Há seis meses que o camião que transporta lixo na cidade de Maputo passou também a transportar cadáveres humanos que são depositados na vala comum. Na passada segunda-feira a nossa equipa de Reportagem acompanhou a transladação de mais de trinta e oito mortos da morgue do Hospital Central de Maputo até ao Cemitério de Lhanguene num camião sem taipal na parte traseira e sem qualquer cobertura por cima. Curiosamente o que esconde os corpos é lixo depositado nas redondezas.
Manhã de segunda-feira. O camião de lixo desloca-se à morgue do Hospital Central de Maputo. Mais de trinta cadáveres são lançados feito sacos sem apelo nem agravo. Seu destino é a vala comum no Cemitério da Lhanguene em Maputo.
Parte dos corpos foram carbonizados durante a operação de roubo de combustível no Porto de Maputo. Seu estado de decomposição é notável mesmo nos sacos plásticos de cor preta.
Na morgue emerge um bafo terrível. Muita gente que estava em cerimónia fúnebre na capela afasta-se buscando ar menos poluído.
Por cima dos cadáveres é depositado boa quantidade de lixo (hospitalar e não só) para que toda gente na via pública pense que o camião é mesmo de lixo, estratégia de dissimulação que muita gente só vai perceber ao ler esta Reportagem.
Sem taipais na parte traseira e sem qualquer cobertura por cima da funesta mistura de lixo e cadáveres em decomposição, o camião sai da morgue e enfrenta o complicado trânsito nas ruas da capital.
Nos engarrafamentos o camião pára. Viaturas em redor cortejam cadáveres sem saber. O cheiro fedorento irrita peões e automobilistas mas ninguém sabe ao certo qual é a sua origem.
“Está a cheirar muito mal. Passa algo estranho por aqui. Será aquele camião de lixo?”,ouvimos muita gente a perguntar.
E o camião finalmente chega ao cemitério, nós atrás dele e suportando o estranho perfume que espalha. A vala comum está bem ao lado das casas de alguns moradores do Bairro Luís Cabral.
Ali as pessoas estão habituadas a comer a ver cadáveres a serem despejados, um cenário que faz lembrar alguns filmes de terror. Contudo naquela manhã de segunda-feira ninguém suportou o triste espectáculo que se seguiu.
O camião, para além do cheiro nauseabundo, já espalhava sangue de cadáveres que se soltavam do lixo a cada solavanco das ruas do bairro. Os que estavam para comer abandonaram os pratos. Os que conversavam simplesmente calaram. Lenços foram colocados sobre nariz e a boca.
A procissão fúnebre seguiu até buraco de baixa profundidade. O camião de lixo aproxima-se. Solta a pá. Primeiro os trabalhadores removem o lixo sobre os cadáveres. Em seguida mais de trinta corpos são lançados, em simultâneo, pela pá basculante. Caem em terra movediça com estrondo que a população mesmo de longe consegue ouvir.
O ar fica rapidamente poluído. Ali ninguém quer colocar os seus pulmões em serviço. Adultos, velhos e até crianças assistem aquilo com alguma revolta.
Mais uma vez o lixo é depositado sobre os cadáveres. Um pouco de areia é colocada para tornar o cenário menos picante.
Não se pode encher a vala com tanta areia porque mais cadáveres seriam depositados dois dias depois e o espaço escasseia.
Terminado o serviço aos mortos, o camião parte do cemitério desta feita para carregar lixo de verdade. É possível segui-lo pelo trilho de sangue que espalhou nas redondezas.
O cheiro serve apenas como complemento no rasto tenebroso de uma viatura que parece não deixar saudades por ali. Vimos senhoras a chorar mortos que não lhes pertencem, mortos que afinal não descansarão em paz.
Seu sossego dura até o sol desaparecer. A noite os cães entram em festa. Matilhas deslocam-se à vala comum e encontram alimento recém-chegado. Cada um escolhe um pedaço de corpo humano e delicia-se como pode.
Não é de estranhar, por isso, dia seguinte um morador encontrou braço de uma criança morta arrastado para o seu quintal pelo cão da casa. O animal nada de especial fez do que trazer tacho para casa para se refastelar na maior tranquilidade.
Corpo de uma senhora foi também arrastado pela matilha para a rua e já não estava completo. Foram os próprios habitantes nas redondezas que fizeram questão de levá-lo de volta à vala comum.
Tudo isto acontece porque, como explicamos, os corpos são depositados a baixa profundidade.
Neste ponto alertamos para os riscos que isso pode causar à saúde pública. O cão, alimentando-se de carne humana putrefacta, pode configurar um vector de doenças de vária índole, pois coabita com as pessoas e por vezes partilha instrumentos de utilidade doméstica.
São mortos, mas devem ser respeitados
- Natércia Chaúque
Natércia Chaúque mostra tristeza com o que está a acontecer na transladação de corpos. “Estão mortos, é verdade, mas são pessoas. Não têm famílias, mas o Estado não pode ultrajá-los publicamente e até irritar os vivos”, disse, visivelmente revoltada.
Acrescentou que o Conselho Municipal de Maputo devia arranjar uma viatura apropriada. Uma viatura com cobertura, pois com o actual camião crianças são forçadas a assistir cenas impróprias para a sua idade.
“ Na segunda-feira passamos mal. Trouxeram pessoas não estavam tapadas. Vimos sangue a escorrer no camião, transbordando para as ruas. É indescritível o cenário da segunda-feira. Vimos corpos empilhados numa camioneta de caixa aberta, libertando um cheiro que se anuncia a quilómetros de distância”,contou.
Ser humano não é lixo
- Angélica Francisco
Angélica Francisco disse à nossa Reportagem que o facto de corpos humanos serem levados à vala comum não implica que são lixo. “Onde está o nosso lado humano?”, questiona.
Acresntou que crianças são as maiores vítimas deste espectáculo macabro e crescem traumatizadas.
Sublinhou, por outro lado, que a vala comum está cheia e os corpos estão expostos para a festa dos cães. “Podemos ficar doentes porque cães vivem nos nossos quintais”, alertou.
Um cão levou
braço de uma criança
- Samuel Timóteo
Samuel Timóteo disse que a colocação de cadáveres há baixa profundidade abre espaço para festins nocturnos, destacando-se cães como protagonistas bastante activos.
“Certo dia, um vizinho acordo sobressaltado ao ver seu cão a deliciar-se com braço de uma criança trazido da vala comum”, conta-nos bastante consternado.
Ressalvou que desde o sucedido muitos moradores nas cercanias do cemitério optaram por matar os seus cães.
O nosso entrevistado, cansado de viver em cenários tenebrosos, optou por abandonar o bairro Luís Cabral, vivendo presentemente no Dlhavela. “Não aguentava com cheiro libertado por corpos em decomposição sobretudo nos dias de calor”, afirma.
E lançou uma proposta: “por que razões não cremam os corpos não reclamados? Isso economizaria espaço e permitiria vida mais saudável aos vizinhos do cemitério”, rematou.
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