O drama dos portugueses espoliados em Moçambique será lembrado a José Sócrates quando chegar a Maputo, na 4ª feira Será recebido por um grupo que só pede o cumprimento de uma lei de l977: o direito à indemnização
Marta Curto em Maputo
JOSÉ Sócrates visita Moçambique de 3 a 5 de Março. O gabinete do primeiro-ministro adiantou que o programa ainda está a ser preparado, mas terá uma grande componente económica. O que não está na agenda é o encontro, à chegada, com um grupo de portugueses. Ângela Serras Pires e Luís Oliveira são duas das pessoas que pedirão para ser ouvidas por Sócrates, reabrindo uma ferida com 35 anos: as perdas dos portugueses aquando da independência de Moçambique (em 25 de Junho de 1975).
No aeroporto, erguerão um cartaz e tentarão pedir ao embaixador português, Mário Godinho de Matos, uma audiência com o primeiro-ministro. Ao SOL, poucos quiseram falar. O segredo é a estratégia para não perder tudo, de novo.
«As pessoas ainda têm muito medo, sofreram e perderam muito na independência. Toda a gente tentou reaver o que tinha, e ninguém conseguiu», explica Ângela.
«Eu quero que ele dê 50 ou 100 milhões de dólares a quem perdeu tudo. Portugal já investiu tanto aqui, já deu tanto a Moçambique em doações, que, pelo menos, podia dar alguma coisa a quem também construiu este país e perdeu tudo. Já que não fizeram nada, que mostrem alguma dignidade e dêem algum dinheiro a essas pessoas». Ângela não teme dar a cara. Foi a única da família a não ver uma Moçambique, e deve-lhes a coerência de dizer a verdade até ao fim. Lucinda Feijão, sua tia, foi uma das fundadoras da Renamo e os Serras Pires têm o pior carimbo para a Frelimo, sempre no poder desde a independência.
Lei impõe indemnização
Ângela chegou a Portugal com 13 anos, em 1975, entre 170 mil oriundos de Moçambique na altura da descolonização. Da cidade da Beira, onde nascera, viu-se num país estranho. Para trás, a família deixava um enorme espólio. Entre empresas e casas, havia a Quinta do Guro, ao pé da cidade de Tete, com uma estalagem, uma bomba de gasolina, plantações, uma escola. «Nós tínhamos consciência de que iam ficar com tudo, mas achávamos que seriam os criados. As pessoas estavam em pânico, dizia-se que os portugueses eram todos uns fascistas». Foi tudo nacionalizado, menos as cantinas, uma espécie de pequenas lojas que vendiam de tudo no meio do mato. Essas, Ângela viu serem nacionalizadas em 1996, quando passava férias em Moçambique, antes de aqui se radicar em definitivo. «Há uns dez anos, o meu pai foi à quinta do Guro, e estavam lá a viver 60 mil pessoas. As pessoas fizeram-lhe uma grande festa, pediram-lhe para voltar, mas estava tudo destruído. E pensar que tudo começara com uma palhota que o meu avô fez». Em 1977, as indemnizações aos ex-titulares de direitos sobre bens nacionalizados ou expropriados foram salvaguardadas na lei n.° 80/77. Diz que «do direito à propriedade privada, reconhecido pela Constituição, decorre que, fora dos casos expressamente previstos na Constituição, toda a nacionalização ou expropriação apenas poderá ser efectuada mediante o pagamento de justa indemnização».
É aqui que reside a esperança de Luís Oliveira, de 39 anos. Numa lei que nunca foi posta em prática.
A viver em Moçambique há dois anos, está a concretizar um sonho de menino. Já em Portugal, onde chegara com quatro anos, passara a infância a ouvir histórias deste país, de como era a vida aqui, do que aqui fora deixado. Hoje trabalha em Maputo como informático.
A sua história começa no século XIX, com a vinda dos bisavós. Oliveira, que trouxe consigo toda a papelada do que seria seu, mostra a casa da Rua Tchamba que pertencia aos avós maternos, a residência da Avenida Salvador Allende, dos avós paternos. Pelo caminho, conta que a família saiu do país a medo, num tempo em que havia pressão sobre os brancos para se irem embora. O pai, à pressa, seguiu os conselhos do Governo português e depositou dinheiro no consulado português. «Chamavam-lhes os depósitos consulares. Deixava-se aqui e levantava-se em Portugal. O meu avô acabou por receber esse dinheiro, quase 20 anos mais tarde, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas sem a actualização da moeda. Uma ninharia».
Em Portugal, sem dinheiro, nem bens, os avós de Luís foram obrigados a viver no lar de Santa Joana, no Lumiar.
«Ainda não tentei reaver o que era da minha família, mas essas casas já são de outras pessoas e tenho medo de arranjar problemas com os novos donos». Embora já tenha pedido nacionalidade moçambicana, Luís ainda espera pelos papéis, e, enquanto estrangeiro, prefere não levantar pó. Admite que houve quem voltasse a comprar o que era seu antes da independência, outros que ameaçaram os actuais donos a largarem as casas, mas não tem dinheiro, nem feitio para isso. «Não espero nada da vinda de Sócrates cá, mas acho isto tudo muito injusto, porque nós éramos portugueses e ninguém nos protegeu. Tudo o que o meu avô fez, deixou aqui, foi uma vida inteira...»
Não há lágrimas ou sequer nostalgia nas palavras de Luís. Mas sentimento de revolta. «A culpa disto tudo é do Governo português, não temos de pedir seja o que for ao Governo moçambicano. Se na altura Portugal negociou Cahora Bassa, podia ter negociado também as propriedades dos portugueses. E temos a lei de 1977, Portugal comprometeu-se!». Já antes desta, o decreto-lei n.° 203/74 dizia que os bens dos repatriados portugueses seriam acautelados. Mas os acordos de Lusaca, que marcaram a independência de Moçambique, assinados entre o Governo português e a Frelimo, em Setembro de 1974, não passaram pela defesa dos interesses dos portugueses. Passaram-se 36 anos e a Associação de Espoliados de Moçambique já entregou várias petições à Assembleia da República portuguesa, além de ter recorrido aos tribunais para fazer cumprir a lei. Sem sucesso. Eduardo nasceu na Beira há 51 anos. «Quando eu cheguei a Portugal, tinha 18 anos, estávamos em Novembro de 75. A metrópole, para mim, não era nada, nunca lá tinha ido, nem um pullover tinha». Eduardo conta tudo como se a ferida ainda não tivesse sarado, como se ainda tivesse 18 anos e sentisse na pele a injustiça cega, e muda. «Tínhamos de sair daqui, não havia condições para criar os filhos. Tínhamos consciência de que tudo tinha acabado».
Em Portugal, Eduardo e os seus irmãos foram obrigados a largar os estudos e começar a trabalhar. Pela primeira vez, contavam o dinheiro e temiam o futuro. «Nostálgico, o meu pai? Não podia, nem tinha tempo, havia quatro filhos para criar. Não arranjou um emprego, mas um trabalho. Claro que fica uma enorme mágoa, mas a vida tem de andar para a frente quando temos uma família».
O pai de Eduardo, com 45 anos aquando da chegada a Portugal, não quis pedir apoio ao Instituto de Apoio ao Retornado. Também nunca pensou em escolher outra nacionalidade que não a portuguesa, embora, se tivesse optado pelo alemã, pudesse ter direito a uma indemnização.
Manter a história viva
Eduardo herdou o carácter do pai. «Nem quero ver Sócrates. Para quê? Vai dizer que está muito preocupado com a situação e que temos razão, e depois não vai fazer nada. Eu só quero manter a história viva, para as pessoas não se esquecerem».
Amílcar Dias tem mais de 80 anos, mas anda direito como se tivesse 40. É educado e delicado, denunciando o carácter galanteador dos homens do seu tempo. Foi administrador das melhores empresas do país, e ao contrário dos outros, nunca saiu de Moçambique. Trabalhou antes e depois da independência, reconheciam-lhe o saber e não o puseram de lado. Mesmo assim, ainda esteve 18 meses preso na Machava, em 1975. Quando saiu, de tudo o que a família conseguira construir ao longo da vida, restava-lhe um apartamento. «Há três meses desenvolvi uma teoria: há afro-tribalistas - africanos com um modo de vida tribalista - e há afro-europeus, que são africanos, com uma cultura europeia, que é o meu caso».
Há um ano, assistiu ao leilão dos cinemas que o pai tinha na Beira, o Olímpia e o Palácio, que haviam sido nacionalizados após a independência. «Não há nostalgias, só causam lágrimas e não mudam nada». Amílcar Dias não se vai prestar a encontros com o primeiro-ministro. Diz que Sócrates, como os políticos antes dele, nunca entenderam as colónias. «Geriam, combatiam, mandavam como se soubessem o que se passava aqui. Se tivessem desenvolvido uma classe média-alta cá, não haveria Frelimo que vencesse. E os políticos do 25 de Abril fizeram tudo mal». Dias não tem esperança de voltar a ver o que era seu, e do seu pai. O que lá vai, lá vai. È que, apesar de ter nascido e vivido sempre aqui, em Moçambique um branco é sempre estrangeiro. Mulungo é a palavra no dialecto changana, usado em Maputo, para branco. Quer dizer branco, patrão, pessoa erudita, uma espécie de deus. E mulungo não é moçambicano.
A questão da indemnização não é fácil, já que, desde Samora Machel, Moçambique também pede uma compensação a Portugal pelos 500 anos de colonização. Se o Governo português indemnizar os espoliados, a presidência moçambicana sentir-se-á, provavelmente, na obrigação de pedir satisfações. E não convém a nenhum dos lados voltar ao passado. «Sabe, a politica são negócios. Não são ideais», sentencia.
SOL – 26.02.2010
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