Por: Alfredo Manhiça
Embora seja maquiavélica, a declaração do presidente da República de Moçambique, Armando
Guebuza, contém duas verdades inegáveis que, provavelmente, o seu autor não teve em mente,
quando assim se pronunciou no dia 6 de Junho do ano em curso, na Correia do Sul, quando
foi interpelado pelos jornalistas acerca da greve dos profissionais de saúde que tinha iniciado no dia 20 de Maio de 2013.
De facto, a riqueza de um Estado, como a riqueza de uma família não é fruto do acaso. O chefe de
família que pretende criar riqueza para a própria família deve dotar-se da arte da racionalização
das entradas e das despesas: não se pode permitir, por exemplo, de fazer gastos superiores ao seu
vencimento; não se pode permitir de contrair dívidas para sustentar vícios e caprichos; não pode abandonar-se irresponsavelmente ao supérfluo e deve, pelo contrário, cultivar o hábito de transparência na administração e na contabilidade dos bens da família. Portanto, a primeira verdade encelada na astuta declaração do presidente moçambicano é precisamente esta: um Estado fundado sobre uma administração do tipo neopatrimonial – onde a classe dirigente se atribui vencimentos desproporcionalmente muito mais altos em relação à economia do País; onde a classe dirigente se distingue pelo esbanjamento dos recursos económicos em regalias e gastos desnecessários - pode (como acontece em Moçambique) criar ricos, mas não poderá nunca criar riqueza.
Este tipo de administração não é capaz de criar riqueza nacional porque as entradas que deveriam
servir para a formação do capital humano, para o desenvolvimento do sector sanitário, para a criação
de empregos, etc., são sistematicamente drenadas para alimentar o aparato neopatrimonial. Já que
o poder do tipo neopatrimonial é, simultaneamente, consequência e causa da ilegitimidade do seu
detentor, este precisa, constantemente, de enormes quantidades de recursos económicos e humanos
para perpetuar o seu controlo eco-nómico, político e social a todos os níveis. Em Moçambique, além
dos recursos que são sistemati-camente drenados para financiar a vastíssima rede dos interesses
económicos do presidente e da sua família, muitos outros recur-sos nacionais são drenados para
financiar os interesses privados e as regalias dos membros mais in-fluentes do partido. Além destas
duas válvulas, os recursos econó-micos do Estado moçambicano são ulteriormente drenados para
aplacar o poder legislativo e o poder judiciário. No aparato com-plexivo da administração pública
moçambicana, estes dois poderes foram, de facto ou de jure, com-pletamente castrados pelo poder
executivo. Mas, reconhecendo--lhes una latente capacidade para «furar o esquema», o poder exe-cutivo e o partido procuraram sempre apaziguá-los com venci-mentos altos e muitas regalias.
Na lógica interna de uma admi-nistração de tipo neopatrimonial, o circuito dos privilegiados que, em
troca dos privilégios recebidos, ga-rantem a continuidade do sistema, aumenta constantemente o custo da compensação pelos serviços que prestam ao governo neopatri-monial. De facto, na Carta Aberta ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República de Moçambique – subscrita por mais de 80 médicos especialistas, fundadores dos Serviços Nacionais de Saúde e membros da Associação dos Médicos Moçambicanos (AMM), tornada pública no dia 4 de Junho de 2013 - lê-se que «o orçamento do Estado para a Saúde, no decurso dos últimos seis ou sete anos, diminuiu em cerca de 50 por cento, em alguns outros sectores, de mui-to menor relevância social aumentou em 10 vezes, 1000 por cento».
Estes outros sectores de «muito menor relevância» são, de facto, de uma imprescindível relevância
para a perpetuidade do sistema. São eles que sustentam o sistema. Para colmar a diferença existen-te entre o custo sempre crescente da perpetuidade do poder cliente-lar e os limitados recursos nacio-nais disponíveis, o Governo da Frelimo activou também, já desde há muito tempo, o sistema de drenagem dos financiamentos prove-nientes dos programas de ajudas humanitárias e dos empréstimos
provenientes dos Países aliados, dos bancos privados e das Instituições Financeiras Internacionais
– destinados para impulsionar o desenvolvimento ou para socorrer as vítimas das calamidades natu-rais – para financiar interesses pri-vados da nomenclatura do partido no governo e custear as regalias
daqueles que têm o poder oculto
de minar a estabilidade do sistema
com a sua simples recusa de cola-boração. De facto, não existe - e
não pode existir nenhum País no
mundo – que seja capaz de criar
riqueza nacional, com uma admi-nistração pública desta natureza.
Moçambique é, de facto, pobre e
continuará pobre ainda por muitos
anos porque mesmo as futuras ge-rações devem continuar a pagar a
dívida externa contraída hoje, não
para financiar o desenvolvimento
do País, mas para financiar os inte-resses económicos do presidente,
da sua família, dos membros da
seu circuito e alimentar os vícios
e caprichos da rede dos cúmplices.
A segunda verdade involunta-riamente declarada por Armando
Guebuza é que os recursos na-cionais não são – nunca foram e
não poderão nunca legitimamente
ser – propriedade privada do pre-sidente, do partido Frelimo ou de
quem quer que seja. Os recursos
nacionais são, por direito natural,
propriedade de todos os moçam-bicanos e o único vínculo que ex-plica a relação de obediência entre
os governados e os governantes
é o acto eleitoral, através do qual
os governados confiaram aos go-vernantes a administração do bem
que tem come único proprietário
a inteira comunidade e, com esse
acto, o presidente e o seu Gover-no comprometeram-se a instaurar
uma administração pública que
seja do interesse da comunidade
na sua totalidade e não das par-tes. Nisto se funda a legitimidade
do presidente, do seu executi-vo e daqueles que fazem as leis.
Despojada do seu significado
maquiavélico, e conferindo-lhe
o seu significado autêntico, a de-claração de Guebuza reconhece
que os recursos nacionais «devem
ser distribuídos por todos os mo-çambicanos». Ora, já que olhando
para a realidade não é o que está
a acontecer no terreno, o chefe do
Governo moçambicano e presi-dente do partido no governo ad-mite, implicitamente, ter falido na
Missão que o eleitorado moçambi-cano lhe tinha confiado através do
processo de votação, no ano 2009.
Ora, não obstante Guebuza re-conheça honestamente que ele e o
seu partido traíram a confiança dos
moçambicanos e romperam o vín-culo estabelecido entre os gover-nados e os governantes, no seu de-senho maquiavélico, não só quer
manter as ilegítimas conquistas até
aqui feitas, mas quer também au-mentar o seu poder e influência no
partido e no sector público. Se o
reconhecimento da má gestão dos
bens públicos protagonizada pelo
seu Governo e pelo seu partido
fosse acompanhado pela vontade
política de mudar este estado de
coisas, então, durante a sua visita
ao Hospital Central, no dia 9 de
Junho de 2013 - vigésimo dia da
greve – o chefe do Estado, em vez
do discurso demagógico que pro-feriu, teria, por exemplo, apresen-tado um anteprojecto de reforma
do sector público, que visasse eli-minar as despesas faraónicas inú-teis do seu executivo e da classe
dirigente do partido, e fosse capaz
de promover a transparência e a
responsabilização na administra-ção pública. Pelo contrário, Gue-buza, hábil, como sempre foi o seu
partido no uso do instrumento de
desinformação, dividiu os profis-sionais de Saúde entre os «que se
preocupam com os doentes e os
que não dão importância à vida hu-mana e dos seus compatriotas». O
discurso proferido pelo presidente
da República naquela ocasião con-tinha já o maquiavélico plano de
acção que o Governo tinha formu-lado para sufocar a greve: além do
instrumento da repreensão e inti-midação, com o seu discurso de-magógico, o presidente apostava
no instrumento da desinformação
finalizada a dividir e/para fragili-zar os grevistas. De facto, dividin-do os profissionais de Saúde entre
aqueles «que se preocupam […]
com os doentes» e aqueles que
«não dão tanta importância à vida
humana», o presidente deixou cla-ro que o seu Governo iria ocupar--se só daqueles que, embora sob
condições injustamente precárias,
estavam dispostos a «engolir sa-pos» e quem não estivesse dispos-to a aceitar este estado de coisas
seria automaticamente «podado».
No seu discurso da desconvoca-ção da greve, proferido no dia 15
de Junho, o presidente da AMM,
Dr. Jorge Arroz, revela ter perce-bido muito bem a mensagem do
PR e temendo, justamente, ver a
multidão dos seus colegas a ser
sacrificados no altar da crueldade
do Governo de Guebuza – sem po-der contar com a protecção judici-ária – decidiu suspender a greve
alegando, como tinha sugerido o
“Boss”, o «respeito pela dor e so-frimento do povo solidário». Em
outras palavras, o Dr Arroz e to-dos os grevistas perceberam que o
Governo que vinha já violando os
seus direitos laborais, não se im-portava – e já tinha posto o aparato
da «máquina» em acção – de vio-lar também o seu direito á greve.
A táctica adoptada pelo Go-verno de Guebuza para sufocar a
greve dos profissionais de Saúde
constitui uma gravíssima violação
de uma das principais regras e fun-damentos da democracia. É verda-de que o primeiro requisito para
que um Governo se chame demo-crático é que tenha sido eleito por
um sufrágio universal dos que têm
direito. Mas é também verdade
que num País que se diz democrá-tico as opiniões devem ser livres,
isto é, formadas livremente e não
patrocinadas nem sugeridas pelo
governo através do instrumento
da demagogia ou da intimidação.
De facto, o uso do instrumento
da desinformação demagógica na
questão da greve dos profissio-nais de Saúde, foi paralelamente
combinado com o uso massivo
do instrumento da repreensão e
intimidação activado com o es-pancamento e detenção dos enfer-(Continua na página seguinte)
«Este País é pobre e o pouco que temos… temos que distribuir por todos
os moçambicanos»(Armando Guebuza)
meiros no Distrito de Magude; e
foi ganhando consistência com a
detenção, durante quatro horas, do
presidente da AMM, Dr. Arroz, na
noite do dia 26 de Maio de 2013;
a intimação a prestar declarações
no Comando da Polícia da Repú-blica de Moçambique (PRM) da
cidade de Maputo do represen-tante da Comissão dos Profissio-nais de Saúde Unidos (CPSU),
Adolfo Bau; a exoneração do
director distrital e Médico-chefe
de Ribáuè; e a intimação de pelo
menos 18 funcionários do Centro
de Saúde de Xipamanine, para
responder a processos disciplina-res no âmbito da greve laboral.
Analisando este quadro de
acontecimentos, faz pensar que
Moçambique já deixou de ser uma
sociedade política e está exacta-mente naquilo que o filósofo in-glês e teórico do Estado moderno
do século XVII, John Locke, cha-mou de «estado de guerra». Se-gundo Locke, se instaura o «esta-do de guerra» quando um homem
exerce ilegitimamente o poder
da força sobre um outro homem.
O modo como terminou a
«aventura» dos profissionais de
Saúde, poderá marcar, não só o
fim das reivindicações no sector
de Saúde, mas também um fim
absoluto do direito em si mesmo
de fazer a greve em Moçambique.
Se assim fosse, o autoritarismo da
Frelimo de Guebuza sairia fortifi-cado e o seu neopatrimonialismo
consolidado. De facto, enquanto
os outros profissionais do sector
público – principalmente os pro-fessores e a Polícia, e cada um
dos moçambicanos – preferirem
a táctica do «Free Rider», a pos-sibilidade que o instrumento da
greve continue a ser utilizado para
induzir o Governo de Guebuza a
redimensionar o seu modo de ad-ministrar o bem comum é remota.
De origem económica, no âmbito
político se chama «Free Rider» o
individuo ou grupo de indivíduos
que se subtrai do dever de supor-tar os custos necessários de um
determinado benefício público
que requer a participação de to-dos e espera poder «colher onde
não semeou», beneficiando-se
efectivamente dos frutos resul-tantes da participação dos demais.
Para obrigar o governo neopa-trimonial de Guebuza a sentar--se à mesa das negociações com
os profissionais de Saúde, numa
condição de equilíbrio de forças,
era necessário que os outros prin-cipais sectores públicos como a
Educação, a Polícia, os agentes
de segurança e outros pequenos
sectores públicos abandonassem
a táctica da «boleia» - do «Free
Rider» e arregaçassem as mangas
para protestar publicamente con-tra o ilegítimo governo autoritário
e arrogante de Guebuza porque,
como diz o teórico inglês do Es-tado moderno, «todo aquele que
no exercício da autoridade que
lhe foi conferida [pelo povo] ex-cede o poder a ele conferido pela
lei, e faz uso da força que ele tem
sob o seu comando para conspirar
contra os seus súbditos o que a lei
não lhe permite, deixa automati-camente de ser um magistrado e,
agindo sem autoridade pode ser
oposto, como qualquer outro ho-mem que com a força viola o di-reito de outrem» (II Tratado, 202).
É bem sabido que o sector da
Educação é o mais partidariza-do. Mas precisamente ali onde a
opressão é maior, a vontade de li-bertar-se devia fazer-se sentir com
proporção ainda maior. Se os do-centes não tivessem a intenção de
aderir à greve porque, de qualquer
modo, eles também, tiram certos
benefícios do corrupto sistema
administrativo de Guebuza, então
seriam os estudantes a promove-la
porque são eles que todos os dias
aturam professores desmotivados,
preocupados, não a melhorar a pró-pria prestação académica, mas a
caçar subornos e, é a eles (os estu-dantes) que no fim de cada percur-so académico se atribui um pedaço
de papel sem competências cor-respondentes, porque os recursos
económicos nacionais e as ajudas
externas destinadas a melhorar as
condições do ensino são sistema-ticamente drenados para sustentar
os filhos da classe dirigente, que
estudam nas escolas e universi-dades mais «chiques» no exterior.
Sabe-se igualmente que a Força
da Intervenção Rápida (FIR) foi
criada como um instrumento ma-leável nas mãos do presidente da
República para vigiar e «discipli-nar» a acção da PRM e dos outros
agentes da segurança. E por isso,
torna-se difícil qualquer decisão
autónoma, sobretudo uma pro-testa, da parte da Polícia porque
enquanto, por um lado, a ela foi
confiada a dura e antipática missão
de sufocar a contestação popular,
por outro lado, ela mesma (a Po-lícia) é controlada e disciplinada
pela FIR. Mas, aqui também, já
que a instrumentalização é maior,
o NÃO devia também ser pro-nunciado com letras maiúsculas.
Na sua totalidade, o sector pú-blico deve ser capaz de exprimir
o seu NÃO a tratamento desigual,
e exigir que o governo aplique a
regra democrática de igual trata-mento para indivíduos iguais e tra-tamento diferente para indivíduos
diferentes. O que os profissionais
de Saúde protestam é um diferente
reconhecimento para um igual mé-rito e igual capacidade. O que eles
exigem é um igual reconhecimen-to por igual mérito e igual capaci-dade, que é também igual oportu-nidade para tornar-se desiguais.
De facto, não existe nenhum argu-mento plausível que possa justifi-car a diferença de reconhecimento
entre a classe dos médicos e a dos
magistrados. A única explicação
desta diferença é que os magistra-dos são sistematicamente solicita-dos a manipular a lei para encobrir
a corrupção ao alto nível e para
garantir a impunidade da nomen-clatura do partido ou das outras
pessoas influentes. Contrariamen-te, os médicos nunca são solicita-dos para prestar nenhum serviço
a favor da classe dirigente porque
esta, os membros das suas famílias
e os «big men» do País recebem a
sua assistência médica nos hospi-tais da África do Sul e se o caso for
grave são transferidos para Portu-gal. Os médicos moçambicanos
servem só para prestar assistência
aos moçambicanos da segunda
classe, e estes, embora paguem o
imposto, não têm nenhum direito
a serviços sanitários melhorados.
O braço de ferro com o qual a
Frelimo de Guebuza afrontou a
questão da greve dos profissionais
de Saúde pode e deve ser integra-do no contexto do punho de ferro
com o qual aborda muitas outras
questões cruciais: a questão da in-dicação do candidato do partido à
presidência da República para as
eleições de 2014 e a questão das
negociações com a Renamo. A
táctica de «ganhar tempo» que ca-racteriza o modo com que de Gue-buza afronta estas duas questões
faz pensar que exista um «mega
plano» que visa dar una solução
total a todas as questões penden-tes: na impossibilidade de obter,
através da via constitucional, o
terceiro mandato, o mais provável
é que a Frelimo de Guebuza esteja
a preparar um «golpe de estado»
que possa permitir-lhe a permane-cer no poder mesmo depois do fim
do presente mandato. O facto que a
Renamo tenha insistido em várias
ocasiões a dizer que «enquanto
não houver ‘consenso politico’ no
diálogo em curso, particularmente
no ponto que tem a ver com o pro-cesso eleitoral, definitivamente, o
País não poderá acolher qualquer
tipo de eleição neste e nos próxi-mos anos», é suficiente para pensar
que a Frelimo de Guebuza vai pro-curar desfrutar esta posição da Re-namo para perpetuar-se no poder
e para subjugar a oposição interna
do partido. De facto, Guebuza e o
seu clube farão tudo para exibir o
teatro das eleições, para poderem
apresentar-se aos olhos da comu-nidade internacional e da opinião
pública pouco atenta, como um
Governo comprometido com as
regras democráticas e a regulari-dade da realização das eleições e,
com essa atitude, estarão também
a obrigar a Renamo a disparar a
primeira bala para impedir a sua
realização. Tal impedimento será
em seguida utilizado como pretex-to para justificar o uso massivo da
força militar que há mais de dois
anos está a ser preparada para esta
ocasião. Uma provável derrota da
Renamo com a força das armas
atribuiria à Frelimo de Guebuza
uma prestigiosa vantagem sobre
a oposição interna do partido e
transformaria o Estado moçambi-cano numa segunda Angola, onde
– graças à vitória das armas sobre
a UNITA de Jonas Savimbe - os
recursos económicos e humanos
do País são, praticamente, proprie-dade privada do MPLA do presi-dente José Eduardo dos Santos.
De facto, a fase crucial do «pla-no Guebuza» poderá, na verda-de, vir a ser antecipado. Isto é, o
reinício do conflito armado entre
a Frelimo e a Renamo que im-pediria a realização das eleições
e prolongaria a presidência de
Guebuza poderá iniciar a qual-quer momento, muito antes da
realização das eleições, quer au-tárquicas quer gerais. Reagindo à
acção administrativa do Governo
de Guebuza, que visa aumentar o
arsenal militar, a Renamo mostra--se igualmente preocupada com
a aquisição do material bélico. O
ataque, por homens armados, do
Paiol das Forças Armadas da De-fesa de Moçambique (FADM), na
estrada de Inhaminga, Província
de Sofala, e a consequente sub-tracção de armamento ligeiro e
pesado, realizados na madruga-da do dia 17 de Junho de 2013,
atribuídos à Renamo, poderiam
encontrar a sua colocação dentro
deste quadro de preparação de
uma guerra doravante inevitável.
A propósito do progresso de
toda a vicissitude política moçam-bicana, o grande teórico italiano da
democracia, o professor Giovanni
Sartori, ensina que «Se o grito de
guerra ‘todo o poder para nós’ não
é convertido pelo princípio que
ninguém deve ter todo o poder, en-tão, destruímos um poder absoluto
para substituí-lo por um outro».
Não aconteça que os nossos liber-tadores da colonização portugue-sa tornem-se nossos opressores.
A quem compete desfazer as ar-timanhas da classe dirigente que
periga a democracia?
O dever patriótico de salvar as
conquistas do processo de demo-cratização do País, aviado com a
assinatura dos Acordos Gerais de
Roma, recai em primeiro lugar
a todos os dirigentes e membros
influentes do partido Frelimo que
ainda gozam de bom senso, e que
já manifestaram em vários modos
a sua desaprovação à actuação do
actual chefe de Estado e presiden-te do partido. Todavia, até aqui a
desaprovação à actuação) do exe-cutivo limitou-se a uma contesta-ção de tipo «não colaboração» ou
de tipo pronunciamentos isolados.
È chegada a hora – antes que seja
tarde – de passar à acções concre-tas e do modo explícito. Os «ca-maradas» não podem subtrair-se
de assumir a responsabilidade do
destino de Moçambique e sobre-tudo nesta fase do «campeonato»
em que a barca está à deriva. Não é
agora que vão abandonar a barca.
Os «camaradas» devem mostrar a
mesma coragem que caracterizou
os dirigentes seniores do Move-ment for Multiparty Democracy
(MMD), quando o presidente
zambiano, Frederick Chiluba, co-meçou a esboçar a manobra da
revisão constitucional para que
fosse legalmente autorizado a con-correr para o terceiro mandato.
Proveniente das organizações dos
sindicatos e não das fileiras arma-das como o presidente Guebuza, a
única via que Chiluba podia seguir
para procurar o terceiro manda-to era aquela constitucional. Os
membros seniores do MMD, os
mesmos que nas eleições de 1991
tinham ajudado Chiluba a derrubar
o fundador do Estado zambiano,
Kenneth Kauda, no curso dos anos
2000 e 2001 opuseram-se catego-ricamente à ideia do terceiro man-dato. Quando o presidente Chiluba
começou a exibir a musculatura
para resolver o impasse, 59 depu-tados do seu próprio partido (mais
de ¾ do total), inclusivo o seu vi-ce-presidente, assinaram um docu-mento no qual comprometiam-se
a impedir qualquer manobra que
pudesse consenti-lo a concorrer
para o terceiro mandato. Com esta
atitude firme e livre de qualquer
tentativa de fazer um jogo duplo
(colocar um pé no território dos
opositores e o outro pé no terri-tório dos detentores do poder), os
membros seniores do MMD salva-ram o sistema democrático zam-biano que ameaçava regredir de
muitos passos. Que não apareçam,
amanhã, alguns «camaradas» -
quando o barco terá já afundado –
a apresentar-se como membros da
«Frelimo alternativa», diferentes
da Frelimo de Guebuza, e a tentar
convencer os moçambicanos que
eles se opuseram sempre à mano-bra diabólica de Guebuza. É hoje
e não amanhã, de forma explícita
e não implicitamente que os «ca-maradas» que não concordam com
o agir do Governo e dos dirigen-tes do partido, devem denuncia-lo
abertamente e propor alternativas
que visam salvar o País do caus.
A inércia dos «camaradas»
pode ser prejudicial para o País.
O seu silêncio pode obrigar as
massas populares lideradas, pro-vavelmente, por oportunistas,
a procurar uma solução e nessa
altura, além da destruição de vi-das humanas e bens materiais,
Moçambique estaria destinado a
engrossar a lista dos Países como
a Líbia e o Egipto, onde o fim
do autoritarismo foi seguido por
um período de instabilidade cró-nica. (Canal de Moçambique)
Embora seja maquiavélica, a declaração do presidente da República de Moçambique, Armando
Guebuza, contém duas verdades inegáveis que, provavelmente, o seu autor não teve em mente,
quando assim se pronunciou no dia 6 de Junho do ano em curso, na Correia do Sul, quando
foi interpelado pelos jornalistas acerca da greve dos profissionais de saúde que tinha iniciado no dia 20 de Maio de 2013.
De facto, a riqueza de um Estado, como a riqueza de uma família não é fruto do acaso. O chefe de
família que pretende criar riqueza para a própria família deve dotar-se da arte da racionalização
das entradas e das despesas: não se pode permitir, por exemplo, de fazer gastos superiores ao seu
vencimento; não se pode permitir de contrair dívidas para sustentar vícios e caprichos; não pode abandonar-se irresponsavelmente ao supérfluo e deve, pelo contrário, cultivar o hábito de transparência na administração e na contabilidade dos bens da família. Portanto, a primeira verdade encelada na astuta declaração do presidente moçambicano é precisamente esta: um Estado fundado sobre uma administração do tipo neopatrimonial – onde a classe dirigente se atribui vencimentos desproporcionalmente muito mais altos em relação à economia do País; onde a classe dirigente se distingue pelo esbanjamento dos recursos económicos em regalias e gastos desnecessários - pode (como acontece em Moçambique) criar ricos, mas não poderá nunca criar riqueza.
Este tipo de administração não é capaz de criar riqueza nacional porque as entradas que deveriam
servir para a formação do capital humano, para o desenvolvimento do sector sanitário, para a criação
de empregos, etc., são sistematicamente drenadas para alimentar o aparato neopatrimonial. Já que
o poder do tipo neopatrimonial é, simultaneamente, consequência e causa da ilegitimidade do seu
detentor, este precisa, constantemente, de enormes quantidades de recursos económicos e humanos
para perpetuar o seu controlo eco-nómico, político e social a todos os níveis. Em Moçambique, além
dos recursos que são sistemati-camente drenados para financiar a vastíssima rede dos interesses
económicos do presidente e da sua família, muitos outros recur-sos nacionais são drenados para
financiar os interesses privados e as regalias dos membros mais in-fluentes do partido. Além destas
duas válvulas, os recursos econó-micos do Estado moçambicano são ulteriormente drenados para
aplacar o poder legislativo e o poder judiciário. No aparato com-plexivo da administração pública
moçambicana, estes dois poderes foram, de facto ou de jure, com-pletamente castrados pelo poder
executivo. Mas, reconhecendo--lhes una latente capacidade para «furar o esquema», o poder exe-cutivo e o partido procuraram sempre apaziguá-los com venci-mentos altos e muitas regalias.
Na lógica interna de uma admi-nistração de tipo neopatrimonial, o circuito dos privilegiados que, em
troca dos privilégios recebidos, ga-rantem a continuidade do sistema, aumenta constantemente o custo da compensação pelos serviços que prestam ao governo neopatri-monial. De facto, na Carta Aberta ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República de Moçambique – subscrita por mais de 80 médicos especialistas, fundadores dos Serviços Nacionais de Saúde e membros da Associação dos Médicos Moçambicanos (AMM), tornada pública no dia 4 de Junho de 2013 - lê-se que «o orçamento do Estado para a Saúde, no decurso dos últimos seis ou sete anos, diminuiu em cerca de 50 por cento, em alguns outros sectores, de mui-to menor relevância social aumentou em 10 vezes, 1000 por cento».
Estes outros sectores de «muito menor relevância» são, de facto, de uma imprescindível relevância
para a perpetuidade do sistema. São eles que sustentam o sistema. Para colmar a diferença existen-te entre o custo sempre crescente da perpetuidade do poder cliente-lar e os limitados recursos nacio-nais disponíveis, o Governo da Frelimo activou também, já desde há muito tempo, o sistema de drenagem dos financiamentos prove-nientes dos programas de ajudas humanitárias e dos empréstimos
provenientes dos Países aliados, dos bancos privados e das Instituições Financeiras Internacionais
– destinados para impulsionar o desenvolvimento ou para socorrer as vítimas das calamidades natu-rais – para financiar interesses pri-vados da nomenclatura do partido no governo e custear as regalias
daqueles que têm o poder oculto
de minar a estabilidade do sistema
com a sua simples recusa de cola-boração. De facto, não existe - e
não pode existir nenhum País no
mundo – que seja capaz de criar
riqueza nacional, com uma admi-nistração pública desta natureza.
Moçambique é, de facto, pobre e
continuará pobre ainda por muitos
anos porque mesmo as futuras ge-rações devem continuar a pagar a
dívida externa contraída hoje, não
para financiar o desenvolvimento
do País, mas para financiar os inte-resses económicos do presidente,
da sua família, dos membros da
seu circuito e alimentar os vícios
e caprichos da rede dos cúmplices.
A segunda verdade involunta-riamente declarada por Armando
Guebuza é que os recursos na-cionais não são – nunca foram e
não poderão nunca legitimamente
ser – propriedade privada do pre-sidente, do partido Frelimo ou de
quem quer que seja. Os recursos
nacionais são, por direito natural,
propriedade de todos os moçam-bicanos e o único vínculo que ex-plica a relação de obediência entre
os governados e os governantes
é o acto eleitoral, através do qual
os governados confiaram aos go-vernantes a administração do bem
que tem come único proprietário
a inteira comunidade e, com esse
acto, o presidente e o seu Gover-no comprometeram-se a instaurar
uma administração pública que
seja do interesse da comunidade
na sua totalidade e não das par-tes. Nisto se funda a legitimidade
do presidente, do seu executi-vo e daqueles que fazem as leis.
Despojada do seu significado
maquiavélico, e conferindo-lhe
o seu significado autêntico, a de-claração de Guebuza reconhece
que os recursos nacionais «devem
ser distribuídos por todos os mo-çambicanos». Ora, já que olhando
para a realidade não é o que está
a acontecer no terreno, o chefe do
Governo moçambicano e presi-dente do partido no governo ad-mite, implicitamente, ter falido na
Missão que o eleitorado moçambi-cano lhe tinha confiado através do
processo de votação, no ano 2009.
Ora, não obstante Guebuza re-conheça honestamente que ele e o
seu partido traíram a confiança dos
moçambicanos e romperam o vín-culo estabelecido entre os gover-nados e os governantes, no seu de-senho maquiavélico, não só quer
manter as ilegítimas conquistas até
aqui feitas, mas quer também au-mentar o seu poder e influência no
partido e no sector público. Se o
reconhecimento da má gestão dos
bens públicos protagonizada pelo
seu Governo e pelo seu partido
fosse acompanhado pela vontade
política de mudar este estado de
coisas, então, durante a sua visita
ao Hospital Central, no dia 9 de
Junho de 2013 - vigésimo dia da
greve – o chefe do Estado, em vez
do discurso demagógico que pro-feriu, teria, por exemplo, apresen-tado um anteprojecto de reforma
do sector público, que visasse eli-minar as despesas faraónicas inú-teis do seu executivo e da classe
dirigente do partido, e fosse capaz
de promover a transparência e a
responsabilização na administra-ção pública. Pelo contrário, Gue-buza, hábil, como sempre foi o seu
partido no uso do instrumento de
desinformação, dividiu os profis-sionais de Saúde entre os «que se
preocupam com os doentes e os
que não dão importância à vida hu-mana e dos seus compatriotas». O
discurso proferido pelo presidente
da República naquela ocasião con-tinha já o maquiavélico plano de
acção que o Governo tinha formu-lado para sufocar a greve: além do
instrumento da repreensão e inti-midação, com o seu discurso de-magógico, o presidente apostava
no instrumento da desinformação
finalizada a dividir e/para fragili-zar os grevistas. De facto, dividin-do os profissionais de Saúde entre
aqueles «que se preocupam […]
com os doentes» e aqueles que
«não dão tanta importância à vida
humana», o presidente deixou cla-ro que o seu Governo iria ocupar--se só daqueles que, embora sob
condições injustamente precárias,
estavam dispostos a «engolir sa-pos» e quem não estivesse dispos-to a aceitar este estado de coisas
seria automaticamente «podado».
No seu discurso da desconvoca-ção da greve, proferido no dia 15
de Junho, o presidente da AMM,
Dr. Jorge Arroz, revela ter perce-bido muito bem a mensagem do
PR e temendo, justamente, ver a
multidão dos seus colegas a ser
sacrificados no altar da crueldade
do Governo de Guebuza – sem po-der contar com a protecção judici-ária – decidiu suspender a greve
alegando, como tinha sugerido o
“Boss”, o «respeito pela dor e so-frimento do povo solidário». Em
outras palavras, o Dr Arroz e to-dos os grevistas perceberam que o
Governo que vinha já violando os
seus direitos laborais, não se im-portava – e já tinha posto o aparato
da «máquina» em acção – de vio-lar também o seu direito á greve.
A táctica adoptada pelo Go-verno de Guebuza para sufocar a
greve dos profissionais de Saúde
constitui uma gravíssima violação
de uma das principais regras e fun-damentos da democracia. É verda-de que o primeiro requisito para
que um Governo se chame demo-crático é que tenha sido eleito por
um sufrágio universal dos que têm
direito. Mas é também verdade
que num País que se diz democrá-tico as opiniões devem ser livres,
isto é, formadas livremente e não
patrocinadas nem sugeridas pelo
governo através do instrumento
da demagogia ou da intimidação.
De facto, o uso do instrumento
da desinformação demagógica na
questão da greve dos profissio-nais de Saúde, foi paralelamente
combinado com o uso massivo
do instrumento da repreensão e
intimidação activado com o es-pancamento e detenção dos enfer-(Continua na página seguinte)
«Este País é pobre e o pouco que temos… temos que distribuir por todos
os moçambicanos»(Armando Guebuza)
meiros no Distrito de Magude; e
foi ganhando consistência com a
detenção, durante quatro horas, do
presidente da AMM, Dr. Arroz, na
noite do dia 26 de Maio de 2013;
a intimação a prestar declarações
no Comando da Polícia da Repú-blica de Moçambique (PRM) da
cidade de Maputo do represen-tante da Comissão dos Profissio-nais de Saúde Unidos (CPSU),
Adolfo Bau; a exoneração do
director distrital e Médico-chefe
de Ribáuè; e a intimação de pelo
menos 18 funcionários do Centro
de Saúde de Xipamanine, para
responder a processos disciplina-res no âmbito da greve laboral.
Analisando este quadro de
acontecimentos, faz pensar que
Moçambique já deixou de ser uma
sociedade política e está exacta-mente naquilo que o filósofo in-glês e teórico do Estado moderno
do século XVII, John Locke, cha-mou de «estado de guerra». Se-gundo Locke, se instaura o «esta-do de guerra» quando um homem
exerce ilegitimamente o poder
da força sobre um outro homem.
O modo como terminou a
«aventura» dos profissionais de
Saúde, poderá marcar, não só o
fim das reivindicações no sector
de Saúde, mas também um fim
absoluto do direito em si mesmo
de fazer a greve em Moçambique.
Se assim fosse, o autoritarismo da
Frelimo de Guebuza sairia fortifi-cado e o seu neopatrimonialismo
consolidado. De facto, enquanto
os outros profissionais do sector
público – principalmente os pro-fessores e a Polícia, e cada um
dos moçambicanos – preferirem
a táctica do «Free Rider», a pos-sibilidade que o instrumento da
greve continue a ser utilizado para
induzir o Governo de Guebuza a
redimensionar o seu modo de ad-ministrar o bem comum é remota.
De origem económica, no âmbito
político se chama «Free Rider» o
individuo ou grupo de indivíduos
que se subtrai do dever de supor-tar os custos necessários de um
determinado benefício público
que requer a participação de to-dos e espera poder «colher onde
não semeou», beneficiando-se
efectivamente dos frutos resul-tantes da participação dos demais.
Para obrigar o governo neopa-trimonial de Guebuza a sentar--se à mesa das negociações com
os profissionais de Saúde, numa
condição de equilíbrio de forças,
era necessário que os outros prin-cipais sectores públicos como a
Educação, a Polícia, os agentes
de segurança e outros pequenos
sectores públicos abandonassem
a táctica da «boleia» - do «Free
Rider» e arregaçassem as mangas
para protestar publicamente con-tra o ilegítimo governo autoritário
e arrogante de Guebuza porque,
como diz o teórico inglês do Es-tado moderno, «todo aquele que
no exercício da autoridade que
lhe foi conferida [pelo povo] ex-cede o poder a ele conferido pela
lei, e faz uso da força que ele tem
sob o seu comando para conspirar
contra os seus súbditos o que a lei
não lhe permite, deixa automati-camente de ser um magistrado e,
agindo sem autoridade pode ser
oposto, como qualquer outro ho-mem que com a força viola o di-reito de outrem» (II Tratado, 202).
É bem sabido que o sector da
Educação é o mais partidariza-do. Mas precisamente ali onde a
opressão é maior, a vontade de li-bertar-se devia fazer-se sentir com
proporção ainda maior. Se os do-centes não tivessem a intenção de
aderir à greve porque, de qualquer
modo, eles também, tiram certos
benefícios do corrupto sistema
administrativo de Guebuza, então
seriam os estudantes a promove-la
porque são eles que todos os dias
aturam professores desmotivados,
preocupados, não a melhorar a pró-pria prestação académica, mas a
caçar subornos e, é a eles (os estu-dantes) que no fim de cada percur-so académico se atribui um pedaço
de papel sem competências cor-respondentes, porque os recursos
económicos nacionais e as ajudas
externas destinadas a melhorar as
condições do ensino são sistema-ticamente drenados para sustentar
os filhos da classe dirigente, que
estudam nas escolas e universi-dades mais «chiques» no exterior.
Sabe-se igualmente que a Força
da Intervenção Rápida (FIR) foi
criada como um instrumento ma-leável nas mãos do presidente da
República para vigiar e «discipli-nar» a acção da PRM e dos outros
agentes da segurança. E por isso,
torna-se difícil qualquer decisão
autónoma, sobretudo uma pro-testa, da parte da Polícia porque
enquanto, por um lado, a ela foi
confiada a dura e antipática missão
de sufocar a contestação popular,
por outro lado, ela mesma (a Po-lícia) é controlada e disciplinada
pela FIR. Mas, aqui também, já
que a instrumentalização é maior,
o NÃO devia também ser pro-nunciado com letras maiúsculas.
Na sua totalidade, o sector pú-blico deve ser capaz de exprimir
o seu NÃO a tratamento desigual,
e exigir que o governo aplique a
regra democrática de igual trata-mento para indivíduos iguais e tra-tamento diferente para indivíduos
diferentes. O que os profissionais
de Saúde protestam é um diferente
reconhecimento para um igual mé-rito e igual capacidade. O que eles
exigem é um igual reconhecimen-to por igual mérito e igual capaci-dade, que é também igual oportu-nidade para tornar-se desiguais.
De facto, não existe nenhum argu-mento plausível que possa justifi-car a diferença de reconhecimento
entre a classe dos médicos e a dos
magistrados. A única explicação
desta diferença é que os magistra-dos são sistematicamente solicita-dos a manipular a lei para encobrir
a corrupção ao alto nível e para
garantir a impunidade da nomen-clatura do partido ou das outras
pessoas influentes. Contrariamen-te, os médicos nunca são solicita-dos para prestar nenhum serviço
a favor da classe dirigente porque
esta, os membros das suas famílias
e os «big men» do País recebem a
sua assistência médica nos hospi-tais da África do Sul e se o caso for
grave são transferidos para Portu-gal. Os médicos moçambicanos
servem só para prestar assistência
aos moçambicanos da segunda
classe, e estes, embora paguem o
imposto, não têm nenhum direito
a serviços sanitários melhorados.
O braço de ferro com o qual a
Frelimo de Guebuza afrontou a
questão da greve dos profissionais
de Saúde pode e deve ser integra-do no contexto do punho de ferro
com o qual aborda muitas outras
questões cruciais: a questão da in-dicação do candidato do partido à
presidência da República para as
eleições de 2014 e a questão das
negociações com a Renamo. A
táctica de «ganhar tempo» que ca-racteriza o modo com que de Gue-buza afronta estas duas questões
faz pensar que exista um «mega
plano» que visa dar una solução
total a todas as questões penden-tes: na impossibilidade de obter,
através da via constitucional, o
terceiro mandato, o mais provável
é que a Frelimo de Guebuza esteja
a preparar um «golpe de estado»
que possa permitir-lhe a permane-cer no poder mesmo depois do fim
do presente mandato. O facto que a
Renamo tenha insistido em várias
ocasiões a dizer que «enquanto
não houver ‘consenso politico’ no
diálogo em curso, particularmente
no ponto que tem a ver com o pro-cesso eleitoral, definitivamente, o
País não poderá acolher qualquer
tipo de eleição neste e nos próxi-mos anos», é suficiente para pensar
que a Frelimo de Guebuza vai pro-curar desfrutar esta posição da Re-namo para perpetuar-se no poder
e para subjugar a oposição interna
do partido. De facto, Guebuza e o
seu clube farão tudo para exibir o
teatro das eleições, para poderem
apresentar-se aos olhos da comu-nidade internacional e da opinião
pública pouco atenta, como um
Governo comprometido com as
regras democráticas e a regulari-dade da realização das eleições e,
com essa atitude, estarão também
a obrigar a Renamo a disparar a
primeira bala para impedir a sua
realização. Tal impedimento será
em seguida utilizado como pretex-to para justificar o uso massivo da
força militar que há mais de dois
anos está a ser preparada para esta
ocasião. Uma provável derrota da
Renamo com a força das armas
atribuiria à Frelimo de Guebuza
uma prestigiosa vantagem sobre
a oposição interna do partido e
transformaria o Estado moçambi-cano numa segunda Angola, onde
– graças à vitória das armas sobre
a UNITA de Jonas Savimbe - os
recursos económicos e humanos
do País são, praticamente, proprie-dade privada do MPLA do presi-dente José Eduardo dos Santos.
De facto, a fase crucial do «pla-no Guebuza» poderá, na verda-de, vir a ser antecipado. Isto é, o
reinício do conflito armado entre
a Frelimo e a Renamo que im-pediria a realização das eleições
e prolongaria a presidência de
Guebuza poderá iniciar a qual-quer momento, muito antes da
realização das eleições, quer au-tárquicas quer gerais. Reagindo à
acção administrativa do Governo
de Guebuza, que visa aumentar o
arsenal militar, a Renamo mostra--se igualmente preocupada com
a aquisição do material bélico. O
ataque, por homens armados, do
Paiol das Forças Armadas da De-fesa de Moçambique (FADM), na
estrada de Inhaminga, Província
de Sofala, e a consequente sub-tracção de armamento ligeiro e
pesado, realizados na madruga-da do dia 17 de Junho de 2013,
atribuídos à Renamo, poderiam
encontrar a sua colocação dentro
deste quadro de preparação de
uma guerra doravante inevitável.
A propósito do progresso de
toda a vicissitude política moçam-bicana, o grande teórico italiano da
democracia, o professor Giovanni
Sartori, ensina que «Se o grito de
guerra ‘todo o poder para nós’ não
é convertido pelo princípio que
ninguém deve ter todo o poder, en-tão, destruímos um poder absoluto
para substituí-lo por um outro».
Não aconteça que os nossos liber-tadores da colonização portugue-sa tornem-se nossos opressores.
A quem compete desfazer as ar-timanhas da classe dirigente que
periga a democracia?
O dever patriótico de salvar as
conquistas do processo de demo-cratização do País, aviado com a
assinatura dos Acordos Gerais de
Roma, recai em primeiro lugar
a todos os dirigentes e membros
influentes do partido Frelimo que
ainda gozam de bom senso, e que
já manifestaram em vários modos
a sua desaprovação à actuação do
actual chefe de Estado e presiden-te do partido. Todavia, até aqui a
desaprovação à actuação) do exe-cutivo limitou-se a uma contesta-ção de tipo «não colaboração» ou
de tipo pronunciamentos isolados.
È chegada a hora – antes que seja
tarde – de passar à acções concre-tas e do modo explícito. Os «ca-maradas» não podem subtrair-se
de assumir a responsabilidade do
destino de Moçambique e sobre-tudo nesta fase do «campeonato»
em que a barca está à deriva. Não é
agora que vão abandonar a barca.
Os «camaradas» devem mostrar a
mesma coragem que caracterizou
os dirigentes seniores do Move-ment for Multiparty Democracy
(MMD), quando o presidente
zambiano, Frederick Chiluba, co-meçou a esboçar a manobra da
revisão constitucional para que
fosse legalmente autorizado a con-correr para o terceiro mandato.
Proveniente das organizações dos
sindicatos e não das fileiras arma-das como o presidente Guebuza, a
única via que Chiluba podia seguir
para procurar o terceiro manda-to era aquela constitucional. Os
membros seniores do MMD, os
mesmos que nas eleições de 1991
tinham ajudado Chiluba a derrubar
o fundador do Estado zambiano,
Kenneth Kauda, no curso dos anos
2000 e 2001 opuseram-se catego-ricamente à ideia do terceiro man-dato. Quando o presidente Chiluba
começou a exibir a musculatura
para resolver o impasse, 59 depu-tados do seu próprio partido (mais
de ¾ do total), inclusivo o seu vi-ce-presidente, assinaram um docu-mento no qual comprometiam-se
a impedir qualquer manobra que
pudesse consenti-lo a concorrer
para o terceiro mandato. Com esta
atitude firme e livre de qualquer
tentativa de fazer um jogo duplo
(colocar um pé no território dos
opositores e o outro pé no terri-tório dos detentores do poder), os
membros seniores do MMD salva-ram o sistema democrático zam-biano que ameaçava regredir de
muitos passos. Que não apareçam,
amanhã, alguns «camaradas» -
quando o barco terá já afundado –
a apresentar-se como membros da
«Frelimo alternativa», diferentes
da Frelimo de Guebuza, e a tentar
convencer os moçambicanos que
eles se opuseram sempre à mano-bra diabólica de Guebuza. É hoje
e não amanhã, de forma explícita
e não implicitamente que os «ca-maradas» que não concordam com
o agir do Governo e dos dirigen-tes do partido, devem denuncia-lo
abertamente e propor alternativas
que visam salvar o País do caus.
A inércia dos «camaradas»
pode ser prejudicial para o País.
O seu silêncio pode obrigar as
massas populares lideradas, pro-vavelmente, por oportunistas,
a procurar uma solução e nessa
altura, além da destruição de vi-das humanas e bens materiais,
Moçambique estaria destinado a
engrossar a lista dos Países como
a Líbia e o Egipto, onde o fim
do autoritarismo foi seguido por
um período de instabilidade cró-nica. (Canal de Moçambique)
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