Monday, June 3, 2013

A greve (dos médicos)

Canal de Opinião
Por: Armando Cuna
 
Maputo (Canalmoz) - Dia 06 de Maio de 1989. É sábado e, integrado nos festejos comemorativos do Dia Internacional dos Trabalhadores, a Faculdade de Engenharia da Universidade Eduardo Mondlane, a mais antiga das únicas duas instituições do ensino superior em Moçambique (nessa altura, só existiam no país a UEM e a Universidade Pedagógica), organizou um torneio de futebol de salão que decorria nas instalações da hoje Faculdade de Direito daquela universidade. São 16h00. Termina o jogo. O Departamento de Engenharia Química (ainda hoje não consigo perceber como é que aquilo foi possível?!) acaba de sovar copiosamente o Departamento de Engenharia Civil por um concludente 6 a 2.
- “Malta, vamos passar do self. Tomei conhecimento de que os nossos colegas que ali vivem, recusaram-se a almoçar hoje. Vamos saber o que é que se passa e em que é que lhes podemos apoiar”, convida o Ibraimo Remane, nosso colega de turma.
Chegados ao self, deparamos com um ambiente tenso, de cortar à faca. “Pessoal, isto não pode continuar assim. Já chega. Estes tipos não nos podem continuar a tratar como se fôssemos animais”, gritavam algumas vozes, secundadas pela totalidade dos estudantes ali residentes (na sua maioria, no self viviam os estudantes oriundos das províncias).
Apesar de profundamente revoltados com a situação e acharem que as coisas deveriam ser imediatamente alteradas; apesar de todos considerarem inaceitável a qualidade de alimentação ali confeccionada para o consumo dos estudantes, ninguém ousava convidar os colegas para, em sinal de protesto, irem para a greve. E não ousavam porque num passado muito recente, por contestarem situações de maus tratos infringidos aos estudantes, algumas pessoas tinham sido compulsivamente incorporadas no Serviço Militar Obrigatório. Não porque os estudantes tivessem medo de ir à tropa. Simplesmente porque para lá eram enviados como forma de punição.
Passaram dois dias e o ambiente foi ficando mais tenso. Segunda-feira, uma comissão de estudantes dirige-se ao Gabinete do Dr. Mário Machungo, então Primeiro-Ministro de Moçambique. “O Dr. tem que ficar a par do que está a acontecer aqui. Por sermos filhos de gente pobre, eles não podem pensar que têm o direito de nos tratarem como animais”, pensavam, com honestidade, os estudantes.
Machungo recusa-se a receber a comissão. Ficamos cerca de 6 horas à espera. Em vão. Não nos quis receber. Desiludidos, regressamos ao self, onde uma assembleia de estudantes bastante concorrida nos aguardava. Os acontecimentos precipitam-se. Os estudantes da Universidade Eduardo Mondlane decidem entrar em greve, por tempo indeterminado. É a primeira greve de que há memória no Moçambique independente.
De forma pronta e inequívoca, a greve recebe o carinho e apoio de vários sectores da sociedade. O músico José Mucavele, munido da sua guitarra, veio cantar para os estudantes. O Jornalista Carlos Cardoso esteve sempre do nosso lado, oferecendo-nos seu ombro solidário e ajudando-nos na busca de melhores soluções para ultrapassar o problema. Pessoas anónimas vieram oferecer comida para alimentar os estudantes amotinados.
Contudo, também não faltaram vozes condenando a posição dos estudantes. O coro principal dessas vozes vinha principalmente das Organizações Democráticas de Massa. Primeiro a OMM. A seguir a OTM. Nem a OJM se conseguiu posicionar do lado dos jovens estudantes. Em comunicados cheios de adjectivos acusatórios, todos, de dedo em riste, vieram exigir a pele dos pobres estudantes.
Joaquim Chissano é o Chefe de Estado em exercício. A situação do país é péssima. No mercado falta tudo. A RENAMO sitiou todas as cidades. A partir das 17h00 tu não saías de Maputo sequer para a Matola. Não ias a Marracuene. Na arena internacional, a China Comunista acaba de esmagar brutalmente, com mortes, prisões e tudo, uma manifestação de estudantes na Praça de Tiene Me. Há vozes tentando empurrar o Presidente para uma solução destas. É aqui que emerge, incólume, Chissano imbuído de um profundo sentido de Estado que todo o mundo tanto admira. Numa situação em que o mais fácil, se calhar era mandar a Polícia prender, bater, matar, ele privilegia o diálogo como forma de lograr o entendimento entre as partes desavindas. Mais do que nunca, acredito que só com uma pessoa como ele se poderia ter assinado e mantido o Acordo Geral de Paz.
Chissano também tinha uma Comissão Política (Bureau Político) que convocada, percebeu rápido que em situações daquelas, embarcar apenas em posições de condenação, não conduziria a nada. O Presidente Chissano e a sua Comissão Política perceberam que a Pátria só cresce quando, apesar das diferenças PAI e FILHO, conversam. Era necessário negociar (e negociar a sério) com os estudantes. Perceberam que fingir que se está a negociar, partindo sempre do princípio de que só tu é que és esperto e os outros apenas uma cambada de parvos, não leva nunca a lado nenhum.
Para negociar com os estudantes, o Presidente Chissano não encoraja nunca Mário Machungo – como estranhamente a Comissão Política da Frelimo mandata Vaquina a fazer – a endurecer posições. Sabiamente, Chissano cria uma comissão negocial formada por: Jorge Rebelo (Membro do Bureau Político), Júlio Carrilho e do saudoso Eduardo Arão (Membros do Secretariado do Comité Central).
Ultrapassados os receios e desconfianças iniciais próprios de qualquer negociação, construiu-se um ambiente tal que permitiu que se superassem os problemas que opunham as partes. Durante cerca de cinco longos anos, eu trabalhara com o Arquitecto Júlio Carrilho no MOPH, pessoa por quem nutria muito respeito. Este meu sentimento era igualmente partilhado por outras pessoas da comissão de estudantes. Eu creio que o Rebelo, o Carrilho e o Arão estavam profundamente convencidos de que do outro lado da mesa não estava sentado nenhum antipatriota a quem devessem ridicularizar e/ou combater. Não estava sentado ninguém que amasse a Pátria menos do que eles. Sabiam que à sua frente estavam sentados jovens, se calhar com menos experiência do que eles, mas a quem deveriam tratar com muito respeito e sem nunca confundi-los com imbecis ou atrasados mentais. Todos os encontros havidos com esta comissão foram momentos profundamente didácticos e cheios de pedagogia. Naquilo que a jovem comissão de estudantes percebia que a comissão do Presidente tinha razão, anuía sem problemas. Nas questões em que os representantes dos estudantes tinham razão, a comissão nomeada pelo Chefe de Estado acatou. A discussão decorreu sempre num ambiente de profundo respeito e cordialidade.
Embora nessas ocasiões existam pessoas que usam a televisão para falarem de qualquer maneira e promoverem suas vaidades – como esta porta-voz do MISAU de quem Manguele se deveria desfazer imediatamente – abundam mais pessoas de bem, sempre dispostas a ajudarem no que podem. Naquele intenso momento negocial, foi muito importante para a comissão de estudantes ouvir e beneficiar de opiniões edificantes de pessoas como o Professor Narciso Matos e o Jornalista Mia Couto.
Para pararmos com a greve, a argúcia intelectual do Professor Carmo Vaz foi-nos de extrema utilidade. Carmo Vaz substituía na altura da eclosão da greve o Dr. Rui Baltazar, Reitor da UEM, de Visita à República de Cuba. Por recomendação da comissão nomeada pelo Presidente, a comissão de estudantes encontrou-se com o Primeiro-Ministro. Era ao Governo que competia resolver as questões colocadas pelos estudantes. Mário Machungo inicia a reunião acusando os estudantes de estarem a mando de uma agenda estrangeira que nada tinha a ver com o país. Era uma acusação absurda e sem sentido, prontamente desmentida pela comissão de estudantes e que em pouco tempo explicou àquele governante a sua versão sobre os factos. A linha de argumentação dos estudantes era de uma coerência imbatível. Sem sequer fechar a reunião, Machungo abandona precipitadamente a sala, deixando no ar a exigência de os estudantes deverem parar com a grave para que houvesse qualquer negociação. De imediato, Carmo Vaz convida a comissão de estudantes para ir beber um copo na casa dele e conversar. O convite é prontamente aceite e, em coluna, seguimos o Professor até à casa. Servido o copo, Vaz vai directo ao assunto:
-Eu quero, em primeiro lugar, felicitá-los pela forma clara como vocês expuseram ao Primeiro-Ministro à situação prevalecente no self. Vocês foram realmente convincentes e eu posso vos jurar que o Primeiro-Ministro percebeu a vossa posição. Em segundo lugar, quero que percebam que neste momento, cabe a vocês entenderem o posicionamento do Primeiro-Ministro: Ele é chefe de um Governo e não pode aparecer publicamente a dizer que os estudantes têm razão nas suas reivindicações porque se tomar tal posição, todos os sectores que enfrentam dificuldades, em cadeia podem também entrar em greve, o que criaria uma situação de desordem social. Certamente que não é isso que vocês querem. Discutam com os vossos colegas para pararem com a greve e a situação ficará mais facilitada para todos.
Saímos da casa do Professor convencidos de que, captada a nossa mensagem pelo chefe do Governo, a posição mais sensata a tomar era discutir com os nossos colegas para se chegar ao fim da greve. E foi o que fizemos no dia seguinte. Numa reunião muito concorrida, foi decidido o fim da greve. A Universidade voltou a funcionar normalmente. Durante algum tempo, a comissão de estudantes foi se reunindo com a comissão nomeada pelo Presidente Chissano. Num desses encontros, Jorge Rebelo nos informa que o Chefe de Estado deseja ter um encontro com todos os estudantes da UEM. O encontro aconteceu alguns dias depois no Pavilhão da UEM. O Presidente veio à nossa casa para se reunir connosco. E isso não fez dele uma pessoa pequena. Pelo contrário. Os estudantes perceberam que eles também faziam parte das mil preocupações do Presidente. Eles perceberam que cabiam na agenda certamente muito apertada do Chefe de Estado. Chissano tratou os estudantes de forma muito educada. Em nenhum momento lhes confundiu com malfeitores. Procedeu sempre como o pai que apesar de estar em profundo desacordo com o filho, não o renega e nunca abdica da sua posição de pai.
Acabada a greve, todos sentimos que Chissano era uma pessoa íntegra. Todos os acordos a que chegamos com a comissão por ele nomeada e com o Governo foram escrupulosamente compridos. Nenhum dos líderes daquela greve foi molestado. Nenhum estudante foi preso ou compulsivamente mandado para a tropa por causa da sua posição na greve. Ninguém ficou reprovado de propósito por causa de tal ou tal opinião, expressa durante os acontecimentos. A comissão que ele criou foi realmente para negociar com os estudantes. Rebelo, Carrilho e Arão negociaram sempre com base em boa-fé e o país só saiu ganhando com isso.
Qualquer dos Médicos em greve tem plena consciência de que o prolongamento da greve pode prejudicar, de forma irreversível a sua avó, o seu irmão, o amigo, pessoas que ele tanto ama e quer vivas eternamente. Eu não tenho a menor dúvidas de que a prevalência da situação lhes deve estar a doer muito. É leviandade pensar que o que está a acontecer lhes é indiferente.
A Comissão Política da Frelimo diz que os que incitam à greve dos Médicos querem travar a luta contra a pobreza? Esta posição no mínimo é caricata. Quem é que trava a luta contra a pobreza? É o Médico quando quer ver implementado o memorando de entendimento logrado há alguns meses atrás com o Governo ou este quando, caprichosamente, reprova estudantes finalistas de uma universidade e com isso lhes atrasa um ano de vida? Vaquina diz que na escola onde se formou médico aprendeu que “não se abandonam doentes, não se tocam apitos em recintos hospitalares…” Estou em crer que lá também devem ter ensinado ao Dr. Alberto Clementino Vaquina que “A palavra do Rei Não Volta Atrás”. Em Memorando de Entendimento o MISAU comprometeu-se a fazer A, B e C? Então que faça.
PS: 1-A acrescentar apenas 10 Municípios de 5 em 5 anos e segundo o Professor Doutor António Francisco, o processo de autarcização do país vai durar mais de 50 anos. Não pode ser. Temos que andar muito mais depressa.
2-Há 5 anos que todos sabemos que mais Autarquias devem ser aumentadas às existentes. Porque é que apenas faltando menos de 6 meses para as eleições acontecerem é que são conhecidas as Autarquias abrangidas? A quem é que isso beneficia?
3-Na altura em que estou a fechar esta carta, tomei conhecimento de que o Governo mandou prender o Dr. Jorge Arroz. A que é que isso vai conduzir? De Governador de Tete, Vaquina mandou a FIR espancar (ou permitiu que isso ocorresse) brutalmente os reassentados de Cateme. O que é que se ganhou com isso?
(Armando Cuna)

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