Em seu relatório, divulgado na semana passada, a CNV (Comissão Nacional da Verdade) recomendou a punição de agentes públicos responsabilizados por violar direitos humanos no regime militar. Isso implica rever a Lei da Anistia (1979) que, segundo a CNV, não ampara agentes do Estado.
Contrariando pareceres da Advocacia Geral da União eda Procuradoria Geral da República e decisão do STF, a comissão interpreta equivocadamente a Lei da Anistia e o poder de declarações, resoluções, tratados e convenções da ONU.
Declarações e resoluções não são mandatórias, ao contrário de Convenções e Tratados - só para os países que aderirem. A adesão só terá validade no Brasil se aprovada no Congresso e ratificada pelo presidente da República.
Em 1979, o Brasil não ratificara nenhum tratado ou convenção internacional que impedisse a anistia tal como foi concedida. Os ratificados após 1979 não podem retroagir contra os anistiados, conforme cláusulas pétreas da Constituição de 1988 (art. 5º; incisos XXXVI e XL).
A comunidade global não contesta, por exemplo, a anistia concedida pelo Estado na África do Sul, nos anos 1990, que contemplou seus agentes e militantes de movimentos armados responsáveis por crimes contra a humanidade nos anos de apartheid. Não contesta, também, a concedida na Espanha, no Pacto de Moncloa, ao final do governo de Franco, em 1977.Ou seja, lá, como aqui, não houve autoanistia e sim anistia geral concedida pelo Estado, inclusive a seus agentes.
Pelo critério da CNV, os crimes da luta armadano Brasil também seriam crimes contra a humanidade, pois os assassinatos, sequestros, torturas e atos terroristas contra grupos opositores, armados ou não, eram uma política sistemática e generalizada para tomar o poder.
Prescrição de crimes
Por que a CNV enquadrou só os agentes do Estado? No voto do ex-ministro do STF Eros Grau, relator da ADPF 153 (Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental), consta: "o Brasil não subscreveu a convenção sobre imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade nem qualquer outro documento que contivesse cláusula similar; o costume internacional não pode ser fonte de direito penal, sem violação de uma função básica do princípio da legalidade".
Na Constituição, a prescrição só caiu para crimes de racismo e conluio armado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, incisos XLII e XLIV). O Brasil só ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992 e ela também acolhe o Princípio da Legalidade (art. 9º): "não há crime nem pena sem lei que o tipifique".
Ninguém pode ser julgado por tortura cometida nos anos 1970, pois ela só foi tipificada em 1997, sendo, até então, enquadrada como lesão corporal, dano moral ou abuso de autoridade. Mas ainda assim é prescritível.
Só em 2001 o Brasil aderiu à CIDH (Corte Interamericana de Direito Humanos), mas com a ressalva de reconhecer a competência da corte para julgar crimes cometidos após 1998. Se a corte aceitou a adesão com essa ressalva, não poderia julgar o Brasil por crimes no Araguaia, nos anos 1970.
Assim, sua sentença de 2010 não tem validade.Agentes acusados por crime de desaparecimento forçado estão amparados também pela Lei Nº 9.140/1995 - Lei de Indenizações - que considerou mortos, para todos os efeitos legais, os desaparecidos no regime militar. Portanto, não podem estar sequestrados.
Já a Assembleia Geral da ONU adotou os "Princípios e Diretrizes sobre o Direito à Reparação para Vítimas de Violações de Direitos Humanos", pelos quais os Estados devem: investigar e tomar providências contra os responsáveis por violações de direitos humanos, inclusive indivíduos e entidades; garantir a reparação das vítimas; revelar a verdade em documentos de ensino.
Para ser coerente com seu critério de seguir documentos internacionais, a CNV teria de esclarecer os crimes da luta armada - que deixaram 119 mortos e centenas de feridos e mutilados - propor a publicação das violações em documentos de ensino e responsabilizar as lideranças dos grupos armados revolucionários, hoje em altos escalões políticos.
A anistia pacificou o Brasil em históricos conflitos internos. Se perder a credibilidade, este instrumento de pacificação nunca mais será eficaz. Rever a anistia é uma irresponsabilidade política e traz insegurança jurídica.
Em 1979, a anistia geral e irrestrita era condição essencial para a pacificação e redemocratização sem retrocessos, e esta foi a intenção do legislador, ciente dos anseios da sociedade. Este foi o "espírito da lei" e não se admite interpretações fora daquele contexto histórico.
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