domingo, 4 de novembro de 2012
A mensagem de Fátima (ii)
Escrito por Joseph Ratzinger
«A guerra vai acabar. Mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições a Igreja e ao Santo Padre».
Terceira aparição: 13 de Julho de 1917.
«Para a Irmã Lúcia não representava maior dificuldade o facto de entender habitualmente que a guerra começou somente sob o pontificado de Pio XII. Observa ela que a anexação da Áustria - e poderíamos acrescentar vários outros acontecimentos políticos do fim do reinado de Pio XI - constituem autênticos prolegómenos da conflagração, a qual se configuraria inteiramente como tal algum tempo depois (cf. entrevista ao Padre Iongen, em De Marchi, p. 309).
(...) Lúcia julgou ver "o grande sinal" na luz extraordinária - que os astrónomos tomaram como uma aurora boreal - que iluminou os céus da Europa, na noite de 25 para 26 de Janeiro de 1938 (das 20h45 até 1h15, com breves intermitências). Convencida de que a guerra mundial - que "havia de ser horrível, horrível" - ia deflagrar, redobrou de esforços para obter que se atendesse aos pedidos que lhe tinham sido comunicados. Escreveu uma carta directamente ao papa Pio XI, nesse sentido (cf. De Marchi, p. 92; Walsh, pp. 179-181; Ayres da Fonseca, p. 45)».
António Augusto Borelli Machado («As aparições e a mensagem de Fátima nos manuscritos da Irmã Lúcia»).
«Na noite do mesmo dia 23 de Agosto, após o jantar, deparou-se um espectáculo inesperado a Hitler e aos seus convivas: por detrás de Unterberg, o céu começou por se colorir de azul-turquesa, em seguida de violeta e, depois, passou a vermelho-vivo - um fenómeno que se costuma designar como «luz do Norte» e que era muito raro por aquelas paragens. Von Below observou, então, ao Führer que se tratava de um presságio de que a guerra seria sangrenta; se ela iria ser sangrenta, respondeu-lhe aquele, que mais valia que começasse depressa, porque quanto mais o tempo passasse, mais sangrenta se tornaria».
Marlis Steinert («Hitler»).
«O mais admirável dos espectáculos de coloração terrestre manifesta-se por intermédio das luzes polares, mais particularmente na aurora borealis e na aurora australis. São no fundo emanações de luz multicolor. Para os cientistas tais emanações são apenas refulgência magnética. Porém, para o indagador clarividente elas são irradiações áureas do Espírito Crístico que anualmente penetra e circunda a Terra. As vibrações aurorais são gradualmente absorvidas pelos invólucros aúreos da Terra, os quais tendem a purificar e a espiritualizar o planeta e os seres que o habitam. Tornam-se apenas visíveis nas regiões polares na medida em que estão virtualmente destituídas de seres vivos. Áreas habitadas absorvem esta força de tal modo que nada permanece visível para o olho humano. Quando a dimensão espiritual deste grandioso fenómeno chega a ser compreendida, passamos a encarar o seu poder com profundo e reverente temor.
(...) Estamos convictos de que a aurora borealis é um fenómeno ligado ao magnetismo da Terra", diz-nos o Sr. Madill. "O facto de que a zona de maior frequência auroral decorra perto do pólo boreal magnético da Terra é algo de deveras significativo. Nesta zona de grande exposição das "luzes do norte" ocorrem as mais variadas perturbações eléctricas e magnéticas, tanto internas como externas.
"Agora estamos certos de que a aurora tem por causa uma energia invisível oriunda do sol", assevera o astrónomo, "provavelmente raios ultravioletas que afectam os gases rarefeitos da alta atmosfera".
O Sr. Madill conclui: "Se o espectáculo fosse manifestação corrente nas regiões habitadas, e não estivesse apenas confinado, como na maioria dos casos, às desabitadas zonas Árcticas e Antárcticas, as maravilhas da aurora seriam ainda mais cantadas pelos poetas do que o simples nascer e pôr do sol».
Corine Heline («Cura e Regeneração através da Cor»).
«Mas nesse arquivo [do Vaticano] não se encontram também os famosos segredos das profecias?
Só me lembro de Fátima; se temos outras profecias, não sei.
Quem tem acesso a esse segredo?
O segredo de Fátima só pode ser conhecido pelo próprio Papa e pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé; outras pessoas precisam de autorização pessoal do Papa.
Na imagem: João Paulo II e Joseph Ratzinger
O cículo das pessoas que tomou conhecimento desses segredos é conhecido ou sabe-se quantas pessoas são?
Não devem ser, sertamente, mais de três ou quatro pessoas.
Pronunciou-se uma vez sobre a profecia de Fátima, na medida em que disse que era o que "o próprio Jesus lembra muitas vezes, quando Ele não hesita em dizer: "Se não vos converterdes, morrereis todos". A profecia abalou-o?
Não.
Porque não?
Porque não vai além do que a mensagem cristã contém, como tal
Mas penso que nela se fala do fim do mundo?
Não posso agora dizer nada sobre isso. Em todo o caso, não deparei com nada de particularmente horrível».
Cardeal Ratzinger («O Sal da Terra, uma entrevista com Peter Seewald»).
A estrutura antropológica das revelações privadas
Tendo nós procurado, com estas reflexões, determinar o lugar teológico das revelações privadas, devemos agora, ainda antes de nos lançarmos numa interpretação da mensagem de Fátima, esclarecer, embora brevemente, o seu carácter antropológico (psicológico). A antropologia teológica distingue, neste âmbito três formas de percepção ou «visão»: a visão pelos sentidos, ou seja, a percepção externa corpórea; a percepção interior; e a visão espiritual (visio sensibilis, imaginativa, intellectualis). É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc., não se trata da percepção externa normal dos sentidos: as imagens e as figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante, como está lá, por exemplo, uma árvore ou uma casa. Isto é bem evidente, por exemplo, no caso da visão do Inferno (descrita na primeira parte do «segredo» de Fátima) ou então na visão descrita na terceira parte do «segredo», mas pode-se facilmente comprovar também noutras visões, sobretudo porque não eram captadas por todos os presentes, mas apenas pelos «videntes». De igual modo, é claro que não se trata duma «visão» intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da mística. Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a percepção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível.
Este ver interiormente não significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjectiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos «sentidos internos». Trata-se de verdadeiros «objectos» que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível que nos é habitual. Por isso, exige-se uma vigilância interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa da forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que enchem a alma. A pessoa é levada para além da pura exterioridade, onde é tocada por dimensões mais profundas da realidade que se lhe tornam visíveis. Talvez assim se possa compreender por que motivo os destinatários preferidos de tais aparições sejam precisamente as crianças: a sua alma ainda está pouco alterada, e quase intacta a sua capacidade interior de percepção. «Da boca dos pequeninos e das crianças de peito recebeste louvor»: esta foi a resposta de Jesus - servindo-se duma frase do Salmo 8 (v. 3) - à crítica dos sumos sacerdotes e anciãos, que achavam inoportuno o grito hossana das crianças (Mt 21, 16).
Como dissemos, a «visão interior» não é fantasia, mas uma verdadeira e própria maneira de verificação. Fá-lo, porém, com as limitações que lhe são próprias. Se, na visão exterior, já interfere o elemento subjectivo, isto é, não vemos o objecto puro mas este chega-nos através do filtro dos nossos sentidos que têm de operar um processo de tradução; na visão interior, isso é ainda mais claro, sobretudo quando se trata de realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte. O sujeito, o vidente, tem uma influência ainda mais forte; vê segundo as próprias capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis. Na visão interior, há, de maneira ainda mais acentuada que na exterior, um processo de tradução, desempenhando o sujeito uma parte essencial na formação da imagem daquilo que aparece. A imagem pode ser captada apenas segundo as suas medidas e possibilidades. Assim, tais visões não são em caso algum a «fotografia» pura e simples do Além, mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende.
Isto é patente em todas as grandes visões dos Santos; naturalmente vale também para as visões dos pastorinhos de Fátima. As imagens por eles delineadas não são de modo algum mera expressão da sua fantasia, mas fruto duma percepção real de origem superior e íntima; nem se hão-de imaginar como se por um instante se tivesse erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua essencialidade pura, como esperamos vê-lo na união definitiva com Deus. Poder-se-ia dizer que as imagens são uma síntese entre o impulso vindo do Alto e as possibilidades disponíveis para o efeito por parte do sujeito que as recebe, isto é, das crianças. Por tal motivo, a linguagem feita de imagens destas visões é uma linguagem simbólica. Sobre isto, diz o Cardeal Sodano: «Não descrevem de forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam sobre a mesma linha de fundo factos que se prolongam no tempo numa sucessão e duração não especificadas». Esta sobreposição de tempos e espaços numa única imagem é típica de tais visões, que, na sua maioria, só podem ser decifradas a posteriori. E não é necessário que cada elemento da visão tenha de possuir uma correspondência histórica concreta. O que conta é a visão como um todo, e a partir do conjunto das imagens é que se devem compreender os detalhes. O que efectivamente constitui o centro duma imagem só pode ser desvendado, em última análise, a partir do que é o centro absoluto da «profecia» cristã: o centro é o ponto onde a visão se torna apelo e indicação da vontade de Deus.
Uma tentativa de interpretação do «segredo» de Fátima
(...) Os pastorinhos experimentaram, durante um instante terrível, uma visão do Inferno. Viram a queda das «almas dos pobres pecadores». Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de passar por esse instante: para «salvá-las» - para mostrar um caminho de salvação. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de Pedro que diz: «Estais certos de obter, como prémio da vossa fé, a salvação das almas» (1,9). Como caminho para se chegar a tal objectivo, é indicado - de modo surpreendente para pessoas originárias do ambiente cultural anglo-saxónico e germânico -: a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para compreender isto, deveria bastar uma breve explicação. O termo «coração», na linguagem da Bíblia, significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. O «coração imaculado» é, segundo o Evangelho de Mateus (5,8), um coração que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e, consequentemente, «vê a Deus». Portanto, «devoção» ao Imaculado Coração de Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual o fiat - «seja feita a vossa vontade» - se torna o centro conformador de toda a existência. Se porventura alguém objectasse que não se deve interpor um ser humano entre nós e Cristo, lembre-se de que Paulo não tem medo de dizer às suas comunidades: «Imitai-me» (cf. 1 Cor 4, 16; FI 3, 17; 1 Ts 1, 6; Ts 3, 7,9). No Apóstolo, elas podem verificar concretamente o que significa seguir Cristo. Mas, com quem poderemos nós aprender sempre melhor do que com a Mãe do Senhor?
Chegamos assim finalmente à terceira parte do «segredo» de Fátima, publicado aqui pela primeira vez integralmente. Como resulta da documentação anterior, a interpretação dada pelo Cardeal Sodano, no seu texto do dia 13 de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente à Irmã Lúcia. A tal propósito, ela começou por observar que lhe foi dada a visão, mas não a sua interpretação. A interpretação, dizia, não compete ao vidente, mas à Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a Irmã Lúcia disse que tal interpretação corresponde àquilo que ela mesma tinha sentido e que, pela sua parte, reconhecia essa interpretação como correcta. Sendo assim, limitar-nos-emos, naquilo que vem a seguir, a dar de forma profunda um fundamento à referida interpretação, partindo dos critérios anteriormente desenvolvidos.
Do mesmo modo que tínhamos identificado, como palavra-chave da primeira e segunda parte do «segredo», a frase «salvar as almas», assim agora a palavra-chave desta parte do «segredo» é o tríplice grito: «Penitência, Penitência, Penitência!». Volta-nos ao pensamento o início do Evangelho: «Paenitemini et credite evangelio» (Mc 1, 15). Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da conversão, da fé. Tal é a resposta justa a uma época histórica caracterizada por grandes perigos, que serão delineados nas sucessivas imagens. Deixo aqui uma recordação pessoal: num colóquio que a Irmã Lúcia teve comigo, disse-me que lhe parecia cada vez mais claramente que o objectivo de todas as aparições era fazer crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade; tudo o mais pretendia apenas levar a isso.
Examinemos agora mais de perto as diversas imagens. O anjo com a espada de fogo à esquerda da Mãe de Deus lembra imagens análogas do Apocalipse: ele representa a ameaça do juízo que pende sobre o mundo. A possibilidade que este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje já não aparece de forma alguma como pura fantasia: o próprio homem preparou, com suas invenções, a espada de fogo. Em seguida, a visão mostra a força que se contrapõe ao poder da destruição: o brilho da Mãe de Deus e, de algum modo proveniente do mesmo, o apelo à penitência. Deste modo, é sublinhada a importância da liberdade do homem: o futuro não está de forma alguma determinado imutavelmente, e a imagem vista pelos pastorinhos não é, absolutamente, um filme antecipado do futuro, do qual já nada se poderia mudar. Na realidade, toda a visão acontece só para chamar em campo a liberdade e orientá-la numa direcção positiva. O sentido da visão não é, portanto, o de mostrar um filme sobre o futuro, já fixo irremediavelmente, mas exactamente o contrário: o seu sentido é mobilizar as forças da mudança em bem. Por isso, há que considerar completamente extraviadas aquelas explicações fatalistas do «segredo» que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de 13 de Maio de 1981 teria sido, em última análise, um instrumento do plano divino predisposto pela Providência e, por conseguinte, não poderia ter agido livremente, ou outras ideias semelhantes que por aí andam. A visão fala sobretudo de perigos e do caminho para salvar-se deles.
As frases seguintes do texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o carácter simbólico da visão: Deus permanece o incomensurável e a luz que está para além de qualquer visão nossa. As pessoas humanas são vistas como que num espelho. Devemos ter continuamente presente esta limitação inerente à visão, cujos confins estão aqui visivelmente indicados. O futuro é visto apenas «como que num espelho, de maneira confusa» (cf. 1 Cor 13, 12). Consideremos agora as diversas imagens que se sucedem no texto do «segredo». O lugar da acção é descrito com três símbolos: uma montanha íngreme, uma grande cidade meia em ruínas e finalmente uma grande cruz de troncos toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da história humana: a história como árdua subida para o alto, a história como lugar da criatividade e convivência humana e simultaneamente de destruições pelas quais o homem aniquila a obra do seu próprio trabalho. A cidade pode ser lugar de comunhão e progresso, mas também lugar do perigo e da ameaça mais extrema. No cimo da montanha, está a cruz: meta e ponto de orientação da história. Na cruz, a destruição é transformada em salvação; ergue-se como sinal da miséria da história e como promessa para a mesma.
Aparecem lá, depois, pessoas humanas: o Bispo vestido de branco («tivemos o pressentimento que era o Santo Padre»), outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e, naturalmente, homens e mulheres de todas as classes e posições sociais. O Papa parece caminhar à frente dos outros, tremendo e sofrendo por todos os horrores que o circundam. E não são apenas as casas da cidade que jazem meio em ruínas; o seu caminho é ladeado pelos cadáveres dos mortos. Deste modo, o caminho da Igreja é descrito como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violência, destruições e perseguições. Nesta imagem, pode-se ver representada a história de um século inteiro. Tal como os lugares da terra aparecem sinteticamente representados nas duas imagens da montanha e da cidade e estão orientados para a cruz, assim também os tempos são apresentados de forma contraída: na visão, podemos reconhecer o século vinte como século dos mártires, como século das guerras mundiais e de muitas guerras locais que ocuparam toda a segunda metade do mesmo, tendo feito experimentar novas formas de crueldade. No «espelho» desta visão, vemos passar as testemunhas da fé de decénios. A este respeito, é oportuno mencionar uma frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu ao Santo Padre no dia 12 de Maio de 1982: «A terceira parte do "segredo" refere-se às palavras de Nossa Senhora: "Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas"».
Na Via Sacra deste século, tem um papel especial a figura do Papa. Na árdua subida da montanha, podemos sem dúvida ver figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até ao Papa actual, que partilharam os sofrimentos deste século e se esforçaram por avançar, no meio deles, pelo caminho que leva à cruz. Na visão, também o Papa é morto na estrada dos mártires. Não era razoável que o Santo Padre, quando, depois do atentado de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira parte do «segredo», tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve muito perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvação com as palavras seguintes: «Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o Papa agonizante deteve-se no limiar da morte» (13 de Maio de 1994). O facto de ter havido lá uma «mão materna» que desviou a bala mortífera demonstra uma vez mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são forças que podem influir na história e que, em última análise, a oração é mais forte que as balas, a fé mais poderosa que os exércitos.
A conclusão do «segredo» lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar permeável à força santificante de Deus uma história de sangue e de lágrimas. Anjos recolhem, sob os braços da cruz, o sangue dos mártires e com ele regam as almas que se aproximam de Deus. O sangue de Cristo e o sangue dos mártires são vistos aqui juntos: o sangue dos mártires escorre dos braços da cruz. O seu martírio realiza-se solidariamente com a paixão de Cristo, identificando-se com ela. Eles completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos seus sofrimentos (cf. Col. 1, 24). A sua própria vida tornou-se Eucaristia, inserindo-se no mistério do grão de trigo que morre e se torna fecundo. O sangue dos mártires é semente de cristãos, disse Tertuliano. Tal como nasceu a Igreja da morte de Cristo, do seu lado aberto, assim também a morte das testemunhas é fecunda para a vida futura da Igreja. Deste modo, a visão da terceira parte do «segredo», tão angustiante ao início, termina numa imagem de esperança: nenhum sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja sofredora, uma Igreja dos mártires torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus. Não se trata apenas de ver os que sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como Lázaro, que encontrou a grande consolação e misteriosamente representa Cristo, que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro; mas há algo mais: do sofrimento das testemunhas deriva uma força de purificação e renovamento, porque é a actualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficácia salvífica.
Chegamos assim a uma última pergunta: O que é que significa no seu conjunto (nas suas três partes) o «segredo» de Fátima? O que nos diz a nós? Em primeiro lugar, devemos supor, como afirma o Cardeal Sodano, que «os acontecimentos a que faz referência a terceira parte do "segredo" de Fátima parecem pertencer já ao passado». Os diversos acontecimentos, na medida em que lá são representados, pertencem já ao passado. Quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade, como, aliás, a fé cristã em geral não pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O que permanece - dissemo-lo logo ao início das nossas reflexões sobre o texto do «segredo» - é a exortação à oração como caminho para a «salvação das almas», e no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.
Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do «segredo» que justamente se tornou famosa: «O meu Imaculado Coração triunfará». Que significa isto? Significa que este Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie. O fiat de Maria, a palavra do seu Coração, mudou a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador: graças àquele «Sim», Deus pôde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade se deixa continuamente desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um coração humano e deste modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então, está expresso nesta frase: «No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o mundo» (Jo 16, 33). A mensagem de Fátima convida a confiar nesta promessa (in ob. cit., pp. 45-55).
«A guerra vai acabar. Mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições a Igreja e ao Santo Padre».
Terceira aparição: 13 de Julho de 1917.
«Para a Irmã Lúcia não representava maior dificuldade o facto de entender habitualmente que a guerra começou somente sob o pontificado de Pio XII. Observa ela que a anexação da Áustria - e poderíamos acrescentar vários outros acontecimentos políticos do fim do reinado de Pio XI - constituem autênticos prolegómenos da conflagração, a qual se configuraria inteiramente como tal algum tempo depois (cf. entrevista ao Padre Iongen, em De Marchi, p. 309).
(...) Lúcia julgou ver "o grande sinal" na luz extraordinária - que os astrónomos tomaram como uma aurora boreal - que iluminou os céus da Europa, na noite de 25 para 26 de Janeiro de 1938 (das 20h45 até 1h15, com breves intermitências). Convencida de que a guerra mundial - que "havia de ser horrível, horrível" - ia deflagrar, redobrou de esforços para obter que se atendesse aos pedidos que lhe tinham sido comunicados. Escreveu uma carta directamente ao papa Pio XI, nesse sentido (cf. De Marchi, p. 92; Walsh, pp. 179-181; Ayres da Fonseca, p. 45)».
António Augusto Borelli Machado («As aparições e a mensagem de Fátima nos manuscritos da Irmã Lúcia»).
«Na noite do mesmo dia 23 de Agosto, após o jantar, deparou-se um espectáculo inesperado a Hitler e aos seus convivas: por detrás de Unterberg, o céu começou por se colorir de azul-turquesa, em seguida de violeta e, depois, passou a vermelho-vivo - um fenómeno que se costuma designar como «luz do Norte» e que era muito raro por aquelas paragens. Von Below observou, então, ao Führer que se tratava de um presságio de que a guerra seria sangrenta; se ela iria ser sangrenta, respondeu-lhe aquele, que mais valia que começasse depressa, porque quanto mais o tempo passasse, mais sangrenta se tornaria».
Marlis Steinert («Hitler»).
«O mais admirável dos espectáculos de coloração terrestre manifesta-se por intermédio das luzes polares, mais particularmente na aurora borealis e na aurora australis. São no fundo emanações de luz multicolor. Para os cientistas tais emanações são apenas refulgência magnética. Porém, para o indagador clarividente elas são irradiações áureas do Espírito Crístico que anualmente penetra e circunda a Terra. As vibrações aurorais são gradualmente absorvidas pelos invólucros aúreos da Terra, os quais tendem a purificar e a espiritualizar o planeta e os seres que o habitam. Tornam-se apenas visíveis nas regiões polares na medida em que estão virtualmente destituídas de seres vivos. Áreas habitadas absorvem esta força de tal modo que nada permanece visível para o olho humano. Quando a dimensão espiritual deste grandioso fenómeno chega a ser compreendida, passamos a encarar o seu poder com profundo e reverente temor.
(...) Estamos convictos de que a aurora borealis é um fenómeno ligado ao magnetismo da Terra", diz-nos o Sr. Madill. "O facto de que a zona de maior frequência auroral decorra perto do pólo boreal magnético da Terra é algo de deveras significativo. Nesta zona de grande exposição das "luzes do norte" ocorrem as mais variadas perturbações eléctricas e magnéticas, tanto internas como externas.
"Agora estamos certos de que a aurora tem por causa uma energia invisível oriunda do sol", assevera o astrónomo, "provavelmente raios ultravioletas que afectam os gases rarefeitos da alta atmosfera".
O Sr. Madill conclui: "Se o espectáculo fosse manifestação corrente nas regiões habitadas, e não estivesse apenas confinado, como na maioria dos casos, às desabitadas zonas Árcticas e Antárcticas, as maravilhas da aurora seriam ainda mais cantadas pelos poetas do que o simples nascer e pôr do sol».
Corine Heline («Cura e Regeneração através da Cor»).
«Mas nesse arquivo [do Vaticano] não se encontram também os famosos segredos das profecias?
Só me lembro de Fátima; se temos outras profecias, não sei.
Quem tem acesso a esse segredo?
O segredo de Fátima só pode ser conhecido pelo próprio Papa e pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé; outras pessoas precisam de autorização pessoal do Papa.
Na imagem: João Paulo II e Joseph Ratzinger
O cículo das pessoas que tomou conhecimento desses segredos é conhecido ou sabe-se quantas pessoas são?
Não devem ser, sertamente, mais de três ou quatro pessoas.
Pronunciou-se uma vez sobre a profecia de Fátima, na medida em que disse que era o que "o próprio Jesus lembra muitas vezes, quando Ele não hesita em dizer: "Se não vos converterdes, morrereis todos". A profecia abalou-o?
Não.
Porque não?
Porque não vai além do que a mensagem cristã contém, como tal
Mas penso que nela se fala do fim do mundo?
Não posso agora dizer nada sobre isso. Em todo o caso, não deparei com nada de particularmente horrível».
Cardeal Ratzinger («O Sal da Terra, uma entrevista com Peter Seewald»).
A estrutura antropológica das revelações privadas
Tendo nós procurado, com estas reflexões, determinar o lugar teológico das revelações privadas, devemos agora, ainda antes de nos lançarmos numa interpretação da mensagem de Fátima, esclarecer, embora brevemente, o seu carácter antropológico (psicológico). A antropologia teológica distingue, neste âmbito três formas de percepção ou «visão»: a visão pelos sentidos, ou seja, a percepção externa corpórea; a percepção interior; e a visão espiritual (visio sensibilis, imaginativa, intellectualis). É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc., não se trata da percepção externa normal dos sentidos: as imagens e as figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante, como está lá, por exemplo, uma árvore ou uma casa. Isto é bem evidente, por exemplo, no caso da visão do Inferno (descrita na primeira parte do «segredo» de Fátima) ou então na visão descrita na terceira parte do «segredo», mas pode-se facilmente comprovar também noutras visões, sobretudo porque não eram captadas por todos os presentes, mas apenas pelos «videntes». De igual modo, é claro que não se trata duma «visão» intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da mística. Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a percepção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível.
Este ver interiormente não significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjectiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos «sentidos internos». Trata-se de verdadeiros «objectos» que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível que nos é habitual. Por isso, exige-se uma vigilância interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa da forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que enchem a alma. A pessoa é levada para além da pura exterioridade, onde é tocada por dimensões mais profundas da realidade que se lhe tornam visíveis. Talvez assim se possa compreender por que motivo os destinatários preferidos de tais aparições sejam precisamente as crianças: a sua alma ainda está pouco alterada, e quase intacta a sua capacidade interior de percepção. «Da boca dos pequeninos e das crianças de peito recebeste louvor»: esta foi a resposta de Jesus - servindo-se duma frase do Salmo 8 (v. 3) - à crítica dos sumos sacerdotes e anciãos, que achavam inoportuno o grito hossana das crianças (Mt 21, 16).
Como dissemos, a «visão interior» não é fantasia, mas uma verdadeira e própria maneira de verificação. Fá-lo, porém, com as limitações que lhe são próprias. Se, na visão exterior, já interfere o elemento subjectivo, isto é, não vemos o objecto puro mas este chega-nos através do filtro dos nossos sentidos que têm de operar um processo de tradução; na visão interior, isso é ainda mais claro, sobretudo quando se trata de realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte. O sujeito, o vidente, tem uma influência ainda mais forte; vê segundo as próprias capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis. Na visão interior, há, de maneira ainda mais acentuada que na exterior, um processo de tradução, desempenhando o sujeito uma parte essencial na formação da imagem daquilo que aparece. A imagem pode ser captada apenas segundo as suas medidas e possibilidades. Assim, tais visões não são em caso algum a «fotografia» pura e simples do Além, mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende.
Isto é patente em todas as grandes visões dos Santos; naturalmente vale também para as visões dos pastorinhos de Fátima. As imagens por eles delineadas não são de modo algum mera expressão da sua fantasia, mas fruto duma percepção real de origem superior e íntima; nem se hão-de imaginar como se por um instante se tivesse erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua essencialidade pura, como esperamos vê-lo na união definitiva com Deus. Poder-se-ia dizer que as imagens são uma síntese entre o impulso vindo do Alto e as possibilidades disponíveis para o efeito por parte do sujeito que as recebe, isto é, das crianças. Por tal motivo, a linguagem feita de imagens destas visões é uma linguagem simbólica. Sobre isto, diz o Cardeal Sodano: «Não descrevem de forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam sobre a mesma linha de fundo factos que se prolongam no tempo numa sucessão e duração não especificadas». Esta sobreposição de tempos e espaços numa única imagem é típica de tais visões, que, na sua maioria, só podem ser decifradas a posteriori. E não é necessário que cada elemento da visão tenha de possuir uma correspondência histórica concreta. O que conta é a visão como um todo, e a partir do conjunto das imagens é que se devem compreender os detalhes. O que efectivamente constitui o centro duma imagem só pode ser desvendado, em última análise, a partir do que é o centro absoluto da «profecia» cristã: o centro é o ponto onde a visão se torna apelo e indicação da vontade de Deus.
Uma tentativa de interpretação do «segredo» de Fátima
(...) Os pastorinhos experimentaram, durante um instante terrível, uma visão do Inferno. Viram a queda das «almas dos pobres pecadores». Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de passar por esse instante: para «salvá-las» - para mostrar um caminho de salvação. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de Pedro que diz: «Estais certos de obter, como prémio da vossa fé, a salvação das almas» (1,9). Como caminho para se chegar a tal objectivo, é indicado - de modo surpreendente para pessoas originárias do ambiente cultural anglo-saxónico e germânico -: a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para compreender isto, deveria bastar uma breve explicação. O termo «coração», na linguagem da Bíblia, significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. O «coração imaculado» é, segundo o Evangelho de Mateus (5,8), um coração que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e, consequentemente, «vê a Deus». Portanto, «devoção» ao Imaculado Coração de Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual o fiat - «seja feita a vossa vontade» - se torna o centro conformador de toda a existência. Se porventura alguém objectasse que não se deve interpor um ser humano entre nós e Cristo, lembre-se de que Paulo não tem medo de dizer às suas comunidades: «Imitai-me» (cf. 1 Cor 4, 16; FI 3, 17; 1 Ts 1, 6; Ts 3, 7,9). No Apóstolo, elas podem verificar concretamente o que significa seguir Cristo. Mas, com quem poderemos nós aprender sempre melhor do que com a Mãe do Senhor?
Chegamos assim finalmente à terceira parte do «segredo» de Fátima, publicado aqui pela primeira vez integralmente. Como resulta da documentação anterior, a interpretação dada pelo Cardeal Sodano, no seu texto do dia 13 de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente à Irmã Lúcia. A tal propósito, ela começou por observar que lhe foi dada a visão, mas não a sua interpretação. A interpretação, dizia, não compete ao vidente, mas à Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a Irmã Lúcia disse que tal interpretação corresponde àquilo que ela mesma tinha sentido e que, pela sua parte, reconhecia essa interpretação como correcta. Sendo assim, limitar-nos-emos, naquilo que vem a seguir, a dar de forma profunda um fundamento à referida interpretação, partindo dos critérios anteriormente desenvolvidos.
Do mesmo modo que tínhamos identificado, como palavra-chave da primeira e segunda parte do «segredo», a frase «salvar as almas», assim agora a palavra-chave desta parte do «segredo» é o tríplice grito: «Penitência, Penitência, Penitência!». Volta-nos ao pensamento o início do Evangelho: «Paenitemini et credite evangelio» (Mc 1, 15). Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da conversão, da fé. Tal é a resposta justa a uma época histórica caracterizada por grandes perigos, que serão delineados nas sucessivas imagens. Deixo aqui uma recordação pessoal: num colóquio que a Irmã Lúcia teve comigo, disse-me que lhe parecia cada vez mais claramente que o objectivo de todas as aparições era fazer crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade; tudo o mais pretendia apenas levar a isso.
Examinemos agora mais de perto as diversas imagens. O anjo com a espada de fogo à esquerda da Mãe de Deus lembra imagens análogas do Apocalipse: ele representa a ameaça do juízo que pende sobre o mundo. A possibilidade que este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje já não aparece de forma alguma como pura fantasia: o próprio homem preparou, com suas invenções, a espada de fogo. Em seguida, a visão mostra a força que se contrapõe ao poder da destruição: o brilho da Mãe de Deus e, de algum modo proveniente do mesmo, o apelo à penitência. Deste modo, é sublinhada a importância da liberdade do homem: o futuro não está de forma alguma determinado imutavelmente, e a imagem vista pelos pastorinhos não é, absolutamente, um filme antecipado do futuro, do qual já nada se poderia mudar. Na realidade, toda a visão acontece só para chamar em campo a liberdade e orientá-la numa direcção positiva. O sentido da visão não é, portanto, o de mostrar um filme sobre o futuro, já fixo irremediavelmente, mas exactamente o contrário: o seu sentido é mobilizar as forças da mudança em bem. Por isso, há que considerar completamente extraviadas aquelas explicações fatalistas do «segredo» que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de 13 de Maio de 1981 teria sido, em última análise, um instrumento do plano divino predisposto pela Providência e, por conseguinte, não poderia ter agido livremente, ou outras ideias semelhantes que por aí andam. A visão fala sobretudo de perigos e do caminho para salvar-se deles.
As frases seguintes do texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o carácter simbólico da visão: Deus permanece o incomensurável e a luz que está para além de qualquer visão nossa. As pessoas humanas são vistas como que num espelho. Devemos ter continuamente presente esta limitação inerente à visão, cujos confins estão aqui visivelmente indicados. O futuro é visto apenas «como que num espelho, de maneira confusa» (cf. 1 Cor 13, 12). Consideremos agora as diversas imagens que se sucedem no texto do «segredo». O lugar da acção é descrito com três símbolos: uma montanha íngreme, uma grande cidade meia em ruínas e finalmente uma grande cruz de troncos toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da história humana: a história como árdua subida para o alto, a história como lugar da criatividade e convivência humana e simultaneamente de destruições pelas quais o homem aniquila a obra do seu próprio trabalho. A cidade pode ser lugar de comunhão e progresso, mas também lugar do perigo e da ameaça mais extrema. No cimo da montanha, está a cruz: meta e ponto de orientação da história. Na cruz, a destruição é transformada em salvação; ergue-se como sinal da miséria da história e como promessa para a mesma.
Aparecem lá, depois, pessoas humanas: o Bispo vestido de branco («tivemos o pressentimento que era o Santo Padre»), outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e, naturalmente, homens e mulheres de todas as classes e posições sociais. O Papa parece caminhar à frente dos outros, tremendo e sofrendo por todos os horrores que o circundam. E não são apenas as casas da cidade que jazem meio em ruínas; o seu caminho é ladeado pelos cadáveres dos mortos. Deste modo, o caminho da Igreja é descrito como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violência, destruições e perseguições. Nesta imagem, pode-se ver representada a história de um século inteiro. Tal como os lugares da terra aparecem sinteticamente representados nas duas imagens da montanha e da cidade e estão orientados para a cruz, assim também os tempos são apresentados de forma contraída: na visão, podemos reconhecer o século vinte como século dos mártires, como século das guerras mundiais e de muitas guerras locais que ocuparam toda a segunda metade do mesmo, tendo feito experimentar novas formas de crueldade. No «espelho» desta visão, vemos passar as testemunhas da fé de decénios. A este respeito, é oportuno mencionar uma frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu ao Santo Padre no dia 12 de Maio de 1982: «A terceira parte do "segredo" refere-se às palavras de Nossa Senhora: "Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas"».
Na Via Sacra deste século, tem um papel especial a figura do Papa. Na árdua subida da montanha, podemos sem dúvida ver figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até ao Papa actual, que partilharam os sofrimentos deste século e se esforçaram por avançar, no meio deles, pelo caminho que leva à cruz. Na visão, também o Papa é morto na estrada dos mártires. Não era razoável que o Santo Padre, quando, depois do atentado de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira parte do «segredo», tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve muito perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvação com as palavras seguintes: «Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o Papa agonizante deteve-se no limiar da morte» (13 de Maio de 1994). O facto de ter havido lá uma «mão materna» que desviou a bala mortífera demonstra uma vez mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são forças que podem influir na história e que, em última análise, a oração é mais forte que as balas, a fé mais poderosa que os exércitos.
A conclusão do «segredo» lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar permeável à força santificante de Deus uma história de sangue e de lágrimas. Anjos recolhem, sob os braços da cruz, o sangue dos mártires e com ele regam as almas que se aproximam de Deus. O sangue de Cristo e o sangue dos mártires são vistos aqui juntos: o sangue dos mártires escorre dos braços da cruz. O seu martírio realiza-se solidariamente com a paixão de Cristo, identificando-se com ela. Eles completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos seus sofrimentos (cf. Col. 1, 24). A sua própria vida tornou-se Eucaristia, inserindo-se no mistério do grão de trigo que morre e se torna fecundo. O sangue dos mártires é semente de cristãos, disse Tertuliano. Tal como nasceu a Igreja da morte de Cristo, do seu lado aberto, assim também a morte das testemunhas é fecunda para a vida futura da Igreja. Deste modo, a visão da terceira parte do «segredo», tão angustiante ao início, termina numa imagem de esperança: nenhum sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja sofredora, uma Igreja dos mártires torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus. Não se trata apenas de ver os que sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como Lázaro, que encontrou a grande consolação e misteriosamente representa Cristo, que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro; mas há algo mais: do sofrimento das testemunhas deriva uma força de purificação e renovamento, porque é a actualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficácia salvífica.
Chegamos assim a uma última pergunta: O que é que significa no seu conjunto (nas suas três partes) o «segredo» de Fátima? O que nos diz a nós? Em primeiro lugar, devemos supor, como afirma o Cardeal Sodano, que «os acontecimentos a que faz referência a terceira parte do "segredo" de Fátima parecem pertencer já ao passado». Os diversos acontecimentos, na medida em que lá são representados, pertencem já ao passado. Quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade, como, aliás, a fé cristã em geral não pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O que permanece - dissemo-lo logo ao início das nossas reflexões sobre o texto do «segredo» - é a exortação à oração como caminho para a «salvação das almas», e no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.
Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do «segredo» que justamente se tornou famosa: «O meu Imaculado Coração triunfará». Que significa isto? Significa que este Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie. O fiat de Maria, a palavra do seu Coração, mudou a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador: graças àquele «Sim», Deus pôde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade se deixa continuamente desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um coração humano e deste modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então, está expresso nesta frase: «No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o mundo» (Jo 16, 33). A mensagem de Fátima convida a confiar nesta promessa (in ob. cit., pp. 45-55).
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
A mensagem de Fátima (i)
Escrito por Joseph Ratzinger
«A terceira parte do segredo revelado a 13 de Julho de 1917 na Cova da Iria-Fátima (Na transcrição, respeitou-se o texto original mesmo quando havia erros e imprecisões de escrita e pontuação, os quais, aliás, não impedem a compreensão daquilo que a vidente quis dizer).
Escrevo em acto de obediência a Vós Deus meu, que mo mandais por meio de sua Ex.cia. Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e da Vossa e minha Santíssima Mãe.
Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fogo em a mão esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam incendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: o Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n'uma luz emensa que é Deus: "algo semelhante a como se vêem as pessoas n'um espelho quando lhe passam por diante" um Bispo vestido de Branco "tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre". Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz e troncos toscos como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dôr e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns atrás outros os Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n'êles recolhiam o sangue dos Martires e com êle regavam as almas que se aproximavam de Deus.
Tuy-3-1-1944».
COMENTÁRIO TEOLÓGICO
Quem lê com atenção o texto chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século que está para findar, representada através duma cena descrita numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto que a Mãe do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultanemanete assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas - o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal Sodano pronunciou, no 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns esclarecimentos básicos sobre o modo como, segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja distingue «revelação pública» e «revelações privadas»; entre as duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de grau. A noção «revelação pública» designa a acção reveladora de Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento. Chama-se "revelação", porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se tornar homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto, de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo da Igreja Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da Revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: «Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra - e não tem outra -, Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d'Ele outra realidade ou novidade» (CIC, n.º 65; S. João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os povos ter ficado concluída com Cristo e o testemunho que d'Ele nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o acontecimento único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia, que garante e interpreta tal acontecimento, não significa que agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da Igreja Católica: «No entanto, apesar de a Revelação ter acabado, não quer dizer que esteja completamente explicitada, E está reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance no decorrer dos séculos» (n.º 66). Estes dois aspectos - o vínculo com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua compreensão - estão optimamente ilustrados nos discursos de despedida do Senhor, quando Ele declara aos discípulos: «Ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar» (Jo 16, 12-14). Por um lado, o Espírito serve de guia, desvendando assim um conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade da fé cristã, e que é tal que não estará concluída jamais. Por outro lado, esse acto de guiar é «receber» do tesouro do próprio Jesus Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução por obra do Espírito. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa frase do Papa
Gregório Magno: «As palavras divinas crescem com quem as lê» (CIC, n.º 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel 1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais, através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e, consequentemente, o «crescimento da Palavra»: realiza-se por meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação daqueles «que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade» (Dei Verbum, n.º 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que se aplica a todas as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica sobre isto também: «No decurso dos séculos tem havido revelações ditas "privadas", algumas das quais foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) "completar" a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente numa determinada época da história» (n.º 67). Isto deixa claro duas coisas:
1. A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto, nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-se credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV, afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo a propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações aprovadas não é devida uma adesão de fé catolica; nem por isso é possível. Estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo flamengo E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a suas adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, não se deve transcurar. É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se afasta d'Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo, que nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui que uma revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente da salvação. Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como o demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se afirmar que, na relação entre liturgia e piedade popular, está delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas: a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimentada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é a primeira e fundamental forma de «inculturação» da fé, que deve continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia, mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas, e que eram primariamente necessárias, à definição positiva das revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias. Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que embora tenha de ser examinado, não pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não significa predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de Deus enquanto exigência e indicação para o presente. Neste caso, a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial é a actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação, ou então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se relacionar o carisma da profecia com a noção «sinais do tempo», redescoberta pelo Vaticano II: «Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?» (Lc. 12, 56). Por «sinais do tempo», nesta palavra de Jesus, deve-se entender o seu próprio caminho. Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de Cristo em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja - e portanto na de Fátima -, trata-se disto mesmo: ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a justa resposta para os mesmos (in Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, Paulinas, 2000, pp. 26-27 e 39-45).
Continua
«A terceira parte do segredo revelado a 13 de Julho de 1917 na Cova da Iria-Fátima (Na transcrição, respeitou-se o texto original mesmo quando havia erros e imprecisões de escrita e pontuação, os quais, aliás, não impedem a compreensão daquilo que a vidente quis dizer).
Escrevo em acto de obediência a Vós Deus meu, que mo mandais por meio de sua Ex.cia. Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e da Vossa e minha Santíssima Mãe.
Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fogo em a mão esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam incendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: o Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n'uma luz emensa que é Deus: "algo semelhante a como se vêem as pessoas n'um espelho quando lhe passam por diante" um Bispo vestido de Branco "tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre". Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz e troncos toscos como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dôr e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns atrás outros os Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n'êles recolhiam o sangue dos Martires e com êle regavam as almas que se aproximavam de Deus.
Tuy-3-1-1944».
COMENTÁRIO TEOLÓGICO
Quem lê com atenção o texto chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século que está para findar, representada através duma cena descrita numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto que a Mãe do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultanemanete assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas - o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal Sodano pronunciou, no 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns esclarecimentos básicos sobre o modo como, segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja distingue «revelação pública» e «revelações privadas»; entre as duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de grau. A noção «revelação pública» designa a acção reveladora de Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento. Chama-se "revelação", porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se tornar homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto, de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo da Igreja Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da Revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: «Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra - e não tem outra -, Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d'Ele outra realidade ou novidade» (CIC, n.º 65; S. João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os povos ter ficado concluída com Cristo e o testemunho que d'Ele nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o acontecimento único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia, que garante e interpreta tal acontecimento, não significa que agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da Igreja Católica: «No entanto, apesar de a Revelação ter acabado, não quer dizer que esteja completamente explicitada, E está reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance no decorrer dos séculos» (n.º 66). Estes dois aspectos - o vínculo com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua compreensão - estão optimamente ilustrados nos discursos de despedida do Senhor, quando Ele declara aos discípulos: «Ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar» (Jo 16, 12-14). Por um lado, o Espírito serve de guia, desvendando assim um conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade da fé cristã, e que é tal que não estará concluída jamais. Por outro lado, esse acto de guiar é «receber» do tesouro do próprio Jesus Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução por obra do Espírito. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa frase do Papa
Gregório Magno: «As palavras divinas crescem com quem as lê» (CIC, n.º 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel 1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais, através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e, consequentemente, o «crescimento da Palavra»: realiza-se por meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação daqueles «que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade» (Dei Verbum, n.º 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que se aplica a todas as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica sobre isto também: «No decurso dos séculos tem havido revelações ditas "privadas", algumas das quais foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) "completar" a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente numa determinada época da história» (n.º 67). Isto deixa claro duas coisas:
1. A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto, nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-se credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV, afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo a propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações aprovadas não é devida uma adesão de fé catolica; nem por isso é possível. Estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo flamengo E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a suas adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, não se deve transcurar. É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se afasta d'Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo, que nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui que uma revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente da salvação. Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como o demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se afirmar que, na relação entre liturgia e piedade popular, está delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas: a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimentada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é a primeira e fundamental forma de «inculturação» da fé, que deve continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia, mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas, e que eram primariamente necessárias, à definição positiva das revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias. Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que embora tenha de ser examinado, não pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não significa predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de Deus enquanto exigência e indicação para o presente. Neste caso, a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial é a actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação, ou então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se relacionar o carisma da profecia com a noção «sinais do tempo», redescoberta pelo Vaticano II: «Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?» (Lc. 12, 56). Por «sinais do tempo», nesta palavra de Jesus, deve-se entender o seu próprio caminho. Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de Cristo em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja - e portanto na de Fátima -, trata-se disto mesmo: ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a justa resposta para os mesmos (in Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, Paulinas, 2000, pp. 26-27 e 39-45).
Continua
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
As aparições de Fátima e a filosofia portuguesa (iii)
Escrito por Pinharanda Gomes
«O grave problema filosófico acerca da prioridade da matéria institui-se em diversas leituras, predominando a intendência averroísta e cabalista. António Telmo encaminha a leitura, não no sentido da prioridade, mas no sentido da necessidade: a matéria é isso de que o Espírito carece para se cumprir. Nessa acepção, a matéria interpreta-se como a própria "árvore sephirótica", a genuína madeira (forma vulgar da erudita matéria) que é matéria, mater e mãe, princípio da multiplicação, que se ergue do abismo para se dar à luz do sol, sol esse que é o próprio Espírito. Esta leitura faz compreender o ensinamento maçónico segundo o qual o Grande Arquitecto do Universo edifica o Templo, não com pedra, mas com madeira. Essa madeira é Maria, a matéria pela qual o Espírito humaniza uma pessoa divina, uma hipóstase teótica, através de Maria incarnada no mundo dos corpos. Álvaro Ribeiro, mestre de Telmo, já sublinhara a contiguidade da biografia de Jesus com a ideia de madeira: o pai adoptivo é carpinteiro e, transmite, sem dúvida, a sua profissão ao filho, cuja alma ajudou a carpinteirar, a aperfeiçoar.
(...) O nome dos lugares obriga a repensar o peso do toponímico Fátima, que foi o adoptado pelos fiéis e pelos mais cediços documentos da propaganda e da pastoral. No entanto, Fátima é a jurisdição administrativa dos lugares em que as aparições ocorrem. Lugares nominados em simbologia de fertilidade, de maternidade, de esotericidade matricial e natural: Cova da Iria, Loca do Cabeço, Valinhos. O genuíno lugar sagrado é Cova da Iria, em que a aparição é a de Maria, Mãe de Jesus. Este é o espírito do lugar.
(...) A esta luz consideram-se excedentes os tratados de fundamentalismo fatimista, entre eles, o de Moisés do Espírito Santo, Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, Lisboa, Universidade Nova, 1995, sem prejuízo de notáveis concatenações que o Autor obtém, no plano sócio-etnológico-religioso, que merecem atenção. Não temos dificuldade em aceitar a pastoralidade de Fátima quanto ao diálogo Igreja/Islão, tal como definida em escritos de António de Cértima (O Carisma de Fátima e a Teologia Islâmica, 1967) de Frederico Peirone e da pastoral missionária de D. Eurico Dias Nogueira. Cf. Pinharanda Gomes, A Filosofia Arábico-Portuguesa, Lisboa: Guimarães Editores, 1991, pp. 373 e seguintes».
Pinharanda Gomes («Cidade Nova»).
«Em Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, Moisés do Espírito Santo apresenta uma versão cautelosa dos acontecimentos não só deveras interessante como bem mais verosímil.
Ao contrário do que comummente se crê, não foram árabes quem invadiu a Península Ibérica em 711, mas sim berberes de Marrocos, pertencentes às tribus Macemuda e Zenaga, comandados por um berber, Tarik.
Na imagem: Hamsa ("cinco" ou "mão de Fátima", filha de Mohamed).
Os Macemudas diziam-se descendentes de Fátima, filha de Mohamed, e a sua doutrina era um chiismo primitivo, considerado herético pelo Islão ortodoxo, ou sunita, e que tinha muitos pontos comuns com o gnosticismo, o zoroastrismo e o misticismo cristão. Para os chiitas, a legitimidade da sucessão do Profeta pertence aos descendentes de Fátima, cujo marido, Ali ibn Talib, foi o primeiro Imam, dele descendendo onze imanes. Esta descendência, que podia ser genealógica ou espiritual, implicava a transmissão de um Segredo sobre a chave para a interpretação do sentido secreto e alegórico do Corão. O último Imam, Muhamad al-Muntazar (Mohamed, o Esperado), nasceu, miraculosamente, no ano 255 da Hégira (868 A.D.) e miraculosamente desapareceu cinco anos depois; ocultou-se fisicamente, mas vive, ainda hoje, no seu corpo físico, num mundo supra-sensível, aguardando a chegada da hora da Desocultação Messiânica em que, como Messias, combaterá a injustiça e a decadência moral, após o que virá o Senhor Jesus, filho de Maria, para o Julgamento Final.
Os Macemuda e Zenaga ocuparam a Serra de Aires, onde, naturalmente, deixaram numerosos vestígios toponímicos, quer da sua presença de cinco séculos, quer do seu próprio sistema religioso. Citem-se, a título de exemplo, Moçomodia, uma aldeia de Fátima, que deriva de Macemuda; Zanaga, um bairro de Caixarias, que vem de Zenaga; Fátima, a freguesia, que retirou o seu nome de Fátima, a filha do vali de Alcácer do Sal e protagonista de uma bela lenda dos tempos da fundação de Portugal; Fazarga, um cabeço situado a cerca de dois quilómetros da Cova da Iria, que vem de az-Zagra, a Resplandecente, um dos títulos de Fátima, esta a filha do profeta; Chita, uma ribeira, derivada de chiita; Aljustrel, que virá do hebraico, ou do púnico, ahl ses tr'eli, gente que invoca o regresso de Ali, ou Elias; Madalena, uma corrupção do árabe mahdi i'lana, messias anunciado; Iria, que deriva de riya (lê-se eriía), um grau do sufismo, que significa aparecer, mostrar-se, porque o iniciado sufi começa a ver coisas, etc.
Assim, na opinião deste autor, é muito provável que na região que hoje é a Cova da Iria, sufis das tribus Macemuda ou Zenaga hajam tido várias visões que terão tomado pelo Imam Oculto ou por Fátima, a filha do Profeta. Séculos mais tarde, as visões ter-se-ão repetido na presença de três crianças que tinham acabado de rezar as contas, uma prática semelhante à que os sufis usam para alcançarem o êxtase, cujos relatos contêm a mesma gnose dos fatimidas macemudas: "aparição do Oculto, vulto de luz masculino-feminino de 15 anos, cinco figuras ao lado do sol, sinais no sol", diz Moisés Espírito Santo. Daí que, hoje em dia, os Marroquinos estejam persuadidos de que os Portugueses veneram, na Cova da Iria, Saidatuna Fatemah (Senhora Nossa Fátima), ou Leila Fatemah (Dama Fátima)».
António Monteiro («O que é Fátima?»)
Maria, Mãe e Mestra segundo Álvaro Ribeiro
Quanto às aparições da Cova da Iria, Álvaro parece nada ter escrito de forma inequívoca. Os documentos que nos legou são riquíssimos em termos de Angelologia, de Teologia e de Messianologia, como são algo de singular quanto à natureza e ideal da mulher, acerca da qual escreveu páginas apologéticas sem termo de comparação na nossa cultura. Pensador angélico, sem dúvida, acerca de Fátima foi omisso. No entanto, Francisco da Cunha Leão efectuou, a partir da mariologia alvarina, uma glosa, segundo uma leitura providencialista. Atento aos valores peculiares à tradição popular, Álvaro considerou as devoções marianas, ligando-as à sensibilidade da nossa meiguice e à importância da figura feminina, tanto na poesia como na vida (30). No mínimo estamos certos de um diagnóstico em que acolhe os portugueses como "sedentos de devoções particulares, e contentes com a autorização que o Magistério Eclesiástico concede de publicar e ler as narrativas das aparições maravilhosas e de todos os correspondentes milagres" (31). Álvaro entende que esta aceitação significa o fervoroso desejo de que a intervenção da "Terceira Pessoa da Santíssima Trindade venha, enfim, dar melhor explicação da doutrina revelada" (32), ou seja - as aparições de Maria podem ser olhadas no contexto da pedagogia da fé, ou da educação maternal pelo magistério da fé.
Quem leia os ensaios de propedêutica antropológica de Álvaro Ribeiro, dar-se-á conta de como a condição feminil e de como a missão da mulher - aceite como amante, esposa e mãe - é inteligida por um observador contemplativo e valorante da dignidade e da singularidade da mulher no processo da geração e da redenção do género humano. Nenhum pensador contemporâneo dedicou tão excelsas páginas à mulher como essas que constam do capítulo acerca do amor, no ensaio primacial intitulado A Razão Animada. Segundo Álvaro não há magistério sem amor; o amor é por excelência feminino, de onde o magistério incumbir à mulher, à mãe, tendo o homem, o pai, melhor peso na magistralidade paidêutica. A religião, atributo apodítico do amor, inere muito mais à mulher do que ao homem, de onde Álvaro considerar paradigmática a devoção a Maria, mãe de Jesus. Quem estas palavras escreve pode testemunhar em acto de fidedigna verdade, como, um dia, ouviu de Álvaro a pergunta: "porque é que Nossa Senhora, nas modernas aparições aparece sozinha, como se não fosse mãe?» Não tinha qualquer dificuldade em aceitar os significados da Imaculada e da Assumpção, porque achava estes tópicos nominais como símbolos da excelsitude da missão feminina, mas fazia depender esta excelsitude da missão soteriológico-magistral da mulher, a pontos de entender que a missão do mestre, sendo este masculino, equivalia de algum modo à posse de predicados femininos, antecipando-se ao que já hoje se denomina "maternidade divina". Não se diz pai e mestre, diz-se mãe e mestra, mater et magistra, a mãe e a mestra do homem. Por isso que Álvaro sentisse o que, por suas palavras, se diria constituir a solitude da mãe, sozinha, sem o marido, e sem o filho. Admirava ele a imagem do Perpétuo Socorro, que aceitava como digníssima imagem da missão escatológica da mãe de Jesus. "A
predilecção pela imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro explica-se pela razão de que nessa obra de arte está patente a divina maternidade na perfeição dos seus atributos. Não é já a Mãe que amamentou o filho, mas a mãe que o educou e preparou para o seu destino redentor e messiânico. Não é já a maternidade biológica, ainda com sabor pagão, mas a maternidade espiritual, em seu pleno significado educativo... A imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, se bem que contenha os elementos simbólicos do sofrimento humano, deixa indeterminado o exercício fecundo da imaginação" (33). Este olhar para a educadora do homem permite ao filósofo sugestivos tentâmes hermenêuticos à doutrina do pecado original, do mistério da incarnação e da missão redentora do Messias. Aliás, como deixa transparecer em vários dos seus escritos, o mistério da incarnação é menos um facto biológico do que um facto teológico, e isso dá a depreender da dedicatória do livro iniciático A Arte de Filosofar (34) ao poeta que ele considerava como o genuíno poeta do mistério da incarnação, o seu amigo e antigo condiscípulo, José Régio.
Os queixumes do filho são as dores da mãe. Curiosamente, as aparições de Nossa Senhora em Fátima decorrem no chamado ciclo da alegria, que liturgicamente começa logo na segunda-feira de Páscoa com as festas marianas, que se desenvolvem por toda a parte durante o tempo pentecostal e o tempo comum, até ao início do Advento. E, não obstante, a Senhora dos Pastorinhos parece ser Nossa Senhora das Dores ou da Piedade. Trazia uma mensagem de alegria, de esperança, mas o seu coração rebenta de ingente dor: seu filho está muito ofendido pelos pecados dos homens. Ela apresenta ao mundo, através dos Pastorinhos, o seu Jesus crucificado pelos pecados humanos. Ela apresenta o Menino Jesus pregado na Cruz. A Senhora só se identificou como do Rosário em 13 de Outubro de 1917. O bispo de Leiria fundou, em 1928, a Confraria de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, no Santuário, mas não foi por acaso que a congregação fundada pelo Cónego Formigão se chama Servas Reparadoras de Nossa Senhora das Dores de Fátima, e que Lúcia professou a primeira vez com o nome de Irmã Maria das Dores.
A imagem da Senhora das Dores aparece, como que a fechar o ciclo, na aparição de 13 de Outubro, embora esta imagem fique delida pela multiplicação de outras imagens surgentes no mesmo ensejo, incluindo a da Sagrada Família. Consideremos, aliás, que um dos primeiros obreiros de Fátima, o militante católico Alberto Diniz da Fonseca, notário em Torres Novas, um dos "empresários do sobrenatural", como lhe chamava o seu amigo e condiscípulo anti-clerical Tomás da Fonseca - também achava que Fátima era principalmente a Sagrada Família e o Anjo da Paz (35), ainda que a iconografia da pastoral optasse pela representação descrita desde início pelos Pastorinhos, a Senhora, sem companhia visível. Alberto terá as suas dúvidas: não foi ele quem apoiou Gilberto Fernandes Santos a encomendar a primeira imagem para a capelinha, não a da Sagrada Família, mas a da Nossa Senhora das Dores, sem espada, e de branco e ouro revestida?
Fechando: no pensamento de mestre Álvaro, em consonância com o de Leonardo, a virgindade vale pela maternidade. Toda a mãe é virgem, baste que se distinga entre oclusividade fisiológica e virgindade espiritual.
Mostração e demonstração
A crítica de Álvaro Ribeiro ao positivismo envolve os aspectos em que o positivismo contaminou a arte e a técnica de exposição da fé e da ciência divina, incluindo a apologética, em que, no seu entender, surgiram obras em que "Deus aparece como um problema ontológico, Cristo como um problema histórico, a Igreja como um problema sociológico" (36). Assim como admite vários graus de revelação, o magistério alvarino assume que nem todo o saber é adquirido e construído, mas que há um saber herdado por revelação, de onde o mérito concedido ao prólogo de Santo Anselmo, "neque enim quaero intelligere ut credam, sed credo ut intelligam", com que abre o seu admirável compêndio iniciático (37).
Ora, do ponto de vista das teses da "Filosofia Portuguesa", os documentos escritos, mesmo os de natureza jurídica, podem não conter a verdade tal e qual, podendo uma escritura conter uma narrativa decorrente de um acordo prévio das partes, para que os termos sejam aqueles e não outros, quais os da situação real. Sendo assim, a interpretação da história pelos documentos positivos não esgota o conhecimento da história através da qual flui um espírito, imperceptível à provação positiva. Esta limitação, óbvia para a história humana, em que os factos podem significar mais (e menos) do que os próprios factos, devém mais complexa na probação dos acontecimentos espirituais de natureza sobrenatural. Por isso, a tradição da escola rejeita, por excessivos, ou unicamente polemizantes, aqueles documentos escritos que, através de uma dialéctica de facto/contra facto, ou de uma antinomia de como é/ como devia ser, ou de uma sofística de que os factos são os factos, de nada valendo argumentos, - tentam positivizar a revelação sobrenatural, situando-a em termos tais que o teatro, ou encenação aparicional, depende muito mais de uma inteligência estética do humano, do que da inteligência divina, inacessível às razões aduzidas do particular. Deste modo, a aparição dirige-se à pistis, ao entendimento pístico, à capacidade de crença e, por fim, ao próprio dom da fé. São desnecessários os livros comprovativos, pela indução de factos particulares, da veracidade, autenticidade ou falsidade das aparições. Até porque, e no respeito do valor axiológico da subjectividade, só o que vê sabe o que vê: e nenhum outro vê como a sua (do outro) subjectividade vê. A aparição não apela à prova, nem sucede para ser demonstrada: ela é a sua mesma prova, uma mostração que recusa demonstração (38). Foram estas orientações que presidiram ao manifesto, ou declaração de vários escritores, entre eles alguns vinculados ao chamado Grupo da Filosofia Portuguesa (Afonso Botelho, Alexandre Coelho, Francisco da Cunha Leão, Henrique Ruas, entre outros) em que, a propósito de um escrito maledicente, afirmaram: "O mistério de Fátima é superior à história, positiva, ou negativa; e garante, todos os dias, um sinal de esperança na verdade da crença e na crença da verdade" (39).
Notas:
(30) Francisco da Cunha Leão, O Enigma Português, Lisboa, Guimarães Ed., 1961.
(31) Álvaro Ribeiro, Apologia e Filosofia, Lisboa, Guimarães Editores, 1953, p. 50.
(32) Id., ib.
(33) Álvaro Ribeiro, "O Perpétuo Socorro na filosofia da nossa vida", in Miriam, Ano II, n.º 11, Porto, 1955, p. 509, Cf. adiante.
(34) Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália Editora, 1955. Uma das mais belas páginas portuguesas sobre os carismas de Maria acha-se em Álvaro Ribeiro, A Literatura de José Régio, Lisboa, S.E.C., 1969, p. 359. "Mais do que a virgindade, o povo admira a maternidade extensiva a todos os homens, conferindo-lhes um suplemento de alma, tal como foi invocada na mais bela oração inspirada que teve por autor S. Bernardo."
(35) Padre Geada Pinto, prefácio a Pinharanda Gomes, O Servo de Jesus Alberto Diniz da Fonseca, Guarda: Liga dos Servos de Jesus, 1988, p. 8; AA. VV., Espiritualidade das Religiosas Reparadoras de Fátima, Braga: Apostolado da Oração, 1997.
(36) Álvaro Ribeiro, Os Positivistas, Liv. Francisco Franco, 1951, p. 106. Cf. António Quadros, "A Filosofia Portuguesa, de Bruno à Geração do 57", in Democracia e Liberdade, números 42/43, Lisboa: I.D.L., 1987, pp. 7-71.
(37) Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália Editora, 1955, p. 11. Cf. Pinharanda Gomes, "A Arte de Filosofar", in Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa, Lisboa: Fundação Lusíada, 1955, pp. 193-206.
(38) O elenco de obras demonstrativas ou inquiritivas acerca de Fátima é extenso, tanto em apologética negativa, como em apologética afirmativa. Citem-se, entre outros, os livros de Tomaz da Fonseca e de João Ilharco e, por outro lado, de J. Galamba de Oliveira, o popular Fátima à prova (1946) e de P. Oliveira Faria, Perguntas sobre Fátima e Fátima Desmascarada (1975). José Rodrigues Miguéis, no romance O Milagre segundo Salomé (1975) entrecha a história de uma senhora que, em 1917, noiva de um engenheiro que trabalhava em topografia na Serra de Aire, se apresentava por vezes, como sendo "a senhora de Fátima"!!! O romance romanceia, mas não pretende demonstrar seja o que for: cumpre o aproveitamento de uma "estoria".
(39) Essa declaração, que inserimos em Apêndice, apareceu em diversos jornais em 1972 - tendo sido suscitada pelo livro Fátima Desmascarada (1971).
«O grave problema filosófico acerca da prioridade da matéria institui-se em diversas leituras, predominando a intendência averroísta e cabalista. António Telmo encaminha a leitura, não no sentido da prioridade, mas no sentido da necessidade: a matéria é isso de que o Espírito carece para se cumprir. Nessa acepção, a matéria interpreta-se como a própria "árvore sephirótica", a genuína madeira (forma vulgar da erudita matéria) que é matéria, mater e mãe, princípio da multiplicação, que se ergue do abismo para se dar à luz do sol, sol esse que é o próprio Espírito. Esta leitura faz compreender o ensinamento maçónico segundo o qual o Grande Arquitecto do Universo edifica o Templo, não com pedra, mas com madeira. Essa madeira é Maria, a matéria pela qual o Espírito humaniza uma pessoa divina, uma hipóstase teótica, através de Maria incarnada no mundo dos corpos. Álvaro Ribeiro, mestre de Telmo, já sublinhara a contiguidade da biografia de Jesus com a ideia de madeira: o pai adoptivo é carpinteiro e, transmite, sem dúvida, a sua profissão ao filho, cuja alma ajudou a carpinteirar, a aperfeiçoar.
(...) O nome dos lugares obriga a repensar o peso do toponímico Fátima, que foi o adoptado pelos fiéis e pelos mais cediços documentos da propaganda e da pastoral. No entanto, Fátima é a jurisdição administrativa dos lugares em que as aparições ocorrem. Lugares nominados em simbologia de fertilidade, de maternidade, de esotericidade matricial e natural: Cova da Iria, Loca do Cabeço, Valinhos. O genuíno lugar sagrado é Cova da Iria, em que a aparição é a de Maria, Mãe de Jesus. Este é o espírito do lugar.
(...) A esta luz consideram-se excedentes os tratados de fundamentalismo fatimista, entre eles, o de Moisés do Espírito Santo, Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, Lisboa, Universidade Nova, 1995, sem prejuízo de notáveis concatenações que o Autor obtém, no plano sócio-etnológico-religioso, que merecem atenção. Não temos dificuldade em aceitar a pastoralidade de Fátima quanto ao diálogo Igreja/Islão, tal como definida em escritos de António de Cértima (O Carisma de Fátima e a Teologia Islâmica, 1967) de Frederico Peirone e da pastoral missionária de D. Eurico Dias Nogueira. Cf. Pinharanda Gomes, A Filosofia Arábico-Portuguesa, Lisboa: Guimarães Editores, 1991, pp. 373 e seguintes».
Pinharanda Gomes («Cidade Nova»).
«Em Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, Moisés do Espírito Santo apresenta uma versão cautelosa dos acontecimentos não só deveras interessante como bem mais verosímil.
Ao contrário do que comummente se crê, não foram árabes quem invadiu a Península Ibérica em 711, mas sim berberes de Marrocos, pertencentes às tribus Macemuda e Zenaga, comandados por um berber, Tarik.
Na imagem: Hamsa ("cinco" ou "mão de Fátima", filha de Mohamed).
Os Macemudas diziam-se descendentes de Fátima, filha de Mohamed, e a sua doutrina era um chiismo primitivo, considerado herético pelo Islão ortodoxo, ou sunita, e que tinha muitos pontos comuns com o gnosticismo, o zoroastrismo e o misticismo cristão. Para os chiitas, a legitimidade da sucessão do Profeta pertence aos descendentes de Fátima, cujo marido, Ali ibn Talib, foi o primeiro Imam, dele descendendo onze imanes. Esta descendência, que podia ser genealógica ou espiritual, implicava a transmissão de um Segredo sobre a chave para a interpretação do sentido secreto e alegórico do Corão. O último Imam, Muhamad al-Muntazar (Mohamed, o Esperado), nasceu, miraculosamente, no ano 255 da Hégira (868 A.D.) e miraculosamente desapareceu cinco anos depois; ocultou-se fisicamente, mas vive, ainda hoje, no seu corpo físico, num mundo supra-sensível, aguardando a chegada da hora da Desocultação Messiânica em que, como Messias, combaterá a injustiça e a decadência moral, após o que virá o Senhor Jesus, filho de Maria, para o Julgamento Final.
Os Macemuda e Zenaga ocuparam a Serra de Aires, onde, naturalmente, deixaram numerosos vestígios toponímicos, quer da sua presença de cinco séculos, quer do seu próprio sistema religioso. Citem-se, a título de exemplo, Moçomodia, uma aldeia de Fátima, que deriva de Macemuda; Zanaga, um bairro de Caixarias, que vem de Zenaga; Fátima, a freguesia, que retirou o seu nome de Fátima, a filha do vali de Alcácer do Sal e protagonista de uma bela lenda dos tempos da fundação de Portugal; Fazarga, um cabeço situado a cerca de dois quilómetros da Cova da Iria, que vem de az-Zagra, a Resplandecente, um dos títulos de Fátima, esta a filha do profeta; Chita, uma ribeira, derivada de chiita; Aljustrel, que virá do hebraico, ou do púnico, ahl ses tr'eli, gente que invoca o regresso de Ali, ou Elias; Madalena, uma corrupção do árabe mahdi i'lana, messias anunciado; Iria, que deriva de riya (lê-se eriía), um grau do sufismo, que significa aparecer, mostrar-se, porque o iniciado sufi começa a ver coisas, etc.
Assim, na opinião deste autor, é muito provável que na região que hoje é a Cova da Iria, sufis das tribus Macemuda ou Zenaga hajam tido várias visões que terão tomado pelo Imam Oculto ou por Fátima, a filha do Profeta. Séculos mais tarde, as visões ter-se-ão repetido na presença de três crianças que tinham acabado de rezar as contas, uma prática semelhante à que os sufis usam para alcançarem o êxtase, cujos relatos contêm a mesma gnose dos fatimidas macemudas: "aparição do Oculto, vulto de luz masculino-feminino de 15 anos, cinco figuras ao lado do sol, sinais no sol", diz Moisés Espírito Santo. Daí que, hoje em dia, os Marroquinos estejam persuadidos de que os Portugueses veneram, na Cova da Iria, Saidatuna Fatemah (Senhora Nossa Fátima), ou Leila Fatemah (Dama Fátima)».
António Monteiro («O que é Fátima?»)
Maria, Mãe e Mestra segundo Álvaro Ribeiro
Quanto às aparições da Cova da Iria, Álvaro parece nada ter escrito de forma inequívoca. Os documentos que nos legou são riquíssimos em termos de Angelologia, de Teologia e de Messianologia, como são algo de singular quanto à natureza e ideal da mulher, acerca da qual escreveu páginas apologéticas sem termo de comparação na nossa cultura. Pensador angélico, sem dúvida, acerca de Fátima foi omisso. No entanto, Francisco da Cunha Leão efectuou, a partir da mariologia alvarina, uma glosa, segundo uma leitura providencialista. Atento aos valores peculiares à tradição popular, Álvaro considerou as devoções marianas, ligando-as à sensibilidade da nossa meiguice e à importância da figura feminina, tanto na poesia como na vida (30). No mínimo estamos certos de um diagnóstico em que acolhe os portugueses como "sedentos de devoções particulares, e contentes com a autorização que o Magistério Eclesiástico concede de publicar e ler as narrativas das aparições maravilhosas e de todos os correspondentes milagres" (31). Álvaro entende que esta aceitação significa o fervoroso desejo de que a intervenção da "Terceira Pessoa da Santíssima Trindade venha, enfim, dar melhor explicação da doutrina revelada" (32), ou seja - as aparições de Maria podem ser olhadas no contexto da pedagogia da fé, ou da educação maternal pelo magistério da fé.
Quem leia os ensaios de propedêutica antropológica de Álvaro Ribeiro, dar-se-á conta de como a condição feminil e de como a missão da mulher - aceite como amante, esposa e mãe - é inteligida por um observador contemplativo e valorante da dignidade e da singularidade da mulher no processo da geração e da redenção do género humano. Nenhum pensador contemporâneo dedicou tão excelsas páginas à mulher como essas que constam do capítulo acerca do amor, no ensaio primacial intitulado A Razão Animada. Segundo Álvaro não há magistério sem amor; o amor é por excelência feminino, de onde o magistério incumbir à mulher, à mãe, tendo o homem, o pai, melhor peso na magistralidade paidêutica. A religião, atributo apodítico do amor, inere muito mais à mulher do que ao homem, de onde Álvaro considerar paradigmática a devoção a Maria, mãe de Jesus. Quem estas palavras escreve pode testemunhar em acto de fidedigna verdade, como, um dia, ouviu de Álvaro a pergunta: "porque é que Nossa Senhora, nas modernas aparições aparece sozinha, como se não fosse mãe?» Não tinha qualquer dificuldade em aceitar os significados da Imaculada e da Assumpção, porque achava estes tópicos nominais como símbolos da excelsitude da missão feminina, mas fazia depender esta excelsitude da missão soteriológico-magistral da mulher, a pontos de entender que a missão do mestre, sendo este masculino, equivalia de algum modo à posse de predicados femininos, antecipando-se ao que já hoje se denomina "maternidade divina". Não se diz pai e mestre, diz-se mãe e mestra, mater et magistra, a mãe e a mestra do homem. Por isso que Álvaro sentisse o que, por suas palavras, se diria constituir a solitude da mãe, sozinha, sem o marido, e sem o filho. Admirava ele a imagem do Perpétuo Socorro, que aceitava como digníssima imagem da missão escatológica da mãe de Jesus. "A
predilecção pela imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro explica-se pela razão de que nessa obra de arte está patente a divina maternidade na perfeição dos seus atributos. Não é já a Mãe que amamentou o filho, mas a mãe que o educou e preparou para o seu destino redentor e messiânico. Não é já a maternidade biológica, ainda com sabor pagão, mas a maternidade espiritual, em seu pleno significado educativo... A imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, se bem que contenha os elementos simbólicos do sofrimento humano, deixa indeterminado o exercício fecundo da imaginação" (33). Este olhar para a educadora do homem permite ao filósofo sugestivos tentâmes hermenêuticos à doutrina do pecado original, do mistério da incarnação e da missão redentora do Messias. Aliás, como deixa transparecer em vários dos seus escritos, o mistério da incarnação é menos um facto biológico do que um facto teológico, e isso dá a depreender da dedicatória do livro iniciático A Arte de Filosofar (34) ao poeta que ele considerava como o genuíno poeta do mistério da incarnação, o seu amigo e antigo condiscípulo, José Régio.
Os queixumes do filho são as dores da mãe. Curiosamente, as aparições de Nossa Senhora em Fátima decorrem no chamado ciclo da alegria, que liturgicamente começa logo na segunda-feira de Páscoa com as festas marianas, que se desenvolvem por toda a parte durante o tempo pentecostal e o tempo comum, até ao início do Advento. E, não obstante, a Senhora dos Pastorinhos parece ser Nossa Senhora das Dores ou da Piedade. Trazia uma mensagem de alegria, de esperança, mas o seu coração rebenta de ingente dor: seu filho está muito ofendido pelos pecados dos homens. Ela apresenta ao mundo, através dos Pastorinhos, o seu Jesus crucificado pelos pecados humanos. Ela apresenta o Menino Jesus pregado na Cruz. A Senhora só se identificou como do Rosário em 13 de Outubro de 1917. O bispo de Leiria fundou, em 1928, a Confraria de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, no Santuário, mas não foi por acaso que a congregação fundada pelo Cónego Formigão se chama Servas Reparadoras de Nossa Senhora das Dores de Fátima, e que Lúcia professou a primeira vez com o nome de Irmã Maria das Dores.
A imagem da Senhora das Dores aparece, como que a fechar o ciclo, na aparição de 13 de Outubro, embora esta imagem fique delida pela multiplicação de outras imagens surgentes no mesmo ensejo, incluindo a da Sagrada Família. Consideremos, aliás, que um dos primeiros obreiros de Fátima, o militante católico Alberto Diniz da Fonseca, notário em Torres Novas, um dos "empresários do sobrenatural", como lhe chamava o seu amigo e condiscípulo anti-clerical Tomás da Fonseca - também achava que Fátima era principalmente a Sagrada Família e o Anjo da Paz (35), ainda que a iconografia da pastoral optasse pela representação descrita desde início pelos Pastorinhos, a Senhora, sem companhia visível. Alberto terá as suas dúvidas: não foi ele quem apoiou Gilberto Fernandes Santos a encomendar a primeira imagem para a capelinha, não a da Sagrada Família, mas a da Nossa Senhora das Dores, sem espada, e de branco e ouro revestida?
Fechando: no pensamento de mestre Álvaro, em consonância com o de Leonardo, a virgindade vale pela maternidade. Toda a mãe é virgem, baste que se distinga entre oclusividade fisiológica e virgindade espiritual.
Mostração e demonstração
A crítica de Álvaro Ribeiro ao positivismo envolve os aspectos em que o positivismo contaminou a arte e a técnica de exposição da fé e da ciência divina, incluindo a apologética, em que, no seu entender, surgiram obras em que "Deus aparece como um problema ontológico, Cristo como um problema histórico, a Igreja como um problema sociológico" (36). Assim como admite vários graus de revelação, o magistério alvarino assume que nem todo o saber é adquirido e construído, mas que há um saber herdado por revelação, de onde o mérito concedido ao prólogo de Santo Anselmo, "neque enim quaero intelligere ut credam, sed credo ut intelligam", com que abre o seu admirável compêndio iniciático (37).
Ora, do ponto de vista das teses da "Filosofia Portuguesa", os documentos escritos, mesmo os de natureza jurídica, podem não conter a verdade tal e qual, podendo uma escritura conter uma narrativa decorrente de um acordo prévio das partes, para que os termos sejam aqueles e não outros, quais os da situação real. Sendo assim, a interpretação da história pelos documentos positivos não esgota o conhecimento da história através da qual flui um espírito, imperceptível à provação positiva. Esta limitação, óbvia para a história humana, em que os factos podem significar mais (e menos) do que os próprios factos, devém mais complexa na probação dos acontecimentos espirituais de natureza sobrenatural. Por isso, a tradição da escola rejeita, por excessivos, ou unicamente polemizantes, aqueles documentos escritos que, através de uma dialéctica de facto/contra facto, ou de uma antinomia de como é/ como devia ser, ou de uma sofística de que os factos são os factos, de nada valendo argumentos, - tentam positivizar a revelação sobrenatural, situando-a em termos tais que o teatro, ou encenação aparicional, depende muito mais de uma inteligência estética do humano, do que da inteligência divina, inacessível às razões aduzidas do particular. Deste modo, a aparição dirige-se à pistis, ao entendimento pístico, à capacidade de crença e, por fim, ao próprio dom da fé. São desnecessários os livros comprovativos, pela indução de factos particulares, da veracidade, autenticidade ou falsidade das aparições. Até porque, e no respeito do valor axiológico da subjectividade, só o que vê sabe o que vê: e nenhum outro vê como a sua (do outro) subjectividade vê. A aparição não apela à prova, nem sucede para ser demonstrada: ela é a sua mesma prova, uma mostração que recusa demonstração (38). Foram estas orientações que presidiram ao manifesto, ou declaração de vários escritores, entre eles alguns vinculados ao chamado Grupo da Filosofia Portuguesa (Afonso Botelho, Alexandre Coelho, Francisco da Cunha Leão, Henrique Ruas, entre outros) em que, a propósito de um escrito maledicente, afirmaram: "O mistério de Fátima é superior à história, positiva, ou negativa; e garante, todos os dias, um sinal de esperança na verdade da crença e na crença da verdade" (39).
Notas:
(30) Francisco da Cunha Leão, O Enigma Português, Lisboa, Guimarães Ed., 1961.
(31) Álvaro Ribeiro, Apologia e Filosofia, Lisboa, Guimarães Editores, 1953, p. 50.
(32) Id., ib.
(33) Álvaro Ribeiro, "O Perpétuo Socorro na filosofia da nossa vida", in Miriam, Ano II, n.º 11, Porto, 1955, p. 509, Cf. adiante.
(34) Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália Editora, 1955. Uma das mais belas páginas portuguesas sobre os carismas de Maria acha-se em Álvaro Ribeiro, A Literatura de José Régio, Lisboa, S.E.C., 1969, p. 359. "Mais do que a virgindade, o povo admira a maternidade extensiva a todos os homens, conferindo-lhes um suplemento de alma, tal como foi invocada na mais bela oração inspirada que teve por autor S. Bernardo."
(35) Padre Geada Pinto, prefácio a Pinharanda Gomes, O Servo de Jesus Alberto Diniz da Fonseca, Guarda: Liga dos Servos de Jesus, 1988, p. 8; AA. VV., Espiritualidade das Religiosas Reparadoras de Fátima, Braga: Apostolado da Oração, 1997.
(36) Álvaro Ribeiro, Os Positivistas, Liv. Francisco Franco, 1951, p. 106. Cf. António Quadros, "A Filosofia Portuguesa, de Bruno à Geração do 57", in Democracia e Liberdade, números 42/43, Lisboa: I.D.L., 1987, pp. 7-71.
(37) Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália Editora, 1955, p. 11. Cf. Pinharanda Gomes, "A Arte de Filosofar", in Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa, Lisboa: Fundação Lusíada, 1955, pp. 193-206.
(38) O elenco de obras demonstrativas ou inquiritivas acerca de Fátima é extenso, tanto em apologética negativa, como em apologética afirmativa. Citem-se, entre outros, os livros de Tomaz da Fonseca e de João Ilharco e, por outro lado, de J. Galamba de Oliveira, o popular Fátima à prova (1946) e de P. Oliveira Faria, Perguntas sobre Fátima e Fátima Desmascarada (1975). José Rodrigues Miguéis, no romance O Milagre segundo Salomé (1975) entrecha a história de uma senhora que, em 1917, noiva de um engenheiro que trabalhava em topografia na Serra de Aire, se apresentava por vezes, como sendo "a senhora de Fátima"!!! O romance romanceia, mas não pretende demonstrar seja o que for: cumpre o aproveitamento de uma "estoria".
(39) Essa declaração, que inserimos em Apêndice, apareceu em diversos jornais em 1972 - tendo sido suscitada pelo livro Fátima Desmascarada (1971).
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
As aparições de Fátima e a filosofia portuguesa (ii)
Escrito por Pinharanda Gomes
«O poeta do Marão, referindo-se à religião dos portugueses falou em «Deus sem intermediários». Este não constitui, a nosso ver, o fundamento de um certo anti-clericalismo, anotado por vários escritores e testemunhado pelos tempos fora. A religião dos portugueses, pelo contrário, como dissemos, é mediata, através do mundo e da saudade, propensa a intercessores, disposta a reconhecer e criar santos. Aceita naturalmente o clero mas não lhe suporta o poder temporal como classe nem os possíveis abusos; de modo algum lhe concede o exclusivo da Divindade, porque a intui sem custo e a sente por igual sua - tão sua como do Clero. Daí a exigência em relação aos sacerdotes, enquanto sacerdotes, e a liberdade que sempre tomou de os criticar. Tal atitude não envolve, as mais das vezes, heterodoxia.
O nosso povo é muito sensível aos exemplos vivos da virtude, especialmente nos aspectos de caridade e de justiça - equivalente a amor; logo toma por medianeiros os seus autores, não lhes regateia qualificação de santos, perdoando-lhes humanais fraquezas; nem espera que os canonizem.
A devoção a Santa Maria - a Virgem e a Mãe, comovem-no por igual - e gradações riquíssimas, pluriformes de naturalismo e ternura (Senhoras do Ó, do Leite, de África, de Entre-as-Vinhas, da Silva, etc...) como de invocação angustiosa (dos Remédios, das Dores, das Angústias, da Expectação, do Pranto, da Consolação, da Esperança, da Ajuda, do Socorro, da Piedade, dos Aflitos, dos Mártires), de excelsa virtude e glória (da Pureza, da Purificação, das Neves - mesmo onde não há neve - da Conceição, da Assumpção, dos Altos Céus, da Luz, da Graça, dos Anjos), na linha mítica da sublimação do feminino, constitui um dos traços mais salientes de uma religião entranhada em sentimento. A mensageira ideal, segundo a lei humana do coração, à qual o próprio Deus feito menino obedeceu, outra não pode ser.
Quanto ao caso de Fátima, aceite ou não o factor sobrenatural - de qualquer ângulo sobressai, exigindo reflexão, a espantosa dinâmica realidade espiritual ali surgida colectivamente e que tanto se prende à psique do povo português. Em que medida foi esta influente, ou decisiva, para criar e impor à hierarquia eclesiástica e ao mundo inteiro tamanha polarização de fervor religioso, em que a fé humilde se exalta pela mais contagiosa esperança do apelo à Divindade? De que modo foi influente ou decisiva em sublinhar a intercessão mariana?
Por ela um árido ermo de azinheiras se transfigura em sede sentimental do Catolicismo, em coração de Cristandade, - «altar do Mundo», que é templo sem tecto nem paredes, ora lago de lume, ora nuvem de aves brancas. Dissolução ecuménica da Igreja que deixou de se dizer romana? Pentecostes a congregar de novo os que rodeiam a Virgem - ontem assembleia de apóstolos, agora ajuntamento de nações?
O português esquiva-se à rigidez ordenancista e à exteriorização. («A muita cera queima a Igreja»). Com vivência religiosa intensa ao longo de toda a história contrasta o número pequeno de Santos que houve em Portugal e assim também a escassez de padres. Poderá objectar-se que esta é recente, pois outrora isso não acontecia; há que descontar porém na antiga superabundância de frades, os efeitos de uma pressão económica e social em meio desafecto ao labor utilitário que atirava para a vida eclesiástica muitas pessoas falhas de vocação. Aliás sempre dependemos em certa escala de padres estrangeiros para as nossas missões. Não me recordo em que livro li, registada, a explicação de um galego para o caso: «Somos humanos em demasia...».
Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).
«A par da meditação dos mistérios da vida de Jesus, é notável a preferência que o povo português manifesta pelo culto mariológico. A Imaculada Conceição, a Anunciação e a Assumpção, isto é, os três mistérios diferentes segundo os quais correlacionamos a Mãe com o Filho, tem seu equivalente na incredulidade e cepticismo com que os portugueses recebem as doutrinas que afirmam a irredutibilidade e contradição entre o que chamam matéria e o que chamam espírito. A Mãe de Deus está para nós, não como salvadora, mas como advogada e, na própria missionação portuguesa perpassa o traço azul e branco do seu manto protector e benéfico. Efectivamente, há dois processos de missionação: um a que , poderemos chamar dialéctico, opondo o ser ao não ser e que se propaga pela contradição ou controvérsia, substituindo a religião considerada falsa por aquela que se considera verdadeira. Este, o processo dos espanhóis com sua iconoclastia bárbara e violenta. O outro que poderemos chamar de missionação categorial, consiste em respeitar toda a verdade da religião indígena, alterando apenas aquelas categorias que os impossibilita de serem integrados na catolicidade. Assim as religiões nativas passam a ser membros de um grande todo, dentro do qual se dá a transfusão de um sangue purificador - a alma é sangue - no processo mariológico e cristão da redenção da humanidade. Esta foi a típica missionação dos portugueses, embora houvesse dela afastamentos de lamentáveis excepções.
A missão do homem é ajudar a evolução da natureza, frase que Sampaio Bruno atribui a Novalis. O pensamento deste modo expresso é linha de acção no grande poeta católico cujas comunhões intermitentes se exprimem nos admiráveis poemas que são a «Oração à Luz» e a «Oração ao Pão».
Grande distância separa o verbo vezar do verbo orar. Segundo o nosso pensamento, os sacramentos interiorizam-se na oração. Queremos dizer que os ritos existem e válidos se nos afiguram na medida em que operam a transformação do homem; na distinção do objecto e do sujeito vai toda a distância que pusemos em nossa anterior afirmação, distinção que se anula somente apenas no homem que supera o processo imaginífico, porque ascendeu à imaculada concepção. Efectivamente admitimos a mácula na palavra e no pensar, razão porque nem todas as línguas são sagradas. Mas toda a natureza aspira, na perpetuidade que lhe foi concedida pelo processo de geração e corrupção, à eternidade esplendorosa. Guerra Junqueiro, poeta-profeta, autor dos «Simples» que na «Pátria» nos revela o ideal português, vaticinou em suas obras o aparecimento de Nossa Senhora em Fátima aos três pastores. É certo que nos sujeitamos à crítica dos que não vêem senão a letra na obra do vate. Mas a maternidade de Nossa Senhora é afirmada na, por assim dizer, jesuitificação dos três pastores e na designação do destino desta pátria eleita, cujos representantes, nesse momento, eram três crianças».
Francisco Sottomayor («O Ideal Português perante a Religião»).
«Em «o ideal português perante a Religião», Francisco Sottomayor frisou demoradamente a específica atitude portuguesa perante a religião católica, onde sobressai, fundamentalmente, a meditação dos mistérios cristológicos, por um lado, por outro a predilecção pelas formas do culto mariano. Este, como uma constante ou tendência portuguesa, para o processo alquímico da sublimação da matéria, teve, desde a proclamação do dogma da Imaculada Conceição, até às aparições de Fátima, em nossos dias, uma importância primordial no sentimento religioso português. Para nós, sempre a Virgem Maria é Mãe e ainda em Fátima os pastores prefiguram a Jesus. Por outro lado, entre os portugueses não houve heresiarcas, nem nenhum cisma religioso teve origem em Portugal».
Síntese conclusiva do Colóquio sobre o tema «O que é o Ideal Português», realizado na Casa da Imprensa, de 20 de Junho a 25 de Julho de 1962.
As Profecias de Junqueiro e de Pascoaes
A imagem de Guerra Junqueiro continua na luz crepuscular, ou na penumbra. Quem o acompanhou testemunha que, "nos últimos dias da vida, Junqueiro amava a penumbra" (12), e nela permanece ainda. Uma penumbra projectada pela recusa que a sua obra mereceu a alguns, esses mesmos que professavam já o que ele procurava (13) "e reforçada pelo seu voluntário afastamento cultural e social, como se desejasse esconder-se na sombra de Jesus, que dramaticamente interpelara. O que sabemos do poema A Velhice do Padre Eterno (1885), talvez proceda mais do daguerreótipo crítico ainda vigente, do que de uma nova leitura a uma luz paidêutica. Há quem a interprete como uma viva e faústica interpelação a Cristo e, por concomitância, ao Pai. Nem toda a profecia é júbilo, nem todo o profeta geme, nem toda a admonição chora. Alguma contesta e protesta. Como Leonardo tão bem inteligiu, e como está ostensivo em toda a obra do poeta, Junqueiro é uma alma tão religiosa que pode pecar por excesso. Um excesso que transborda uma congestão de negatividade: o mal é tão presente, o mundo é tão amoral, que a responsabilidade é trespassada dos imperfeitos cristãos para o próprio Cristo. Em nenhum outro texto humano Cristo terá sido tão interpelado, e interpelado segundo a palavra violenta e abjurgatória. Mas quem abjurga se não ama? Se Junqueiro fosse indiferente a Cristo, porque haveria de criar e de escrever o poema? Este, o poema, é um protesto de amor ferido, mas a religiosidade prenhe de messianismo - de Buda a Cristo, como em Sampaio Bruno - permanece intacta no peito do poeta e do pensador da unidade do ser e da superação da natureza pelo Espírito, como provou na Oração ao Pão e na Oração à Luz, verdadeiras orações cristocósmicas e eucarísticas, ocultas sob um prodigioso panegírico ao altar da natureza (14).
Dez são as categorias possíveis para se formular a definição. Junqueiro define A Velhice do Padre Eterno. Exegetas há que a definem tomando como categorias as influências ideológicas da sua época, a partir dos factores complementares ou acidentais, positivismo, evolucionismo, materialismo, naturalismo. Junqueiro define a obra a partir da primeira categoria, a da essência. Ele não diz que A Velhice é um acto de racionalismo evolucionista. Diz, atesta, professa que o poema é uma "expressão de cristianismo exarcebado, ou exasperado" (15). Só isto. Expressão de um perfectismo que chega ao ponto de abjurgar, não os membros do corpo, mas a cabeça, Cristo. Aliás, Junqueiro é uma alma orante. "Toda a alma do poeta, apesar das irregularidades e das vicissitudes, se escala na difícil gradação que vai dos problemas humanos aos segredos naturais e dos segredos naturais aos mistérios divinos" (16) tudo procurando explicar, sobretudo as limitações da Matéria, à luz do divino (17), recorrendo à transposição das formas litúrgico-nomenclaturais da cultura católica para o seu ideal da cidade terrena, como se verifica na admirável mensagem do poeta aos soldados que partiam, em 1917, para a guerra em França (18).
No caso vertente, não se cura de inquirir do catolicismo de Junqueiro. E, no entanto, também se cura disso, em perplexivo paradoxo. Ao apresentar as suas teses sobre "o ideal português perante a religião", que melhor se intitularia "o ideal português perante a religião católica", Francisco Sottomayor, porventura o mais ortodoxo dos católicos que partilhavam, nos meados do século XX, da tertúlia de Álvaro Ribeiro e de José Marinho, afirmou: "Guerra Junqueiro, poeta-profeta, (...) vaticinou em suas obras o aparecimento de Nossa Senhora em Fátima aos três pastores". E justifica-se: "É certo que nos sujeitamos à crítica dos que não vêem senão a letra na obra do vate. Mas a maternidade de Nossa Senhora é afirmada na, por assim, dizer, jesuitificação dos três pastorinhos e na designação desta pátria eleita, cujos representantes, nesse momento, eram três crianças" (19).
Esta nótula é complexa. Em primeiro lugar, exara o futuro de uma exegese que decorre de um diálogo hermenêutico com Álvaro Ribeiro; em segundo lugar, responde às objecções de Álvaro pelo facto de a Senhora ser iconografada sozinha, sem o filho; em terceiro lugar, o autor introduz o termo jesuitificação, para dizer que, naquele instante aparicional, Jesus não viera, e que o seu lugar fora ocupado pelos Pastorinhos, eles mesmos tornados Jesus. Quanto a texto escrito em que Sottomayor haja inteligido a profecia, claro que não o revelou, mas presumimos que ele sejadeduzido do contexto geral da obra religiosa de Junqueiro, e do ponto de vista literal, do episódio do sonho do Condestável na cena XXI do poema Pátria: "Já o mundo a meus olhos se adelgaça!.../ Montes, fraguedos, tudo se evapora.../ sonho... sombra vã que passa./ Quase liberto já!... não tarda a hora... / Sorri-me a Virgem!... como vem brilhante!.../ Deus! quanta luz!... que mar de luz! que aurora..." (20).
O mote da "Senhora mais brilhante do que o sol" não carece de Junqueiro para se formular; mas o achado estilístico acontece no seu poema muitos anos antes das confissões, declarações e imputações dos Pastorinhos acerca do que lhes foi dado ver e do que julgaram ter visto. Ou ouvida, que é muito mais importante. Hajamos em vista que Junqueiro navega muito mais no oceano da Teologia Fundamental e da Teologia Moral, deduzindo aquela desta, de modo que reinstitui, não as teses, mas as aflições, as agonias do arcaísmo priscilianista: Deus é a Bondade, mas Satã é a Maldade. Satã é criatura criada pelo mesmo que criou o Bem. Logo, Satã é o mundo, o corpo de Deus mundanal, o pecado. Só por ele está perdido. E só Deus o pode salvar. É necessário violentar o céu para que Satã seja salvo.
Há muita gente que tem a presunção de que os homens precisam de ajudar o Espírito Santo. Que, no acender das luzes, o Espírito tem a luz, mas que os homens devem levar a lucerna. Para que o Espírito lhes dê a luz. Assim como se a inteligência do Espírito só fosse possível mediante a cooperação da humana vontade... mas ninguém sabe o que diz quando diz isto. Depois do pecado original o homem é totalmente indigente. Da sua vontade nada depende. Tudo depende da inteligência do Espírito. A única coisa que se pede aos homens é para abrir as portas, nada mais: "Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações" (21). Presumir que o Espírito actua por impulso humano é presunção. Já foi dada a recompensa. Junqueiro estava muitíssimo ciente deste facto, e de outros. Apresenta-se-nos como um cristão rebelado, perante uma paixão que, no ciclo da história do tempo, parece ter sido inútil, louca. Como S. Paulo sentira em alguns dos seus contemporâneos. Para quê? Sim, para quê?
A lição já fora dada por Leonardo Coimbra, ao ensinar como Junqueiro é a "voz profética e amorosa das falas de Nun'Álvares, pensador-poeta das grandes ansiedades de infinito espalhadas pelos mundos" (22). A geração do "57", a mais próxima de Leonardo, de Álvaro e de Marinho, assumiu Junqueiro como profeta do brilho da Senhora.
Pascoaes aceitou o milagre de Lourdes sem rebuço. Quando o invocou já tinham decorrido mais de seis decénios sobre as aparições a Bernadette de Soubirous, na margem esquerda do rio Gave, enquanto apenas um lustro era passado sobre os alegados fenómenos da Cova da Iria. A invocação ocorre no contexto de uma apologia do amor fraterno, da Caridade, aduzida como filha do sofrimento e da pobreza, mãe do amor, origem e fim de todas as coisas, a causa da divinização de Jesus Cristo, cuja história acha íntegra explicação na sua vinda por uma única causa: a causa do amor. A aparição de Cristo é o necessário absoluto, mas permite reaparições, não Ele mesmo, Cristo, mas mediante escolhidos que, por obras, como que o reincarnaram para memorial à humanidade. Pascoaes considerava Francisco de Assis uma "nova aparição de Cristo". Junto a S. Francisco ele evoca a "humilde e simples pastorinha" a quem apareceu "a Virgem Mãe de Deus descida das Alturas a este vale de lágrimas e dores". Pascoaes deixa a afirmação na interrogativa, mas é claro tratar-se de uma afirmação, porque logo conclui: "Bernadette é irmã de S. Francisco de Assis". O mal apaga-se perante a visão. "A crueldade, a ferocidade e o egoísmo, e todas as guerras e catástrofes diluem-se no espanto luminoso da pastorinha de Lourdes", e, por fim, "todo o sorriso inocente nuns lábios virginais é uma estrela desprendida do manto azul de Nossa Senhora" (23).
Na imagem: Vitral relativo a Bernadette de Soubirous e à Virgem de Lourdes.
Ignoramos se Pascoaes, em 1922, ano em que proferiu estes juízos, já ouvira referências aos Pastorinhos da Cova da Iria. O livro testemunhal do Padre Manuel Nunes Formigão (Visconde de Montelo), intitulado Os Episódios Maravilhosos de Fátima circulava no país desde que, em 19 de Maio de 1921, ficara impresso na Casa Veritas, da Guarda. Conhecia Pascoaes as maravilhas de Fátima? É possível que, no mínimo, ouvisse falar delas, preferindo abstenção quanto a ajuizar dos acontecimentos, mas, a esta distância, difícil seria recusar idêntica apologia à mensagem e, de modo especial, à mensagenzinha de Jacinta, lábios virginais, sorrindo em dor: "Ó Jesus, é tudo por vosso amor e pela conversão dos pecadores" (24). Um Pascoaes tão ciente do peso do mal no mundo e do pecado no coração do homem, seria capaz de recusar a Jacinta os predicados de Bernadette?
Como justificar, nesse caso, a trilogia profético-saudosista de Pascoaes?
A trilogia sacra surge em público entre 1909 e 1912, adentro do tempo literário que a melhor crítica identifica como a segunda fase do poeta (25). Pascoaes ainda espera uma visita da hermenêutica teológica, porque a sua obra de poeta é poética, sem dúvida, mas contém uma teologia in genere, algumas vezes expressa numa teologia fundamental in specie com óbvias incidências da teologia cristã, mormente a arcaica da era patrística, já com laivos de Santo Agostinho, já com veios de Prisciliano. Pascoaes é também um eidos de uma gnose, não sendo agora o momento oportuno para analisar a realidade das duas vertentes vivas da "Filosofia Portuguesa" - o leonardismo e o pascoalismo, que são faces do mesmo rosto renascentista, mas faces diversas na sua unidade fisionómica.
Revertendo à trilogia, ela é constituída pelos poemas Senhora da Noite (1909), Marânus (1911) e Regresso ao Paraíso (1912). Segundo um filósofo que de perto lidou com Pascoaes, Marânus é um texto mariano por excelência, porque nele o Marão (serra, ou montanha) é figurado como radical cósmico, como radical mítico e como radical religioso (26). O poeta transporta Belém para o Marão e suscita o paradigma do "Seio Imaculado da Virgem Maria".
Preferimos inferir que Marânus é o termo médio entre a Senhora da Noite e o Regresso ao Paraíso. Poema da visão da "Virgem Pura", aí a saudade aparece como "irmã da eternidade". Tudo se formata em aparições, como nesse longínquo poema de As Sombras: "Ah, quando o sol, mais alto que o horizonte,/ Tem a máxima força da ilusão,/ E brilha, a prumo, sobre a minha fronte,/ ...É tudo misteriosa aparição" (27). Ao modo do sol do meio dia em Fátima, o cenário está desenhado no contraste da sombra e da luz: a luz não vê, mas faz ver. A luz da luz já não é visão; é a própria luz, visão unívoca. A pastorinha Lúcia dá-nos uma imagem próxima desta visão de Pascoaes, também assumida no conceito de "visão unívoca" segundo José Marinho: "via apenas que estava na luz", "viamo-nos e sentíamo-nos pessoalmente em ela" (28).
O poema Senhora da Noite abre curso para o regresso ao paraíso. É o poema cristológico por excelência, na dor e na assunção de Maria, similada em Vénus:
"... E Vénus, para sempre, em harmonia,
Há-de viver e confundir sem riso
Com as lágrimas de Santa Maria!
E Cristo não morreu; está na cruz,
Amarrado, a sangrar, como no instante
Em que às mãos do Pai rendeu a alma
E o Céu se fez nocturno e trovejante".
O cataclismo sobrevém. E de novo a Mãe:
"E a Virgem Mãe, na sombra (Estrela d'Alva)
De luto e de joelhos? Vêde o Filho
É sempiterna aquela dor que salva".
O poema é uma aparição. Amar o mal, para o redimir é necessário. Amar a Deus e guardar o rebanho. A Mãe é saudade:
"Ó Saudade, ó saudade! Ó Virgem Mãe,
Que sobre a terra portuguesa
Conceberás, isenta de pecado,
O Cristo da esperança e da beleza" (29).
Maria é Eleonora, a filha do Sol. A medianeira de todas as graças, para se regressar ao Paraíso, o acme da perfeição e da felicidade, depois de vencida a procela do vale de lágrimas. Pascoaes anteviu, com Junqueiro, antes dos Pastorinhos, a Cova da Iria?
Notas:
(12) Moreira das Neves, O Grupo dos Cinco, Lisboa, Bertrand, 1945, p. 227.
(13) Aludimos ao Padre Senna Freitas, Autópsia da Velhice do Padre Eterno, S. Paulo, 1986, e às abjurgatórias de Antero de Figueiredo, eventualmente refutadas por Leonardo Coimbra. Cf. L. Coimbra, Guerra Junqueiro, Nova edição com nota prévia de Paulo Samuel, Porto, Lello Editores, 1996; Id., Cartas, Conferências, Discursos, Entrevistas e Bibliografia Geral, Lisboa, Fundação Lusíada, 1994.
(14) Guerra Junqueiro, Oração ao Pão. Oração à Luz. Prefácio de Pinharanda Gomes, Porto, Lello Editores, 1997. A fisionomia espiritual de Junqueiro é agora mais visível, após a notável Antologia Poética, de A. Cândido Franco, Lisboa, Guimarães Editores, 1998.
(15) Guerra Junqueiro, Prosas Dispersas, Porto, Lello&Irmão, 1922, p. 12. "A cruz verdadeira é a do Calvário, a do amor infinito e do infinito perdão. (...) Não pertence à Igreja, pertence a toda a Humanidade". Junqueiro, Horas de Combate, Porto, Lello&Irmão s.d., p. 82.
(16) Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália Editora, 1955, p. 176.
(17) Id., ib., p. 177.
(18) Pátria divina de Camões e de Nun'Álvares, santificado seja o vosso nome, Venha a nós o valor e a vossa glória. Seja feita a vossa vontade em nossas almas. Dai-nos em cada dia o pão imortal da vossa esperança, e perdoai, Senhora, os nossos erros. Para nos libertar de toda a fraqueza e de todo o crime, encheremos os corações do vosso amor, Amen". (Jornal República, Lisboa, 13.2.1917).
(19) Francisco Sottomayor, in O que é o Ideal Português, Lisboa, Edições Tempo, s.d. (1962), p. 114. O texto acha-se reproduzido em Francisco Sottomayor, Ensaios de Filosofia Portuguesa, Lisboa, Fundação Lusíada, 1991, pp. 103-110.
(20) Guerra Junqueiro, Pátria (1896), Nova Edição: Porto: Lello Editores, 1996. A Virgem do Sorriso sorrira a Teresinha de Lisieux em 1883. É natural que Junqueiro, em 1896, não conhecesse bem esse sorriso, só tornado público mais tarde, com o início da campanha de canonização de Teresinha pelo Carmelo de Lisieux e, sobretudo, por essa grande personalidade, sua irmã, a Madre Inês de Jesus. Cf. Pinharanda Gomes, Santa Teresinha do Menino Jesus na Devoção Portuguesa, Lisboa: Paulinas, 1998.
(21) Antífona do Ofício Divino.
(22) Leonardo Coimbra, Guerra Junqueiro, ob. cit., p. 96.
(23) Pascoaes, A Caridade, Porto, 1922. Texto in Pascoaes, O Homem Universal e outros Escritos. Fixação do texto, prefácio e notas de P. Gomes, Liv. Assírio e Alvim, Lisboa, 1993, pp. 141-153.
(24) P. Luís Gonzaga Alves da Fonseca, S.I., Nossa Senhora de Fátima, Porto: Liv. Apostolado da Imprensa, 1947, p. 229; Memórias da Irmã Lúcia, Fátima, 1990, a 1.ª Memória, acerca de Jacinta.
(25) Mário Garcia, Teixeira de Pascoaes. Contribuição para o estudo da sua personalidade e para a leitura crítica da sua obra, Braga, Faculdade de Filosofia, 1976; Jorge Coutinho, O Pensamento de Teixeira de Pascoaes, Braga, Faculdade de Filosofia, 1955. Acerca deste excelente estudo, cf. Ângelo Alves, "A Primeira Síntese Global do Pensamento Saudoso de Teixeira de Pascoaes", in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LIII, 1997, pp. 88-94.
(26) Afonso Botelho, Saudosismo como Movimento, Braga, Faculdade de Filosofia, 1960. Compilado in Afonso Botelho, Da Saudade ao Saudosismo, Lisboa: ICALP, 1990, pp. 131-152.
(27) Teixeira de Pascoaes, "Aparições" in Sombras.
(28) Lúcia, resposta a D. José Pedro da Silva, in Sebastião Martins dos Reis, A Vidente de Fátima dialoga, Braga, 1970. Cf. Pinharanda Gomes, Teodiceia Portuguesa Contemporânea, Lisboa: Liv. Sampedro, 1975, p. 256.
(29) Teixeira de Pascoaes, As Sombras. Senhora da Noite. Marânus. Introdução de Fernando Luso Soares, Lisboa: Círculo de Leitores, 1973.
Continua
«O poeta do Marão, referindo-se à religião dos portugueses falou em «Deus sem intermediários». Este não constitui, a nosso ver, o fundamento de um certo anti-clericalismo, anotado por vários escritores e testemunhado pelos tempos fora. A religião dos portugueses, pelo contrário, como dissemos, é mediata, através do mundo e da saudade, propensa a intercessores, disposta a reconhecer e criar santos. Aceita naturalmente o clero mas não lhe suporta o poder temporal como classe nem os possíveis abusos; de modo algum lhe concede o exclusivo da Divindade, porque a intui sem custo e a sente por igual sua - tão sua como do Clero. Daí a exigência em relação aos sacerdotes, enquanto sacerdotes, e a liberdade que sempre tomou de os criticar. Tal atitude não envolve, as mais das vezes, heterodoxia.
O nosso povo é muito sensível aos exemplos vivos da virtude, especialmente nos aspectos de caridade e de justiça - equivalente a amor; logo toma por medianeiros os seus autores, não lhes regateia qualificação de santos, perdoando-lhes humanais fraquezas; nem espera que os canonizem.
A devoção a Santa Maria - a Virgem e a Mãe, comovem-no por igual - e gradações riquíssimas, pluriformes de naturalismo e ternura (Senhoras do Ó, do Leite, de África, de Entre-as-Vinhas, da Silva, etc...) como de invocação angustiosa (dos Remédios, das Dores, das Angústias, da Expectação, do Pranto, da Consolação, da Esperança, da Ajuda, do Socorro, da Piedade, dos Aflitos, dos Mártires), de excelsa virtude e glória (da Pureza, da Purificação, das Neves - mesmo onde não há neve - da Conceição, da Assumpção, dos Altos Céus, da Luz, da Graça, dos Anjos), na linha mítica da sublimação do feminino, constitui um dos traços mais salientes de uma religião entranhada em sentimento. A mensageira ideal, segundo a lei humana do coração, à qual o próprio Deus feito menino obedeceu, outra não pode ser.
Quanto ao caso de Fátima, aceite ou não o factor sobrenatural - de qualquer ângulo sobressai, exigindo reflexão, a espantosa dinâmica realidade espiritual ali surgida colectivamente e que tanto se prende à psique do povo português. Em que medida foi esta influente, ou decisiva, para criar e impor à hierarquia eclesiástica e ao mundo inteiro tamanha polarização de fervor religioso, em que a fé humilde se exalta pela mais contagiosa esperança do apelo à Divindade? De que modo foi influente ou decisiva em sublinhar a intercessão mariana?
Por ela um árido ermo de azinheiras se transfigura em sede sentimental do Catolicismo, em coração de Cristandade, - «altar do Mundo», que é templo sem tecto nem paredes, ora lago de lume, ora nuvem de aves brancas. Dissolução ecuménica da Igreja que deixou de se dizer romana? Pentecostes a congregar de novo os que rodeiam a Virgem - ontem assembleia de apóstolos, agora ajuntamento de nações?
O português esquiva-se à rigidez ordenancista e à exteriorização. («A muita cera queima a Igreja»). Com vivência religiosa intensa ao longo de toda a história contrasta o número pequeno de Santos que houve em Portugal e assim também a escassez de padres. Poderá objectar-se que esta é recente, pois outrora isso não acontecia; há que descontar porém na antiga superabundância de frades, os efeitos de uma pressão económica e social em meio desafecto ao labor utilitário que atirava para a vida eclesiástica muitas pessoas falhas de vocação. Aliás sempre dependemos em certa escala de padres estrangeiros para as nossas missões. Não me recordo em que livro li, registada, a explicação de um galego para o caso: «Somos humanos em demasia...».
Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).
«A par da meditação dos mistérios da vida de Jesus, é notável a preferência que o povo português manifesta pelo culto mariológico. A Imaculada Conceição, a Anunciação e a Assumpção, isto é, os três mistérios diferentes segundo os quais correlacionamos a Mãe com o Filho, tem seu equivalente na incredulidade e cepticismo com que os portugueses recebem as doutrinas que afirmam a irredutibilidade e contradição entre o que chamam matéria e o que chamam espírito. A Mãe de Deus está para nós, não como salvadora, mas como advogada e, na própria missionação portuguesa perpassa o traço azul e branco do seu manto protector e benéfico. Efectivamente, há dois processos de missionação: um a que , poderemos chamar dialéctico, opondo o ser ao não ser e que se propaga pela contradição ou controvérsia, substituindo a religião considerada falsa por aquela que se considera verdadeira. Este, o processo dos espanhóis com sua iconoclastia bárbara e violenta. O outro que poderemos chamar de missionação categorial, consiste em respeitar toda a verdade da religião indígena, alterando apenas aquelas categorias que os impossibilita de serem integrados na catolicidade. Assim as religiões nativas passam a ser membros de um grande todo, dentro do qual se dá a transfusão de um sangue purificador - a alma é sangue - no processo mariológico e cristão da redenção da humanidade. Esta foi a típica missionação dos portugueses, embora houvesse dela afastamentos de lamentáveis excepções.
A missão do homem é ajudar a evolução da natureza, frase que Sampaio Bruno atribui a Novalis. O pensamento deste modo expresso é linha de acção no grande poeta católico cujas comunhões intermitentes se exprimem nos admiráveis poemas que são a «Oração à Luz» e a «Oração ao Pão».
Grande distância separa o verbo vezar do verbo orar. Segundo o nosso pensamento, os sacramentos interiorizam-se na oração. Queremos dizer que os ritos existem e válidos se nos afiguram na medida em que operam a transformação do homem; na distinção do objecto e do sujeito vai toda a distância que pusemos em nossa anterior afirmação, distinção que se anula somente apenas no homem que supera o processo imaginífico, porque ascendeu à imaculada concepção. Efectivamente admitimos a mácula na palavra e no pensar, razão porque nem todas as línguas são sagradas. Mas toda a natureza aspira, na perpetuidade que lhe foi concedida pelo processo de geração e corrupção, à eternidade esplendorosa. Guerra Junqueiro, poeta-profeta, autor dos «Simples» que na «Pátria» nos revela o ideal português, vaticinou em suas obras o aparecimento de Nossa Senhora em Fátima aos três pastores. É certo que nos sujeitamos à crítica dos que não vêem senão a letra na obra do vate. Mas a maternidade de Nossa Senhora é afirmada na, por assim dizer, jesuitificação dos três pastores e na designação do destino desta pátria eleita, cujos representantes, nesse momento, eram três crianças».
Francisco Sottomayor («O Ideal Português perante a Religião»).
«Em «o ideal português perante a Religião», Francisco Sottomayor frisou demoradamente a específica atitude portuguesa perante a religião católica, onde sobressai, fundamentalmente, a meditação dos mistérios cristológicos, por um lado, por outro a predilecção pelas formas do culto mariano. Este, como uma constante ou tendência portuguesa, para o processo alquímico da sublimação da matéria, teve, desde a proclamação do dogma da Imaculada Conceição, até às aparições de Fátima, em nossos dias, uma importância primordial no sentimento religioso português. Para nós, sempre a Virgem Maria é Mãe e ainda em Fátima os pastores prefiguram a Jesus. Por outro lado, entre os portugueses não houve heresiarcas, nem nenhum cisma religioso teve origem em Portugal».
Síntese conclusiva do Colóquio sobre o tema «O que é o Ideal Português», realizado na Casa da Imprensa, de 20 de Junho a 25 de Julho de 1962.
As Profecias de Junqueiro e de Pascoaes
A imagem de Guerra Junqueiro continua na luz crepuscular, ou na penumbra. Quem o acompanhou testemunha que, "nos últimos dias da vida, Junqueiro amava a penumbra" (12), e nela permanece ainda. Uma penumbra projectada pela recusa que a sua obra mereceu a alguns, esses mesmos que professavam já o que ele procurava (13) "e reforçada pelo seu voluntário afastamento cultural e social, como se desejasse esconder-se na sombra de Jesus, que dramaticamente interpelara. O que sabemos do poema A Velhice do Padre Eterno (1885), talvez proceda mais do daguerreótipo crítico ainda vigente, do que de uma nova leitura a uma luz paidêutica. Há quem a interprete como uma viva e faústica interpelação a Cristo e, por concomitância, ao Pai. Nem toda a profecia é júbilo, nem todo o profeta geme, nem toda a admonição chora. Alguma contesta e protesta. Como Leonardo tão bem inteligiu, e como está ostensivo em toda a obra do poeta, Junqueiro é uma alma tão religiosa que pode pecar por excesso. Um excesso que transborda uma congestão de negatividade: o mal é tão presente, o mundo é tão amoral, que a responsabilidade é trespassada dos imperfeitos cristãos para o próprio Cristo. Em nenhum outro texto humano Cristo terá sido tão interpelado, e interpelado segundo a palavra violenta e abjurgatória. Mas quem abjurga se não ama? Se Junqueiro fosse indiferente a Cristo, porque haveria de criar e de escrever o poema? Este, o poema, é um protesto de amor ferido, mas a religiosidade prenhe de messianismo - de Buda a Cristo, como em Sampaio Bruno - permanece intacta no peito do poeta e do pensador da unidade do ser e da superação da natureza pelo Espírito, como provou na Oração ao Pão e na Oração à Luz, verdadeiras orações cristocósmicas e eucarísticas, ocultas sob um prodigioso panegírico ao altar da natureza (14).
Dez são as categorias possíveis para se formular a definição. Junqueiro define A Velhice do Padre Eterno. Exegetas há que a definem tomando como categorias as influências ideológicas da sua época, a partir dos factores complementares ou acidentais, positivismo, evolucionismo, materialismo, naturalismo. Junqueiro define a obra a partir da primeira categoria, a da essência. Ele não diz que A Velhice é um acto de racionalismo evolucionista. Diz, atesta, professa que o poema é uma "expressão de cristianismo exarcebado, ou exasperado" (15). Só isto. Expressão de um perfectismo que chega ao ponto de abjurgar, não os membros do corpo, mas a cabeça, Cristo. Aliás, Junqueiro é uma alma orante. "Toda a alma do poeta, apesar das irregularidades e das vicissitudes, se escala na difícil gradação que vai dos problemas humanos aos segredos naturais e dos segredos naturais aos mistérios divinos" (16) tudo procurando explicar, sobretudo as limitações da Matéria, à luz do divino (17), recorrendo à transposição das formas litúrgico-nomenclaturais da cultura católica para o seu ideal da cidade terrena, como se verifica na admirável mensagem do poeta aos soldados que partiam, em 1917, para a guerra em França (18).
No caso vertente, não se cura de inquirir do catolicismo de Junqueiro. E, no entanto, também se cura disso, em perplexivo paradoxo. Ao apresentar as suas teses sobre "o ideal português perante a religião", que melhor se intitularia "o ideal português perante a religião católica", Francisco Sottomayor, porventura o mais ortodoxo dos católicos que partilhavam, nos meados do século XX, da tertúlia de Álvaro Ribeiro e de José Marinho, afirmou: "Guerra Junqueiro, poeta-profeta, (...) vaticinou em suas obras o aparecimento de Nossa Senhora em Fátima aos três pastores". E justifica-se: "É certo que nos sujeitamos à crítica dos que não vêem senão a letra na obra do vate. Mas a maternidade de Nossa Senhora é afirmada na, por assim, dizer, jesuitificação dos três pastorinhos e na designação desta pátria eleita, cujos representantes, nesse momento, eram três crianças" (19).
Esta nótula é complexa. Em primeiro lugar, exara o futuro de uma exegese que decorre de um diálogo hermenêutico com Álvaro Ribeiro; em segundo lugar, responde às objecções de Álvaro pelo facto de a Senhora ser iconografada sozinha, sem o filho; em terceiro lugar, o autor introduz o termo jesuitificação, para dizer que, naquele instante aparicional, Jesus não viera, e que o seu lugar fora ocupado pelos Pastorinhos, eles mesmos tornados Jesus. Quanto a texto escrito em que Sottomayor haja inteligido a profecia, claro que não o revelou, mas presumimos que ele sejadeduzido do contexto geral da obra religiosa de Junqueiro, e do ponto de vista literal, do episódio do sonho do Condestável na cena XXI do poema Pátria: "Já o mundo a meus olhos se adelgaça!.../ Montes, fraguedos, tudo se evapora.../ sonho... sombra vã que passa./ Quase liberto já!... não tarda a hora... / Sorri-me a Virgem!... como vem brilhante!.../ Deus! quanta luz!... que mar de luz! que aurora..." (20).
O mote da "Senhora mais brilhante do que o sol" não carece de Junqueiro para se formular; mas o achado estilístico acontece no seu poema muitos anos antes das confissões, declarações e imputações dos Pastorinhos acerca do que lhes foi dado ver e do que julgaram ter visto. Ou ouvida, que é muito mais importante. Hajamos em vista que Junqueiro navega muito mais no oceano da Teologia Fundamental e da Teologia Moral, deduzindo aquela desta, de modo que reinstitui, não as teses, mas as aflições, as agonias do arcaísmo priscilianista: Deus é a Bondade, mas Satã é a Maldade. Satã é criatura criada pelo mesmo que criou o Bem. Logo, Satã é o mundo, o corpo de Deus mundanal, o pecado. Só por ele está perdido. E só Deus o pode salvar. É necessário violentar o céu para que Satã seja salvo.
Há muita gente que tem a presunção de que os homens precisam de ajudar o Espírito Santo. Que, no acender das luzes, o Espírito tem a luz, mas que os homens devem levar a lucerna. Para que o Espírito lhes dê a luz. Assim como se a inteligência do Espírito só fosse possível mediante a cooperação da humana vontade... mas ninguém sabe o que diz quando diz isto. Depois do pecado original o homem é totalmente indigente. Da sua vontade nada depende. Tudo depende da inteligência do Espírito. A única coisa que se pede aos homens é para abrir as portas, nada mais: "Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações" (21). Presumir que o Espírito actua por impulso humano é presunção. Já foi dada a recompensa. Junqueiro estava muitíssimo ciente deste facto, e de outros. Apresenta-se-nos como um cristão rebelado, perante uma paixão que, no ciclo da história do tempo, parece ter sido inútil, louca. Como S. Paulo sentira em alguns dos seus contemporâneos. Para quê? Sim, para quê?
A lição já fora dada por Leonardo Coimbra, ao ensinar como Junqueiro é a "voz profética e amorosa das falas de Nun'Álvares, pensador-poeta das grandes ansiedades de infinito espalhadas pelos mundos" (22). A geração do "57", a mais próxima de Leonardo, de Álvaro e de Marinho, assumiu Junqueiro como profeta do brilho da Senhora.
Pascoaes aceitou o milagre de Lourdes sem rebuço. Quando o invocou já tinham decorrido mais de seis decénios sobre as aparições a Bernadette de Soubirous, na margem esquerda do rio Gave, enquanto apenas um lustro era passado sobre os alegados fenómenos da Cova da Iria. A invocação ocorre no contexto de uma apologia do amor fraterno, da Caridade, aduzida como filha do sofrimento e da pobreza, mãe do amor, origem e fim de todas as coisas, a causa da divinização de Jesus Cristo, cuja história acha íntegra explicação na sua vinda por uma única causa: a causa do amor. A aparição de Cristo é o necessário absoluto, mas permite reaparições, não Ele mesmo, Cristo, mas mediante escolhidos que, por obras, como que o reincarnaram para memorial à humanidade. Pascoaes considerava Francisco de Assis uma "nova aparição de Cristo". Junto a S. Francisco ele evoca a "humilde e simples pastorinha" a quem apareceu "a Virgem Mãe de Deus descida das Alturas a este vale de lágrimas e dores". Pascoaes deixa a afirmação na interrogativa, mas é claro tratar-se de uma afirmação, porque logo conclui: "Bernadette é irmã de S. Francisco de Assis". O mal apaga-se perante a visão. "A crueldade, a ferocidade e o egoísmo, e todas as guerras e catástrofes diluem-se no espanto luminoso da pastorinha de Lourdes", e, por fim, "todo o sorriso inocente nuns lábios virginais é uma estrela desprendida do manto azul de Nossa Senhora" (23).
Na imagem: Vitral relativo a Bernadette de Soubirous e à Virgem de Lourdes.
Ignoramos se Pascoaes, em 1922, ano em que proferiu estes juízos, já ouvira referências aos Pastorinhos da Cova da Iria. O livro testemunhal do Padre Manuel Nunes Formigão (Visconde de Montelo), intitulado Os Episódios Maravilhosos de Fátima circulava no país desde que, em 19 de Maio de 1921, ficara impresso na Casa Veritas, da Guarda. Conhecia Pascoaes as maravilhas de Fátima? É possível que, no mínimo, ouvisse falar delas, preferindo abstenção quanto a ajuizar dos acontecimentos, mas, a esta distância, difícil seria recusar idêntica apologia à mensagem e, de modo especial, à mensagenzinha de Jacinta, lábios virginais, sorrindo em dor: "Ó Jesus, é tudo por vosso amor e pela conversão dos pecadores" (24). Um Pascoaes tão ciente do peso do mal no mundo e do pecado no coração do homem, seria capaz de recusar a Jacinta os predicados de Bernadette?
Como justificar, nesse caso, a trilogia profético-saudosista de Pascoaes?
A trilogia sacra surge em público entre 1909 e 1912, adentro do tempo literário que a melhor crítica identifica como a segunda fase do poeta (25). Pascoaes ainda espera uma visita da hermenêutica teológica, porque a sua obra de poeta é poética, sem dúvida, mas contém uma teologia in genere, algumas vezes expressa numa teologia fundamental in specie com óbvias incidências da teologia cristã, mormente a arcaica da era patrística, já com laivos de Santo Agostinho, já com veios de Prisciliano. Pascoaes é também um eidos de uma gnose, não sendo agora o momento oportuno para analisar a realidade das duas vertentes vivas da "Filosofia Portuguesa" - o leonardismo e o pascoalismo, que são faces do mesmo rosto renascentista, mas faces diversas na sua unidade fisionómica.
Revertendo à trilogia, ela é constituída pelos poemas Senhora da Noite (1909), Marânus (1911) e Regresso ao Paraíso (1912). Segundo um filósofo que de perto lidou com Pascoaes, Marânus é um texto mariano por excelência, porque nele o Marão (serra, ou montanha) é figurado como radical cósmico, como radical mítico e como radical religioso (26). O poeta transporta Belém para o Marão e suscita o paradigma do "Seio Imaculado da Virgem Maria".
Preferimos inferir que Marânus é o termo médio entre a Senhora da Noite e o Regresso ao Paraíso. Poema da visão da "Virgem Pura", aí a saudade aparece como "irmã da eternidade". Tudo se formata em aparições, como nesse longínquo poema de As Sombras: "Ah, quando o sol, mais alto que o horizonte,/ Tem a máxima força da ilusão,/ E brilha, a prumo, sobre a minha fronte,/ ...É tudo misteriosa aparição" (27). Ao modo do sol do meio dia em Fátima, o cenário está desenhado no contraste da sombra e da luz: a luz não vê, mas faz ver. A luz da luz já não é visão; é a própria luz, visão unívoca. A pastorinha Lúcia dá-nos uma imagem próxima desta visão de Pascoaes, também assumida no conceito de "visão unívoca" segundo José Marinho: "via apenas que estava na luz", "viamo-nos e sentíamo-nos pessoalmente em ela" (28).
O poema Senhora da Noite abre curso para o regresso ao paraíso. É o poema cristológico por excelência, na dor e na assunção de Maria, similada em Vénus:
"... E Vénus, para sempre, em harmonia,
Há-de viver e confundir sem riso
Com as lágrimas de Santa Maria!
E Cristo não morreu; está na cruz,
Amarrado, a sangrar, como no instante
Em que às mãos do Pai rendeu a alma
E o Céu se fez nocturno e trovejante".
O cataclismo sobrevém. E de novo a Mãe:
"E a Virgem Mãe, na sombra (Estrela d'Alva)
De luto e de joelhos? Vêde o Filho
É sempiterna aquela dor que salva".
O poema é uma aparição. Amar o mal, para o redimir é necessário. Amar a Deus e guardar o rebanho. A Mãe é saudade:
"Ó Saudade, ó saudade! Ó Virgem Mãe,
Que sobre a terra portuguesa
Conceberás, isenta de pecado,
O Cristo da esperança e da beleza" (29).
Maria é Eleonora, a filha do Sol. A medianeira de todas as graças, para se regressar ao Paraíso, o acme da perfeição e da felicidade, depois de vencida a procela do vale de lágrimas. Pascoaes anteviu, com Junqueiro, antes dos Pastorinhos, a Cova da Iria?
Notas:
(12) Moreira das Neves, O Grupo dos Cinco, Lisboa, Bertrand, 1945, p. 227.
(13) Aludimos ao Padre Senna Freitas, Autópsia da Velhice do Padre Eterno, S. Paulo, 1986, e às abjurgatórias de Antero de Figueiredo, eventualmente refutadas por Leonardo Coimbra. Cf. L. Coimbra, Guerra Junqueiro, Nova edição com nota prévia de Paulo Samuel, Porto, Lello Editores, 1996; Id., Cartas, Conferências, Discursos, Entrevistas e Bibliografia Geral, Lisboa, Fundação Lusíada, 1994.
(14) Guerra Junqueiro, Oração ao Pão. Oração à Luz. Prefácio de Pinharanda Gomes, Porto, Lello Editores, 1997. A fisionomia espiritual de Junqueiro é agora mais visível, após a notável Antologia Poética, de A. Cândido Franco, Lisboa, Guimarães Editores, 1998.
(15) Guerra Junqueiro, Prosas Dispersas, Porto, Lello&Irmão, 1922, p. 12. "A cruz verdadeira é a do Calvário, a do amor infinito e do infinito perdão. (...) Não pertence à Igreja, pertence a toda a Humanidade". Junqueiro, Horas de Combate, Porto, Lello&Irmão s.d., p. 82.
(16) Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália Editora, 1955, p. 176.
(17) Id., ib., p. 177.
(18) Pátria divina de Camões e de Nun'Álvares, santificado seja o vosso nome, Venha a nós o valor e a vossa glória. Seja feita a vossa vontade em nossas almas. Dai-nos em cada dia o pão imortal da vossa esperança, e perdoai, Senhora, os nossos erros. Para nos libertar de toda a fraqueza e de todo o crime, encheremos os corações do vosso amor, Amen". (Jornal República, Lisboa, 13.2.1917).
(19) Francisco Sottomayor, in O que é o Ideal Português, Lisboa, Edições Tempo, s.d. (1962), p. 114. O texto acha-se reproduzido em Francisco Sottomayor, Ensaios de Filosofia Portuguesa, Lisboa, Fundação Lusíada, 1991, pp. 103-110.
(20) Guerra Junqueiro, Pátria (1896), Nova Edição: Porto: Lello Editores, 1996. A Virgem do Sorriso sorrira a Teresinha de Lisieux em 1883. É natural que Junqueiro, em 1896, não conhecesse bem esse sorriso, só tornado público mais tarde, com o início da campanha de canonização de Teresinha pelo Carmelo de Lisieux e, sobretudo, por essa grande personalidade, sua irmã, a Madre Inês de Jesus. Cf. Pinharanda Gomes, Santa Teresinha do Menino Jesus na Devoção Portuguesa, Lisboa: Paulinas, 1998.
(21) Antífona do Ofício Divino.
(22) Leonardo Coimbra, Guerra Junqueiro, ob. cit., p. 96.
(23) Pascoaes, A Caridade, Porto, 1922. Texto in Pascoaes, O Homem Universal e outros Escritos. Fixação do texto, prefácio e notas de P. Gomes, Liv. Assírio e Alvim, Lisboa, 1993, pp. 141-153.
(24) P. Luís Gonzaga Alves da Fonseca, S.I., Nossa Senhora de Fátima, Porto: Liv. Apostolado da Imprensa, 1947, p. 229; Memórias da Irmã Lúcia, Fátima, 1990, a 1.ª Memória, acerca de Jacinta.
(25) Mário Garcia, Teixeira de Pascoaes. Contribuição para o estudo da sua personalidade e para a leitura crítica da sua obra, Braga, Faculdade de Filosofia, 1976; Jorge Coutinho, O Pensamento de Teixeira de Pascoaes, Braga, Faculdade de Filosofia, 1955. Acerca deste excelente estudo, cf. Ângelo Alves, "A Primeira Síntese Global do Pensamento Saudoso de Teixeira de Pascoaes", in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LIII, 1997, pp. 88-94.
(26) Afonso Botelho, Saudosismo como Movimento, Braga, Faculdade de Filosofia, 1960. Compilado in Afonso Botelho, Da Saudade ao Saudosismo, Lisboa: ICALP, 1990, pp. 131-152.
(27) Teixeira de Pascoaes, "Aparições" in Sombras.
(28) Lúcia, resposta a D. José Pedro da Silva, in Sebastião Martins dos Reis, A Vidente de Fátima dialoga, Braga, 1970. Cf. Pinharanda Gomes, Teodiceia Portuguesa Contemporânea, Lisboa: Liv. Sampedro, 1975, p. 256.
(29) Teixeira de Pascoaes, As Sombras. Senhora da Noite. Marânus. Introdução de Fernando Luso Soares, Lisboa: Círculo de Leitores, 1973.
Continua
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