quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Memórias da Gorongosa

 

Adeli
PNG_Borges Por Adelino Serras Pires
Depois de sete anos como aluno interno em três diferen­tes escolas (Salisbúria, na antiga Rodésia; Tete, minas do Mavuzi; Guro e os esplendorosos matos de Manica e Sofala, de abundante fauna bravia), calhou-me ir parar à cida­de da Beira. Foi em Maio de 1953 e tinha aceitado ir trabalhar para a Agência de Turismo de Moçambique uma entidade que também efectuava excursões à Gorongosa. A minha primeira visita à então Reserva de Caça da Gorongosa, com turistas, foi como voltar ao Guro. Elefantes, leões, búfalos, leopardos e uma imensa variedade de antílopes, hipo­pótamos, crocodilos e uma espécie de paraíso terreal de aves de mil reluzentes cores.

A estrada que nos levava da Beira à Reserva passava pelo Dondo e Inhaminga, terra batida, claro. Na "milha" 43, salvo erro, saía-se em direcção ao rio Urema, atravessado de batelão. Al­guns quilómetros mais para diante estava o Chitengo, único acampamento da Reserva da Gorongosa.

Aí conheci o senhor Alfredo Rodrigues, único funcionário branco da Reserva e principal responsável da mesma - então com limites confinantes com os rios Pungué e Urema. Chamo lhe senhor porque, além do respeito natural observado nesse tempo, eu tinha 25 anos e ele entre os 50 e 60, com bastante conhecimento do fantástico mundo da fauna bravia. Bom ho­mem com quem me dei muito bem durante muitos anos. Mais tarde veio o Victor Hugo dos Santos e sua mulher Dina, como encarregados das instalações para as visitas.
A excursão não durava mais que nove a dez horas, incluindo a viagem da Beira ao Chitengo e regresso, porque nas picadas do parque destinadas à observação dos animais três a quarto horas era o suficiente, tal era a abundância. Era caso único em África - conclusão que me ficou depois de ter conhecido várias reservas e parques em oito países africanos diferentes, todos considerados muito ricos em fauna bravia.
Em 1957 houve um concurso para exploração do acampamento do Chitengo. A então Agência de Viagens e Turismo, mais co­nhecida no estrangeiro simplesmente como "Turismo", foi a es­colhida. Eram seus sócios Jaime Vale, António Nogueira Perei­ra e eu próprio. O acampamento estava a precisar de extensas obras de recuperação e beneficiação: introduzir sistemas de dis­tribuição de água e electricidade, reparar edifícios e construir outros, adquirir veículos para o transporte de turistas, erguer um posto de combustível (Mobil), etc. etc.
Sem um centavo do Governo
A reserva foi entretanto transformada em Parque, para cuja promoção exterior foram arranjados agentes na Rodésia, Áfri­ca do Sul e junto das Companhias de Navegação cujos barcos com turistas demandavam a Beira.
Mais tarde quando o Parque já estava a funcionar a preceito (o A.T.C.M. tinha, entretanto, construído uma ponte no rio Pungué, assente em tambores), eis que o Departamento da Veterinária despertou para aquele filão, em termos comerciais» e tentou substituir-nos na sua exploração. Mas a jogada falhou. Em 1965 abandonei a Agência e formei a minha própria em­presa, a que dei o nome de Cotur. Estive até 1969 sem visitar o Parque. Entretanto a A.V.T. foi absorvida pela Safrique. Nesse mesmo ano fui convidado para me juntar à Safrique, para organizar safaris de caça na Gorongosa. Abandonei a ac­tividade em 1973, por causa da insegurança naquela parte do território. Em 1974 fui gerir a coutada 5 da Safarilândia e os sa­faris de caça. Foi o final da minha actividade em Moçambique. O
meu livro, "Ventos de Destruição", conta como foi - isto e muito mais.
A leoa "Rosa" e o ledo "Chico"
Nas minhas memórias da Gorongosa o senhor Alfredo Rodri­gues ocupara um lugar especial. Aprendi muito com ele a lidar com os animais em reservas. Nunca
nesses anos houve um in­cidente grave devido à disciplina imposta por ele com os seus homens, guardas, fiscais e guias, como o demonstram tantos episódios da minha vivência.
Na casa dos leões, ex-acampamento abandonado devido às cheias, viviam tranquilamente bastantes felinos. Um dia, ao passarmos os dois pelo local, pediu para parar o carro porque a "Rosa" tinha parido três ou quatro crias. Abriu a porta do carro e dirigiu-se a ela, pegando ao colo duas crias. A leoa não reage e eu não queria acreditar no que se estava a passar. Nunca nesses anos alguma vez levávamos armas. Outro episódio foi também com um leão, o "Chico". Este esta­va deitado debaixo de uma árvore e o senhor Rodrigues pediu para parar o carro. Abriu a porta mas deixou-a aberta. Dirigiu-se ao leão que imediatamente se pôs de pé. Mais uns passos e o "Chico" começou a abanar o rabo de um lado para o outro. Era sinal de perigo; ia carregar. O senhor Rodrigues correu para o carro e teve tempo para fechar a porta no exacto momento em que o leão encostava o focinho ao carro rugindo. Comentário de Alfredo Rodrigues: este é o único leão que não me grama. Tento ser amigo mas não consigo.
Reformou-se entretanto. Vieram outros: tempos e mentalida­des diferentes.
No.4, 31 Julho 2009, publicado pelo LUSOMONITOR

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