com uma pintura que parecia, quase, nova!

 
Já noite, decidi pernoitar numa pequena localidade, Siteki, a uns escassos quilómetros da fronteira com Moçambique. O hotel de africanos, pequeno, extremamente confortável, com um único hóspede: eu! Jantei no restaurante do hotel onde me serviram uma sopa óptima. Mais do que isso, com uma colher de sopa, enorme, como eu gosto, porque não tolero comer sopa com aquelas colheres que mais se parecem com uma espátula e não levam nada. Colher daquelas que eu gosto. Uma maravilha.

Como seria complicado pedir a alguém para me vender ou oferecer uma colher, decidi pelo mais difícil: roubar! O pior é que não havia mais hóspedes no hotel, nem no restaurante! Era difícil receber um prato de sopa, comê-la toda, e no fim não aparecer a colher usada! Mais difícil ainda porque quem servia tinha tirado todos os outros talheres de cima da minha mesa, e certamente ia dar por falta daquele!

No fim do jantar – muito bom – quando me apanhei só, levantei-me furtivamente da mesa, tirei uma colher de outra mesa, escondia-a dentro das calças e fiquei apavorado com medo que me descobrissem o roubo!


Cá vai a colher! A de cima é uma colher... vulgar, inox (ótima, porque a tenho desde que casei!).
A de baixo é a “famosa sequestrada” na Suazilândia. Muito maior, de uma liga “STAINLESS NICKEL SILVER” e com a marca BLADE.
Uma delícia!!! A “colher do vovô”!

Imaginem um branco a roubar talheres num hotel de africanos, no seu próprio país. Sofri. Lá que é verdade, é sim senhor. Só me senti tranquilo quando no dia seguinte pela manhã, depois de ter tomado o café, sem roubar mais nada, paguei a conta, dei uma razoável gratificação como descargo de consciência e meti-me novamente à estrada!

O carro fez um tremendo sucesso. Todos os meus amigos queriam saber onde ficava essa oficina que trabalhava tão bem, tão depressa e tão barato, segundo eu afirmava. Nunca levava comigo o apontamento com o telefone do mecânico, até que a coisa foi esquecendo!
Este carro foi depois connosco de retorno a Angola, vendido a um amigo, e por lá deve ter acabado os seus dias.

Um contrabando...zinho, inofensivo, e um furto, tudo quase no mesmo dia.

A esperança, agora, é que os crimes já tenham prescrito! Ainda penso que os azares que volta e meia me assaltam são os remorsos desses actos!

Mas a verdade é que a magnífica colher de sopa é, até hoje, a colher do, agora vôvô. Não como a sopa com outra.

Escrito em 2001, e revisto em 17/09/2014

 Francisco Gomes de Amorim


publicado por Henrique Salles da Fonseca às 08:56
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Quarta-feira, 17 de Setembro de 2014
PORTUGUESES QUASE ESQUECIDOS – 5



Chamava-se Alexandre Moreira Aranha Furtado de Mendonça, nasceu no Concelho de Penafiel em 1858 (27 de Abril) no seio de família abastada; fez os estudos primários e secundários no Colégio de Campolide, em Lisboa e rumou a Coimbra onde estudou Filosofia e Teologia; entrou para a Companhia de Jesus em 1880 onde seguiu a formação normal de um jesuíta.

Devidamente ordenado, foi-lhe indicada a ida para a Missão da Zambézia, em Moçambique, onde a missionação se revelava muito difícil não só por causa da pressão muçulmana mas sobretudo – veio a própria Companhia de Jesus a constatar – devido aos métodos de ensino ali seguidos sem qualquer pedagogia devidamente adaptada às culturas locais.

Nomeado Superior Geral da Missão por afastamento prematuro do seu antecessor, dedicou-se o Padre Alexandre Moreira (nome por que ficou conhecido) ao estudo das culturas locais a ponto de aprender a falar o Echuabo de que elaborou a respectiva gramática em paralelo com um dicionário. Assim foi que o catecismo passou a ser ministrado nessa língua em todas as redondezas de Quelimane e as conversões aumentaram substancialmente.


Assim como se dedicara afanosamente a combater a escravatura que ainda se praticava por aqueles sertões isolados (sem que alguns missionários de diversas Ordens pudessem dessa prática lavar as respectivas mãos), o P. Alexandre acolhia com toda a hospitalidade os britânicos que iam à Chupanga em romagem ao túmulo de Mary Livingstone, mulher do missionário anglicano David Livingstone, que ali falecera (de malária) em 1862 com apenas 41 anos de idade ficando sepultada junto a um embondeiro onde já se encontrava a campa de um oficial britânico (Kirkpatrick) falecido em 1826. Eis como o Padre Alexandre criou alguns anticorpos junto dos que se viram prejudicados com o fim efectivo da escravatura e com a prática verdadeiramente ecuménica «avant la lettre» para com os anglicanos.

Apesar do grande afecto que as populações apoiadas pela Missão do Zambeze manifestavam ao Padre Alexandre, a República implantou-se entretanto e a Companhia de Jesus foi novamente expulsa de Portugal e respectivas Colónias. Depois de moroso processo de substituição dos jesuítas por missionários de outras congregações, o P. Alexandre Moreira saiu da Chupanga em Abril de 1914 rumo ao Chinde onde embarcaram para a Europa, via Aden, no navio «Gertrud Weissmann». Ao passarem em Mombaça, já o P. Moreira se começou a sentir mal dos diabetes e o médico de bordo, ao perceber que as melhoras não se faziam sentir, determinou que devia desembarcar em Suez. Não chegou lá! No dia 29 de Abril, pelas 15 horas, faleceu depois de ter recebido os sacramentos administrados por outro jesuíta, o P. Dupeyron. Às 18,30 horas desse mesmo dia foi lançado ao Mar Vermelho. Conta o P. Dupeyron – o que foi também observado pelos outros jesuítas e alguns passageiros – que quando o corpo desapareceu nas águas, agitadas havia dias, subitamente acalmaram para voltarem a agitar-se três ou quatro horas depois.

... pero que las hay, hay!

Setembro de 2014

 Henrique Salles da Fonseca

BIBLIOGRAFIA:
«P. Alexandre Moreira Aranha Furtado de Mendonça, SJ (1858-1914) – Missionário e linguista», Francisco Augusto da Cruz Correia, SJ, BROTÉRIA, Fevereiro de 2014, pág. 143 e seg.



publicado por Henrique Salles da Fonseca às 00:01
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Quarta-feira, 20 de Agosto de 2014
“CÂNTICO NEGRO”


Foi este comentário que me acudiu, ao ler o artigo de Salles da Fonseca,  «XICUEMBO – XICUEMBO (3)», sem resposta para as questões postas, julgando que o que deixámos de civilização valeu a pena, em termos universais:


A Igreja e os seus missionários e missionárias foram sempre um bom meio de difusão da cultura e da língua portuguesa, sendo ainda elementos suavizadores da exploração feita pelos colonos. Mas outras “igrejas” havia e missões protestantes, que se iam insinuando e alimentando ódios contra o domínio português, além da catequização maometana e os próprios rituais indígenas  que o governo português sempre admitiu nos seus territórios. Mas o papado, que se “modernizou” em teorias de fraternidade e libertação dos povos, ao assumir a defesa dos “explorados”, mostrou ele próprio  o seu pendor não evangélico de difusor do cristianismo, mas de difusor de doutrinação marxista, que era o que “estava a dar” na altura do terrorismo lá pelas Áfricas, além de que tais mostras de bondade visavam redimir todo um seu passado de esplendor, avidez e crueldade inquisitorial, nem que para isso tivesse que espetar a faca num povo ridiculamente apagado, mas que se arrogara do direito de possuir terras onde, apesar de tudo, contribuíra para levar a palavra de Cristo, o que não era importante. “O próprio clero, por intermédio da rádio, faz-se pregão das teorias democráticas contra o “terrorismo branco”, deturpando por completo a intenção nobre dos que assim reagem”, escrevi eu em 1974 («Pedras de Sal»).

Hoje, que a doutrinação islâmica pretende fazer alastrar cada vez mais a sua influência dogmática e fundamentalista causadora de tantos distúrbios, anda o Papa novamente a evangelizar e a apelar à paz, papel que gosta de assumir. Mas  as misérias que vão por África, de fome e torturas, que levam a África a assaltar a Europa em fuga aterrorizada, parece que lhe são indiferentes, mais propenso às deslocações pela Ásia, com outras comodidades e menos riscos …

 Berta Brás


publicado por Henrique Salles da Fonseca às 09:37
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Terça-feira, 19 de Agosto de 2014
XICUEMBO – XICUEMBO (3)
 
Zavala

Na sequência do que afirmei no final do texto anterior, dá para perguntar agora: se as velhas misérias missionárias em Moçambique (exploração de «prazos» com base no trabalho escravo) se passaram muito antes de a moderna administração portuguesa ter iniciado a corrida do desenvolvimento no âmbito de um modelo em que multidões de pretos, brancos, pardos, mistos e amarelos eram directa e significativamente beneficiados, como se explica que a Igreja se voltasse então contra Portugal apoiando os movimentos de rebeldia? Só tenho uma resposta: a Igreja quis lavar a sua própria história naquelas paragens. Mais: se o próprio Papa se recusava a admitir que a Deus se pudesse chamar Xicuembo e que as almas dos que já partiram e por quem se reza na Missa pudessem ser invocadas por esse nome de Deus, que tinha aquela Igreja a ver com a cultura dos povos que se propunha defender contra um «usurpador» que, esse sim, beneficiava os «oprimidos»? Só tenho uma resposta: a Igreja continuava a desprezar as culturas desses povos e simultaneamente não queria repetir experiências para si difíceis como a dos ritos na Índia. Mais ainda: a Igreja queria transmitir a ideia de ser muito «boazinha», coisa que naquelas paragens nunca fora. Ou será que a Igreja, habituada a preponderar localmente através da sua rede de Missões, temia a concorrência qua a Administração Civil portuguesa lhe fazia com a sua revigorada rede de Postos?

É evidente que não me posso fundamentar em sussurros de confessionário mas toda esta acção adversa da Igreja contra Portugal foi claramente contrária à tradição paulina.

Mas é também claro que esta é argumentação facilmente contestável pela Igreja se afirmar que o segredo do confessionário é inviolável e que a tradição paulina não constitui dogma nem chega sequer a ser imperativa. E tudo continuará sem a explicação lógica que nós, portugueses, lhe poderíamos pedir.

O facto de termos sido nós a dar «boleia» ao cristianismo até às paragens que palmilhámos, isso é «coisa» menor que a Igreja considera por certo como não tendo nós feito mais do que a nossa obrigação como cristãos confessos.

E como teria sido a História se as engrenagens da nossa corrida pelo desenvolvimento não tivessem sido emperradas, nomeadamente pela Igreja?

Como teria sido a História se nós tivéssemos dado a devida importância às culturas genuínas dos povos que governávamos em vez de as vermos apenas como simples folclore?

Como teria sido a História se as nossas Forças Armadas não tivessem sido corroídas pelo Partido Comunista Português como forma de colocar o Império Português nas mãos do Império Soviético?

E as perguntas poderiam continuar, até que alguém nos lembrasse que nunca poderemos conhecer os resultados de experiências não experimentadas.

Valha-vos, moçambicanos, o facto de entretanto o Império Soviético ter implodido.

Valha-vos, moçambicanos, Vocês serem genuinamente civilizados mesmo sem as religiões que os forasteiros vos quiseram impor substituindo Xicuembo pelos nomes de Deus e de Alá.

É que, em Moçambique, o erro de todos os forasteiros, leigos e religiosos, europeus ou outros, foi o de, tomando-vos por atrasados animistas, não reconhecerem a vossa como uma civilização que poderia ter sido aprimorada em vez de combatida.

E agora?

«Agora é tarde e Inês é morta».

Agosto de 2014

 Henrique Salles da Fonseca

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